A reforma piadosa

Em França, notam-se agora as sequelas do caso Outreau, em que se provou serem rotundamente falsas certas imputações a arguidos, num caso de abuso sexual de menores e que por causa disso ficaram presos, injustamente, durante meses.
Como medida emblemática para atalhar a outros erros judiciários de idêntico teor, o governo francês, pela mão de Sarkozy pretende aprovar legislação que permita a gravação audiovisual de todos os casos de detenção provisória, incluindo o momento do primeiro interrogatório pelo juiz de instrução. A medida é copiada do sistema inglês que aliás a praticam desde os anos oitenta.
Diga-se que por lá, o juiz é mesmo de instrução e que por isso a faz e não apenas o da instrução, como por cá acontece, limitando assim o papel do juiz à sindicância do que se fez no Inquérito. E a medida concreta, destina-se a permitir que outras instâncias avaliem a apreciação efectuada aos factos.
Em França, a reforma vem de um levantamento geral de indignação em relação a um sistema que funcionou mal e que produziu um clamoroso erro judiciário. Mesmo assim, é discutida abertamente quanto à eventual eficácia e adequação.

Em Portugal, o actual movimento de reforma do sistema judicial, como o comprovam as palavras do próprio ministro da Justiça, Alberto Costa, teve como motivação concreta, um caso concreto - o da Casa Pia, onde aparentemente “aprendeu” muito. Essa aprendizagem contradiz a estudada indignação em tempos demonstrada num Prós & Contras, quando um António Cluny lhe notou a impressão geral de que o governo pretendia arremeter contra o poder judicial, exactamente como revindicta do processo Casa Pia.
Assim, por cá, a reforma vem a reboque de aprendizagens a propósito de um processo que ainda nem terminou; que envolveu figuras públicas e políticos do partido com poder executivo e cujo conhecimento público dos factos já publicitados, permite dizer que não tem qualquer comparação com o caso francês.

Em França, a reforma vem após a verificação de um grave erro judiciário, cujas causas foram analisadas em sede de Assembleia Nacional, com a presença de representantes do poder judicial concreto que participou na ocorrência desse erro. A discussão que se gerou, colocou em causa alguns princípios e alguns métodos e originou um aceso debate nos media, a propósito do funcionamento do sistema.
Uma das conclusões a que se chegou, foi a da ocorrência de erros humanos, derivados da falta de experiência, na origem directa de erros judiciários. Diagnosticada uma das causas, afectou-se-lhe uma solução já utilizada noutros países.
Em Portugal, a reforma negociada em segredo, vem após a ocorrência de supostos erros, na investigação dos factos. Esses putativos erros, foram apontados pela defesa dos arguidos excelentíssimos… e apesar de decorrerem exclusivamente de legislação aprovada pelos mesmos que agora a pretendem revogar, foram durante muito tempo, procedimentos comuns, nunca contestados. As escutas telefónicas a notáveis, por exemplo e o seguimento dado a denúncias anónimas, seguiam regras incontestadas desde finais dos anos oitenta, tendo passado incólumes por tribunais superiores, incluindo o Constitucional. Os interrogatórios seguidos noite dentro, precisam agora de medida legislativa para o seu extermínio. Contudo, o segredo de justiça para o qual alguns se estão a c****, ainda não é desta que vai para a retrete.
Pelos vistos, só agora se descobriram essas regras maléficas que pacificamente existiam nos códigos, hospedadas e escondidas, à espera de momento propício para atacar.
Calhou essa má sorte aos políticos indefesos que as legislaram. De repente, com o apoio estrénue de comentaristas da corte, descobriram-lhe a extrema perversidade e é por isso que vem aí a reforma. Sendo para o "bem geral", só pode ser piadosa; sendo oculta em mistério de intenções, também será algo mentirosa e sendo negociada em segredo e em pacto, é certamente algo nebulosa.
E com o lado útil, traz ainda consigo um lado agradável: submeter os representantes máximos do poder judicial, a um controlo de qualidade normalizada e sujeitar os decanos a suportar a companhia e diversidade de profanos com hábitos de mérito, devidamente graduado, como convirá.

Publicado por josé 16:20:00  

13 Comments:

  1. james said...
    Um dos seus posts mais softs que alguma vez já li, sobre esta matéria...

    E. T: não tinha qualquer expectativa que fosse mais escabroso, mas...
    zazie said...
    Não faço ideia quais vão ser as alterações mas, diga-me uma coisa, José.

    Qualquer suspeito de rede mafiosa de incluindo atentados vai passar a ficar mais aliviado de escutas telefónicas e passam a ser-lhe dadas todas as informações acerca do processo?

