A libertação de July

Em Abril de 1973, Jean-Paul Sartre e Serge July, entre outros, publicavam o primeiro número do jornal francês Libération, sem qualquer publicidade paga, para “dar a voz ao povo” .
Serge July proclamava então o seu idealismo retardado de 68: “Eu vivo, nunca haverá publicidade no Libé. Jamais”! A ideia básica, fundamentadora, era a de que os anunciantes, ao financiar o jornal, seriam os dirigentes e controladores do mesmo. O capitalismo do lucro, mais valias e liberdade de trocas, era ainda um bicho de sete cabeça, para as cabeças pensadoras de July, Sartre e outros Pierre Victor, secretário deste último. As malditas cabeças do bicho, foram, uns poucos anos depois, sendo decepadas, uma a uma. A primeira, foi a da publicidade!
Na mesma altura, a revista, então liberalmente conservadora, L´Éxpress, empregando centena e meia de jornalistas e a vender semanalmente centenas de milhar de exemplares, fazia publicar noutros periódicos, quatro páginas inteiras de publicidade impecável e verdadeiramente moderna, a contrastar vivamente com os slogans ainda revolucionários de Sartre e July.

Este, ainda em Outubro de 1975 (9.10. 75), ridicularizava o Nouvel Observateur, farol da esquerda moderada de então( e de agora), contabilizando as páginas que aquele semanário vendia aos anunciantes, os controleiros verdadeiros da publicação, na ideia simples de July. O Nouvel Obs publicitava em foto e textos bem arranjados por agências, a Flammarion, a Grasset, a Plon, A Fayard , a Robert Laffont ( tudo editoras parisienses) , mas também a Canon, o American Express, a Camel e…a francesa Solex!
Apesar disso, o magazine da esquerda chic, recomendava assinaturas, indicando que “ a independência do Nouvel Obs dependia das assinaturas”. Mas nem isso demovia o radicalismo chic de July.
Só em 1982, convencido pela “força tranquila” do publicitário Séguela e na onda que se ergueu após a eleição de Mitterrand, no ano anterior, o Libé surfou pela primeira vez a evidência, negando promessas passadas e reciclando conceitos à velocidade correspondente às quedas de vendas, arriscando naufrágios, mas apanhando as pranchas que apareciam. Quanto às contradições, nada como a retórica de um esquerdista para lhes dar combate sem tréguas. A publicidade detestada e proibida, passou a ser uma das mais elevadas expressões da… Arte! Logo, o jornal de July, não podia passar ao lado, exortando até, os até aí execrados vendedores de reclames: “Sejam inventivos! Nós gostaríamos que os anunciantes tomassem connosco, o risco da criação, das audácias e das provocações” ( Libé, 16.2.1982)…
Nestas tergiversações, de quem foi perdendo ideologicamente terreno económico debaixo dos pés, colocando os idealismos entre aspas, o Libération de July, tornou-se também mercantilista, em busca de um público comprador e o seu director, acabou por entrar no Siècle, o gotha da nomenklatura, integrando assim o número dos que se frequentam entre si, na classe dirigente francesa.
O jornal foi evoluindo neste meio de bloco central de interesses diversos e não podendo fazer jus àqueles célebres anúncios do L´Express de 1973, também repudiou integralmente a ideologia de extrema esquerda que o próprio Sartre, pouco antes de morrer, em 1980, em entrevista ao Nouvel Observateur, denunciou como um embuste, declarando ao mesmo tempo, no modo particular dos intelectuais que ao ver aproximar a morte, se sentia “ non comme une poussière apparue dans le monde, mais comme un être attendu, provoqué, préfiguré, comme un être qui ne semble pouvoir venir que d'un créateur et cette idée d'une main salvatrice qui m'aurait créé me renvoie à Dieu.”
Meia dúzia de anos antes, o mesmo Sartre, em Portugal, declarava a revolução socialista, comunista, que seguia ao ritmo do PREC, um programa a cumprir!

