Esteiras
sexta-feira, dezembro 29, 2006
Portugal, em matéria de corrupção, já se tornou um tapete puído. Talvez até uma esteira. Numa casa velha como Portugal, não destoa, mas o padrão esbateu-se e a cor desmaiou. Dantes, o vermelho vivo dos fios sangrava as contas públicas a conta gotas. Agora, parece mais o verde escuro das esteiras de um lagar de azeite: gorduroso, viscoso e ambiental, perfeitamente adaptado ao lugar. Ninguém repara já na acidez elevada e na extracção a frio, em lugares de requinte geral. De tal modo se diluiu no ambiente geral, que a corrupção, para muita gente,nem sequer existe. Há quem garanta que o tapete sempre foi o mesmo, sem ver o lixo acumulado.
Na verdade, a corrupção em Portugal, se a formos a ler pelos jornais, começou nos anos oitenta, geralmente no Expresso; depois estendeu-se ao Público, e ao empenhado Independente, já nos anos noventa.
Foi aí que se pintou a manta da corrupção em Portugal e se chegou ao “estado a que chegamos”, depois de passar pelo Estado corporativo e pelo Estado socialista democrático ( parafraseando um incorruptível chamado Salgueiro Maia).
Em 1994, o Estado português, alertado pelas cassandras habituais, fez uma lei específica para combater a corrupção, especializando o código penal existente.
A lei destinava-se a um efeito, tido por tremendo: a prevenção do fenómeno e a erradicação do bicho de sete pernas e trinta cabeças, em forma de medusa.
O Público, em Outubro de 1994, entrevistava o ministro da Justiça de então, Laborinho Lúcio. Dizia o mesmo que “não somos um país de corrupção generalizada”. Este discurso, leniente e anómico, contrastava com um fenómeno visível a olho nu, para quem andava atento ao cheiro. O problema gerado com a emissão generalizada de facturas falsas, na sequência da introdução do novo regime de infracções fiscais, em 1989; as obras públicas aparecidas em barda e à farta, após a adesão de Portugal à CEE, em 1986, ajudaram a enriquecer o país. As verbas multimilionárias do QC1, encheram bolsos de muitos.
Laborinho e muitos do governo cavaquista da época, nessa altura, não repararam no fenómeno e não lhe deram a devida importãncia. Ainda assim, o então ministro da Justiça, assinalou o aparecimento de uma panaceia traduzida na “possibilidade legal de acções de prevenção criminal”. Em mais de dez anos de vigência da lei, os resultados são rotundamente nulos, quanto a esta tão propalada prevenção, em moldes de pré-inquérito. Ninguém assume a responsabilidade pelo falhanço e nem sequer lembram a sua génese.
Em Dezembro de 1994, no Público e numa entrevista de duas páginas ao então procurador- geral, Cunha Rodrigues, titulava-se a toda a largura que aquele era “O momento zero do combate à corrupção em Portugal”. E salientava também, acompanhando a panaceia de Laborinho, a solução extraordinária da medida de “recolha de informações em fase de prè-inquérito” que reservava para o seu gabinete. A notícia dada com parangona, anunciava um renascer do combate sem tréguas ao monstro que se transforma em esteira e seria então que se veria pela primeira vez a constituição de uma equipa de magistrados e de polícias especializados em investigações de corrupção e de crime económico. Então é que ia ser! Para a constituição da equipa, fez-se até uma reunião de alto nível, com o próprio director-geral da Polícia Judiciária, entendida como o nec plus ultra da colaboração institucional produtiva!
Falava-se e escrevia-se então o que parecia óbvio aos olhos gerais: as facturas falsas indiciavam claramente outros crimes mais graves e de corrupção a sério. Os casos já conhecidos, envolviam as maiores empresas de construção civil e obras públicas: Soares da Costa, Construções Técnicas, Mota e Companhia.
Passados mais de dez anos destas cimeiras e destas eloquentes proclamações de intenções, que sobra para todos vermos? Pouco. Muito pouco. Quase nada e nada mesmo que se possa dizer ao nível das intenções iniciais proclamadas.
Que falhou, nestes anos todos? Parece fácil de dizer: vontade. De todos e dos políticos em particular, com destaque também para a magistratura e investigadores criminais.
Em 1997, o mesmo Cunha Rodrigues, ainda PGR, declarava ao mesmo Público( A.A.Mesquita): “ Magistraturas continuam a não ter formação específica” e ainda “PJ: falta de meios para investigar corrupção”. Para esta resposta, o Público tinha referido: “Há três anos a corrupção tinha uma grande repercussão mediática, mas agora parece que este crime desapareceu. Já ninguém fala nele…”
Nessa altura, C.R. falava do NAT , um Núcleo de Assessoria Técnica, que funcionaria na PGR e que se destinava a “analisar factos para os detectar e qulificar”. Como se sabe agora, o NAT nunca teve o número de técnicos adequado e nunca exerceu em pleno a vocação inicial.
Dez anos depois, o problema a gravou-se substancialmente, como é sabido de todos os que lêem e se interessam por estas coisas.
Em finais de 1998, num artigo de opinião no Expresso, Luís Marques, falava do “labirinto do procurador”, ilustrando-o com os casos paradigmáticos e fracassados da investigação à JAE e da corrupção denunciada e nunca provada também na TAP e nas denúncias genéricas efectuadas pelo então patrão da CIP, Ferraz da Costa.