    Isto, de forma a poder prevenir os camaradas, tal como um político caído em desgraça por acusação menos abonatória?
    josé said...
    Zazie:

    Tanto quanto é possível ler pelas orientações gerais, não será isso que ficará em causa. As escutas passam a ser melhor controladas pelo juiz e algumas feitas a certa entidades, passam a ser autorizadas pelo...presidente do STJ ( noblesse oblige).
    As escutas seão mais selectivas e seleccionadas, pois até aqui permitia-se que ficasse gravado e se pudesse ouvir mais tarde que um político de um partido de oposição telefonava livremente a um amigo assessor do PR e discutia abertamente com ele a substituiçáo do...PGR! Que era preciso dar-lhe uma chupeta, lá fora...
    É desse tipo de escutas que vem o perigo, como veio daquela maldita que gravou para a posteridade aquela boutade do político que se estava a cagar para o segredo de justiça. Agora, com este regime, tal escuta ficava de fora e seria destruída e a posteridade não ouviria o dito fatal.
    A intervenção no regime de escutas é deste género. P*orque foram essas escutas que incomodaram sobremaneira e motivaram várias romarias a Belém para subsituir o PGR.
    De resto, a criminalidade de alto coturno continuará com os mesmos instrumentos de prevenção.
    Também... era o que mais faltava!

    Além disso, há medidas positivas e que já deviam ter sido tomadas. Por exemplo, sobre segredo de justiça, agora a regra passa a ser a publicidade e não o contrário.
    Não significa ainda a abertura de portas e janelas do processo, mas é um passo positivo.

    Ainda sobre escutas parece que precisam que fique escrito que as escutas serão controladas pelo juiz e instrução de 15 em 15 dias! É que dantes não se previa prazo e alguns entendiam que seriam oito dias; outros dois meses chegava...e depois vinham aqueles acórdãos "à maneira" para anular escutas, com prazo excedido...

    Mas o problema desta reforma é outro:

    As reformas para serem verdadeiras e efectivas, precisam de ser profundas e com mudança de alguns paradigmas.
    Não é isso que acontece no caso do processo penal e no caso do processo civil, nem de perto nem de longe tal acontece.

    Depois há umas medidas que contendem com a progressão dos juízes na carreira que me parecem curiosas, para dizer o mínimo.
    E uns métodos de ascensão ao STJ que ainda são mais curiosas.
    Quase todas estas medidas mereceram o vibrante aplauso de Vital Moreira.
    Está tudo dito.

    Espero para ver quando se perfilarem reformas no estatuto dos professores universitários...
    e-ko said...
    Ó colombo do ovo em pé,

    Então os desiguais devem ser tratados de forma desigual... mas isso é o que se tem verificado há muitos lustres...neste jardim ......... mas um pedófilo é um pedódilo, seja ele médico, pedreiro, deputado ou burlão (e há muitos, bem disfarçados, de colarinhos brancos) e deve ser julgado pelo seu crime como qualquer pessoa, e, não só deve ser julgado, como ser tratado, da mesma forma, em interrogatórios ou medidas como o termo de identidade e residência ou prisão preventiva. É isso também a JUSTIÇA. Dei exemplo do pedófilo, mas deve ser aplicável a qualquer tipo de crime.
    Infelizmente, não é assim que se passa...
    e-ko said...
    Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
    zazie said...
    Obrigada pela informação, José.

    Então a coisa foi mais subtil. Que era daí que vinha o perigo sabemos nós. E eles. Nada como pôr as barbas de molho. Hoje eles, amanhã quem sabe se um dos nossos. É para isto que servem os pactos centrais
    e-ko said...
    Pior, Colombo,

    Já vi vítimas mais mal tratadas pela polícia e pela justiça que os próprios criminosos... sou um exemplo vivo.
    Arrebenta said...
    A nova grelha de programação da RTP-1 já inclui um "Reality Show" apresentado por Carlos Cruz.
    josé said...
    Vital Moreira escreve hoje no Público que "No acordo sobre justiça estão em causa as instituições essenciais do Estado de direito. Além disso, as divergências partidárias são de baixa intensidade e o acordo tinha grandes possibilidades de ser um arranjo "win-win", em que ambos os contratantes ganham(...)"

    Está tudo dito. Menos uma coisa: os losers somos nós, the people!
    zazie said...
    ehehhe
    james said...
    Agradou-me a forma como Maria José Morgado, hoje, no Jornal da Noite, da SIC Notícias, discorreu sobre o pacto.

    Também me agradou, entre outras, o facto da mesma ter dito, preto no branco que os juízes não deviam fazer parte de organismos desportivos....

    Um dejá vu?