Não me recordo do primeiro número que comprei, do Libération. Tenho o de 16.6.1986, uma segunda feira que se seguiu à morte de Jorge Luís Borges e foi por isso que comprei e guardei. Nesse número emblemático do espírito do Libé que me agrada, o assunto Borgesiano coupa nove páginas de textos magníficos, incluindo a “autonecrografia” e o “Borges e eu”, extraído de “L´Auteur et autres textes”, para além de um texto de Leonardo Siascia, intitulado “Borges, o inexistente”.
Nesse mesmo número, o título de primeira página é evocativo dos dez anos de revolta negra contra o apartheid, no Soweto. Em cinco páginas, o jornal mostrava o alinhamento numa esquerda democrática que participava então activamente na luta pela “libertação” da África do Sul, noticiando as discussões sobre as sanções ao regime por causa das violações de direitos humanos.
No final dos oitenta e início dos anos noventa, a leitura do Libé, tornou-se indispensável para compreender bem o que se passava no mundo em mudança acelerada.
Em Agosto de 1989, o jornal dava extensa cobertura às operações de combate aos violentos clans da droga na Colômbia, até á captura de pablo Escobar.
Em 22.8.1991, em plena crise na União Soviética em desagregação acelerada, Serge July, após a tentativa de golpe contra Gorbatchev, que o PCP então aplaudiu entusiasticamente, escrevia um editorial sobre o “terminus do comunnisme”.
Começa assim: “ a tentativa desesperada , garatujada, improvisada, crespuscular, espasmódica, da velha guarda do centralismo burocrático terá precipitado a eliminação dos últimos coágulos do comunismo que travavam o metabolismo histórico em curso.”
Os dias seguintes do Libération, são uma epifania à revolução que decorria na velha União Soviética, com capas e mais capas de fotos inteiras sobre “ a revolução russa”. A capa de 24 e 35 de Agosto desse ano, mostra o derrube de uma estátua de Félix Dzerjinski, com a legenda: Requiem por 74 anos de terror. A estátua de FD, fundador da Tcheka, a antiga polícia política soviética, é apeada por manifestantes, na última quinta feira à noite.”
As notícias de Agosto fazem esquecer as capas e reportagens de Janeiro a Março, sobre a primeira guerra no Golfo, mas o que se podia ler então no Libé, era informação interessante e graficamente esclarecida por esquemas infográficos, “ na primeira guerra seguida em directo pelo conjunto do planeta.”
A mundialização como fenómeno emergente, foi notícia no mês de Novembro de 1999, com os acontecimentos de Seattle e as manifestações contra a OMC. A edição de 29.11.99, traz uma foto de alguém com um chapéu de cartola e a legenda inscrita: “O mundo não é uma mercadoria”.
Não é?!
Em meados dos oitenta, Serge July podia ser, com certeza, o mais estimado dos jornalistas franceses e o mais mediático, pela notoriedade conseguida até então. Todos lhe gabavam os feitos e o jornal tornou-se, ironicamente, uma marca ligada, ainda mais ironicamenre, à sua personalidade.
Porém, entre 83 e 96, a quase totalidade do capital do jornal passou para entidades exteriores e , pior ainda, para os idealistas de antanho, para as mãos de financeiros e sociedades de seguros, símbolos máximos do capitalismo triunfante e bolseiro.
Aquele que em 1973 desprezava a publicidade como símbolo da submissão, declara agora, humildemente, que “ A independência é muito simples: é preciso que funcione( il faut que ça marche) e é preciso ganhar dinheiro”. Mas vai ainda mais longe no golpe de rins:
Creio que é um pouco utópico, querer diferenciar a redacção e o accionista”.
Em Janeiro de 2005, um capitalista de vulto, ronda os prejuízos crescentes do jornal e toma-lhe a sua direcção. Quem manda no jornal de há uns tempos para cá, já é um certo Eduardo de Rothschild.
Serge July acabou por sair do jornal, há uns dias atrás, reconhecendo provavelmente o que é muito simples:
O capital é implacável. Como aliás pensaria…mas em 1973. Bons tempos, que já lá vão.