Perguntava assim o articulista: “será assim tão difícil investigar as contas dos partidos? As contas das grandes empresas? As contas das grandes obras?As contas da JAE, de alguns fornecedores e de alguns funcionários? Não bastaria para tanto uns quantos contabilistas, ou auditores, competentes, acompanhados de magistrados determinados a cumprirem até ao fim, doa a quem doer, uma missão de interesse nacional?”
Estas perguntas, aceradas como lâminas de Toledo, nunca foram respondidas pelo poder político, da magistratura e da polícia. E os media ignoram a essência do que as mesmas contêm.
O NAT de Cunha Rodrigues, de há dez anos, desnatou de vez e azedou. Para o complementar,em 1998, com a revisão da lei processual penal, veio o DCIAP, o departamento do Ministério Público, reservado aos grandes casos e processos. O DCIAP, surgiu na esteira de escândalos como o da JAE ( aberto por João Cravinho que denunciava já a corrupção visível e invisível) e para dirigir o sensível lugar de todos os crimes de corrupção, mais a prevenção que se anunciara como imprescindível e milagrosa para debelar o fenómeno e estancar a mancha que alastrava, apareceu Daniel Viegas Sanches, magistrado do MP, vindo do SIS. Em Abril de 2000, numa carta ao Público, a protestar por uma notícia do diário que “punha em causa a dignidade profissional de todos quantos trabalham no DCIAP”, dizia isto que parece espantoso, agora:
“O DCIAP não é um órgão de investigação, mas apenas de coordenação e de direcção do inquérito, não devendo sobrepor-se aos órgãos de polícia criminal, eles sim responsáveis pela investigação” .
Quem souber ler, que compare com as declarações mais recentes de responsáveis do DCIAP e veja em que águas navega o actual combate à corrupção.
E compare principalmente o sentimento expresso por um politólogo, Luís de Sousa, o qual em entrevista à Pública, por ocasião das últimas eleições autárquicas, dizia: “ O convívio entre magistrados e actores políticos inibe-os de actuar”. Simples e directo, este raciocínio não faz carreira na mentalidade dominante.
Os casos de corrupção mencionados por Maria José Morgado no seu livro de 2002, Fraude e Corrupção em Portugal, passam pelos genéricos do fisco, pelos particulares do futebol e “dos dinheiros sujos” e pelos inevitáveis das autarquias. MJM investigou em condições polémicas e que acabaram em quase nada, uma aparentemente gigantesca corrupção no Fisco. Criticada pelo próprio director da PJ de então ( Adelino Salvado), que desvalorizou completamente a investigação efectuada, saiu pouco depois, com uma despedida singela e pouco urbana. O processo mudou de rumo e da aparente montanha sairam pequenos ratos que desapareceram na paisagem.
Depois da denúncia escrita em livro, aconteceu o Apito Dourado que se interliga com todos os genéricos e especialidades da corrupção. Continua por aí, com o estrídulo que ainda se ouve.
Aliás, o caso mais paradigmático, relacionado com autarcas e já acabado por arquivamento, terá sido o de Narciso Miranda. Este autarca de Matosinhos foi investigado criminalmente, com denúncias concretas de pessoas directamente a ele ligadas. O processo arquivou-se, sem provas suficientes para sustentar a remessa a julgamento.
Narciso Miranda foi afastado da luta política activa, por causa de questões…éticas, digamos assim, relacionadas com a morte de um militante do mesmo partido, em plena campanha eleitoral. Antes desse episódio triste e dramático Narciso Miranda, fora secretário de Estado da Administração Marítima e Portuária de um governo guterrista. Nessa altura e nessa qualidade de governante, fizera publicamente o elogio a um colega de partido e um dos mais antigos autarcas do país: Mesquita Machado, da Câmara de Braga. Retomem-se as letras do Público de 30.5.2000:
“ Esperamos que o exemplo da tua liderança prolifere cada vez mais no país” (…) considerando que a presidência de Mesquita tem sido exercida de forma “modelar”, o que o torna um dos autarcas “ mais prestigiados” a nível nacional. “Temos aqui um exemplo de como se faz política com dinamismo a pensar nas pessoas, precisou Narciso Miranda que até por recorrer à opinião de “ um político de grande visão estratégica”- numa referência ao ministro Jorge Coelho- para reforçar os elogios ao “dinossauro” autarca bracarense: “Ele é um admirador da política por ti desenvolvida”!
A homenagem pública do então governante, surgiu pela ocasião da cerimónia de apresentação de dez autocarros movidos a gás natural – os primeiros a circular regularmente no país, dizia o Público.
Em Maio de 2005, ainda no Público, António Barreto, fazia uma pequena recensão de pequenos casos de pequena corrupção que liga com a maior que pode existir: a residente na mentalidade reinante e que a nega como fenómeno preocupante.
Publicado por josé 00:21:00
A corrupção não existe. E o que não existe - por definição -, não pode ser investigado.
O que deve ser investigado, arguido, acusado, pronunciado, instruído de forma célere e implacável, é a denúncia da corrupção.
Não há outro crime tão grave - de lesa-majestade, como costuma dizer... - como a denúncia da corrupção e dos abusos dos políticos. Porque essa denúncia põe em causa o próprio sistema.
Grave - e também é - será o caso da Sara (http://www.correiomanha.pt/noticia.asp?id=225749&idselect=9&idCanal=9&p=200), cuja mãe, Ana Isabel, já é culpada. Culpada, antes de mais nada, porque é pobre de bens e de poder.Desconfio que a desprotecção dos seus direitos não provocará nenhuma emenda no próximo Código Penal. É que há casos de abuso de crianças e casos de abusos de crianças...