    Não penso que tenha sido...
    josé said...
    Caro lusitânea:

    Há DOutores, Professores de cátedra de escolas públicas como a faculdade de Direito de Coimbra que NÃO se dão à maçada de ir às aulas dos alunos ordinários.
    Escuso de apontar o exemplo concreto...

    As aulas destes ordinários começam lá para meados de Outubro. Que fazem os catedráticos entretanto e este entretanto começou já em Julho? Nada. Alguns escrevem em blogs. Ou em jornais. E se fosse só isso, bem iria o mundo porque não chateavam ninguém. O problema é que são ouvidos nos sítios do poder e exercem esse poder de influência nociva.

    Alguns orientam uns cursos de pós- graduação, ministrados sob o patrocínio de Associações criadas no seio das próprias universidades públicas e segundo um regime híbrido em que avulta o lucro derivado das propinas que cobram e que são relativamente altas, as quais aparentemente constituem um património da Associação que é privada, mas funciona como se fosse pública ( numa escola pública, nas instalações e com os meios da escola pública, socorrendo-se de currículos dos alunos formados na escola pública ao abrigo de protocolos curiosos, etc etc).
    Explico o que são algumas destas associações dirigidas por alguns catedráticos:
    São "pessoas colectivas criadas por iniciativa de entidades privadas como sejam os professores dessas escolas , constituídas ao abrigo do direito civil, e que têm um substrato patrimonial constituído, totalmente ou na maior parte, por fundos que só podem ser de entidades públicas ( as salas de aulas e as de professores confundem-se e as de funções administrativas confunedem-se).
    Os respectivos órgãos sociais são os próprios às associações privadas- Direcção, Assembleia Geral, Conselho Fiscal.

    Serão públicas estas Associações?

    «[S]ão de considerar entidades públicas: (a) O Estado e as demais entidades colectivas territoriais (municípios, etc.) (pessoas colectivas públicas originárias, ou por natureza; (b) as entidades como tal qualificadas por lei (entidades públicas por força da lei); (c) as entidades criadas pelo Estado (ou por outras pessoas colectivas públicas), desde que não qualificadas por lei como entidades privadas, e desde que compartilhem dos predicados da personalidade pública, a saber as prerrogativas de direito público, nomeadamente os poderes de autoridade.

    «Não são por isso entidades públicas, além das que a lei qualifique expressamente como entidades privadas, aquelas que sejam criadas livremente por particulares, segundo os formatos típicos do direito privado (associação, fundação, cooperativa, etc.), bem como as de criação pública mas sem qualquer traço relevante de um regime de direito público. As pessoas colectivas de criação privada são sempre pessoas colectivas privadas, salvo declaração legal em contrário, ainda que tenham um regime de direito público reconhecido por lei, porquanto não é concebível a criação de entes públicos por acto de particulares. Estar-se-á então perante entidades privadas com um regime de direito público».

    Quanto às pessoas colectivas de direito privado, reguladas pelo Direito Administrativo, que são as que interessam ao objecto do presente parecer, diremos, seguindo, nesta parte, o parecer n.º 611/00 citado, que as mesmas se distinguem, segundo o critério da sua finalidade estatutária, entre «as de utilidade pública que se propõem um escopo de interesse público, embora cumulativamente possam também almejar a satisfação de interesses dos próprios associados ou do fundador e as de utilidade particular que prosseguem primacialmente um interesse particular, maxime lucrativo (v.g., as sociedades comerciais) (-).

    «Dentro das pessoas colectivas de direito privado e utilidade pública autonomizam-se duas modalidades: as de fim desinteressado ou altruístico, e as de fim interessado ou egoístico.

    «Nas primeiras, o interesse próprio que os associados ou o fundador visam satisfazer é um interesse de natureza altruística, a saber, o de promover certos interesses de outras pessoas (beneficiários). Daí a “utilidade pública” destas pessoas colectivas de direito privado, posto que “à comunidade social importa que tais interesses sejam satisfeitos”. E tanto assim que “o próprio Estado ou os entes públicos menores costumam prover no mesmo sentido”, “através dos seus próprios recursos”.

    Nesta pequena amálgama recolhida de um parecer do C.Consultivo da PGR, vai uma pequena análise do problema das Associações son a égide das quais se minsitram cursos de pós-graduação pagos a bom dinheiro e cujo destino provavelmente não será a simples actividade filantrópica.

    Se isto não é uma vergonha, o que será a vergonha?!
    xatoo said...
    carissimo Colombo
    "se o Caso Camarate fosse julgado pelas comissões parlamentares de inquérito já tinha sido definitivamente resolvido e já tinham sido condenados, sem apelo nem agravo, os autores do atentado".

    sinceramente,
    acha que há alguem com força neste país para condenar a Opus Dei na pessoa do general Ramalho Eanes?

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