Publicado por josé 19:26:00  

13 Comments:

  1. n/d said...
    O irónico da história é que se há uma lição a tirar do "O Capital" de Marx é que este é... implacável.
    Anónimo said...
    Ai quem me dera ter a vida deste "José" e poder passar longas horas, em cada dia, a escrever em blogs e em caixas de comentários.
    E daí, talvez não, porque me fartaria.
    É que isto de fazer da escrita em blogs a principal ocupação de vida deve ser como passar os dias inteiros, encantado, a mirar a própria cara no espelho.
    E eu, por certo, não me acho tão belo como o senhor José se acha a si.
    josé said...
    Sinceramente...o que é que o incomoda mais?

    O meu gozo em procurar coisas para escrever isto que me dá outro gozo acrescido, ou a incapacidade que assim manifesta, em escrever algo sobre o assunto?

    O que é que o/a incomoda afinal?!

    O meu tempo?!
    Em vez de passar horas no sofá, a olhar para um suporífero écran; em vez de passar horas em deambulações por aí; em vez de dormir sestas; em vez de fazer nada, dá-me gozo fazer isto.

    Incomoda-se?

    Seja bem vindo. Se deixar essa amargura de fora...claro.
    josé said...
    E quer ver como é fácil escrever-lhe noutro tom?

    "Ai quem me dera ter a vida deste "Anonymous" e não me incomodar em poder passar longas horas, em cada dia, a escrever em blogs e em caixas de comentários.
    E daí, talvez não, porque me fartaria.
    É que isto de fazer do ócio e da ignorância a principal ocupação de vida deve ser como passar os dias inteiros, encantado, a mirar a própria cara no espelho.
    E eu, por certo, não me acho tão irrelevante como o senhor anónimo se acha a si."

    Cumprimentos caro/a anónimo/a. Aposto mais no "a"...
    Anónimo said...
    Com franqueza, José ...
    Você decepciona-me.
    Por que há-de achar que sou ocioso, ignorante e até que sou mulher, só porque invejo a sua larga disponibilidade de tempo ?
    Vá lá, José !
    Eu sou apenas invejoso.
    Cosmo said...
    "Eu sou apenas invejoso."
    Pois a mim, sr. anonymous, parece-me que é muito humilde esse apenas.
    O sr. é um sujeito com outros predicados... não será também um bocadinho parvo?
    josé said...
    Caro anonymous:

    Não seja invejoso porque nem terá razões para tal.
    COmo tenho escrito para aqui e noutros lados, esforço-me com prazer no exercício da diletância ( a palavra não existe nos dicionários correntes, mas o O´Neill não a desdenharia, pelo que assumo que imito o O´Neill como diletante que sou).
    Entre os prazeres da vida, tirando os imprescindíveis ligados as nossas funções mais primárias e saborosas, há para alguns, mais uns tantos.
    Por exemplo...o futebol.Ou passear. Ou a converseta de café em horas prolongadas. Ou o "convívio".
    A mim, tirando os essenciais, como acessórios em suspensório, ficam-me alguns que me denunciam o feitio.
    Ler, guardar ideias impressas e escrever atoardas e verdades lapalissianas, mais algumas ideias avulsas neste media novo, foi um prazer que descobri.
    Trocar ideias e conceitos e discutir, sempre foi um prazer, para mim, quando percebo alguma coisa dos assuntos ou me apetece perceber, principalmente neste último caso.

    Assim, não fique invejoso do prazer que retiro daqui. Há certamente outros prazeres que não este e espero que as pessoas os aproveitem.
    Mas...vivam e deixem viver se esse viver não fizer mal aos outros.

    Para outros, passear é o must.

    Quanto ao ser parvo ou não, como alvitrou a sissi, parece-me que não será nada parvo, pela resposta que deu.
    Parvo fui eu em considerar que um comentário sem muito sentido poderia vir de uma mulher, porque estas costumam ter um senso apurado. Não sei que ideia me deu, para pensar ao contrário.
    Mas, que quer...ninguém é perfeito. Ahahahaha!
    Ainda para outros,
    josé said...
    "Para outros, passear é o must."
    "Ainda para outros,"

    Estas frases desgarradas foram escritas antes de reescrita e ficaram por distracção.

    Fica o reparo e a correcção.
    zazie said...
    Não falte prazer ao José para estes postes que nós só temos a agradecer
    josé said...
    Caro/a o-espectro:

    Esqueci de referir no postal uma aspecto muito delicioso, pela ironia que traz em si mesmo.

    Na edição do Libération de 16.6.1986 que citei, a pág. 12, vem uma entrevista com Jimmy Goldsmith, o milionário aristocrata, vindo da hotelaria de Paris e que em 1977 comprou o L´Express.
    Nessa altura, ( 1986) a perspectiva era "reconstruir" o L´Express que apesar de tudo era um sucesso de vendas, mas a ter de enfrentar a tendência da concorrência em passar a um estilo mais magazinesco em detrimento das notícias e comentários.
    Jimmy Goldsmithtinha nessa altura, uma perspectiva sobre os media, de acordo com aquilo que se vieram a tornar muitos deles depois disso, incluindo os portugueses e que se resume numa frase dita e feita: " a concorrência é a base da prosperidade".
    Será?!
    Na altura discutia-se a aquisição de uma estação de tv. Podia ser a Cinq ou até a TF1.
    Goldsmith, falecido aos 64 por cancro do pâncreas (vem na Wikipedia, onde fui ver), deixou filhos. Um deles casou com um descendente dos Rothschilds, cujo familiar Eduardo comprou agora a posição maioritária no Libé.

    Concorrência?!
    Talvez. Entre o capital, entenda-se.
    Anónimo said...
    Salut, caro José: O July terá beneficiado da maquiavélica proteccão do Mitterrand? Mesmo os antigos accionistas, como os Riboud e os Seydoux, não injectavam dinheiro sem uma palavrinha do " deus " do Elysée. Será uma pista? Por outro lado, July fez um livro de entrevistas com o Sarkosi, salvo erro, há dois anos. Será coincidência factual e anedótica, um ano antes da campanha
    presidencial, e quando Sarkosi tem chances de ser eleito?!?
    Vou tentar apurar estas pistas: e para isso terei que ler tudo o que se disse... e o Canard irá sublinhar!!!
    O seu método é excelente e muito reconfortante.Continue. Niet
    Anónimo said...
    Estive mais de uma hora a tentar mudar o chavão do espectro, que me tinha surgido expontaneamente aquando da guerrilha no blogue de VPV/CCS.
    Ainda nao consegui, imaginem!
    Ainda sobre o July: pertenceu aos maos refinados pelo Sartre e pelos estudantes da célebre ENS da Rue d´Ulm. Por um triz, escapou de ser guerrilheiro, tipo Brigadas Vermelhas italianas ou R.A.F. alemã. Niet
    Bayushiseni said...
    Caro Sniper:

    A concorrência está sobrevalorizada. Não se deixe levar pelas falinhas mansas de quem controla a ideia de concorrência.

    Não há respeito pelo consumidor. Há a ideia de que se o consumidor pensar que é respeitado, come e cala mais facilmente.

    O capital existe de uma forma quase física: há quem tem o capital e quem não o tem!

    Não menospreze os tipos que fazem poesia. Por vezes vêem bem mais longe do que aqueles que acreditam que o mundo funciona realmente como um relógio suiço.

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