A Máquina em Outreau
quinta-feira, março 02, 2006
O caso Outreau, saiu para as notícias por causa de um escândalo sexual com menores, numa vilória (Outreau) perto de Boulogne sur Mer, no norte da França, em Pas de Calais.
Em 5 de Dezembro de 2000, a comissão de protecção de menores local, de Boulogne sur Mer, informou o “parquet”, ou seja, o Ministério Público local, sobre eventuais agressões sexuais praticadas por um casal – Badaoui-Delay- sobre os próprios filhos. Segundo informação geral disponível na rede e em jornais que agora tratam o assunto com a clareza já possível, o processo de inquérito começou em Janeiro de 2001, a cargo da polícia local.
No final desse mês, o processo é entregue a um juiz de Instrução, Fabrice Burgaud, pelo procurador da República de Boulogne sur Mer, Gérald Lesigne que o analisou previamente. Poucos meses depois, em Maio 2001, oito vizinhos do casal Delay, são interpelados pelo juiz. Em Novembro, nova leva de mais seis pessoas “notáveis” da localidade, entre as quais um padre, um oficial de justiça, um taxista, e outros. Em Maio de 2002, mais três pessoas.
No total, dezoito pessoas, foram colocadas em regime de prisão preventiva, por suspeitas de abuso sexual de menores, incluindo o casal Delay, por suspeitas de crimes sexuais e conexos, contra cerca de 20 crianças.
Ao fim de quase três anos de Inquérito, em Junho de 2003, 17 pessoas (uma outra suicidara-se entretanto na prisão), foram levadas a julgamento em tribunal colectivo e de júri, na chamada Cour d´assises de Saint Omer. A acusação é da Câmara de Instrução, composta por três magistrados que avaliam os actos de Instrução praticados até aí, podendo anulá-los ou até arquivar os autos.
Porém, esta Câmara, validou todos os actos judiciais praticados por Burgaud e o seu sucessor Cyril Lacombe (Agosto de 2002 a Março 2003). O presidente desta Câmara, Didier Beauvais, tem agora 58 anos. Em Maio de 2004, os principais acusados, ou seja, o casal Delay, continuam a confirmar as acusações em relação a todos os outros. Em 10 de Maio, porém, Thierry Delay, desmente-se e denega a acusações.
Não obstante, no julgamento que se produz, com tribunal colectivo e júri de 9 pessoas, são condenadas, em Julho de 2004, 10 daqueles acusados e absolvidos 7.
Em Abril de 2005, após o recurso interposto por alguns dos condenados, o mesmo Thierry Delay proclama em escrito enviado ao tribunal que seis acusados estão inocentes. Em 18 de Novembro as acusações de violação contra o padre Wiel, são postas em causa pela retractação de duas crianças que o acusavam.
A principal acusada, Myriam Badaoui, confessa ter mentido e proclama a inocência dos seis acusados.
No dia 1 de Dezembro 2005, são absolvidos os 6 acusados e a França, através de representantes oficiais, pede-lhes desculpa.
Depois disto e destes factos serem conhecidos, a França que escreve e pensa sobre estes assuntos, interroga-se sobre o que correu mal.
Quem determinou essa prisão preventiva, entre 2001 e 2004, data da conclusão do processo? O juiz de Instrução designado (pelo procurador do MP), neste caso F. Burgaud e ainda um outro juiz que em França se ocupa das “liberdades e da detenção”, neste caso o juiz Maurice Marlière. Burgaud tem actualmente 34 anos; Marlière tem 49.
Quem avaliou a instrução foram mais três magistrados. Quem julgou os factos em primeira instância foram mais três juízes e jurados. Quem apreciou o recurso foram mais magistrados.
O Parquet, equivalente em França, ao Ministério Público português, agrupa os magistrados encarregados de requerer a aplicação da lei perante os juizes.
Os membros do Parquet estão subordinados a uma hierarquia que se estende até ao chamado Garde des Sceaux, uma espécie de Procuradoria GEral da República que superintende directamente os procuradores gerais.
Estes, a funcionar junto dos tribunais de Recurso (Relação), fiscalizam a actividade dos juizes de instrução, podendo recorrer das suas decisões e principalmente podendo avocar os processos, deslocando-os de circunscrição. No fim da cadeia hierárquica, estão os procuradores que têm amplos poderes de polícia, uma vez que esta depende deles que também a dirigem. São estes procuradores quem toma conhecimento dos affaires em primeira mão e são eles quem investiga as queixas e denúncias apresentadas e quem no fim de um Inquérito, avaliam a consistência dos indícios, arquivando processos ou entregando-os ao juiz de instrução para que este prossiga a investigação, com medidas que implicam com direitos, liberdades e garantias, passando a fiscalizar a investigação através do eventual recurso das decisões judiciais.
São os juízes de instrução quem têm o poder de determinar buscas, escutas telefónicas, e demais diligências de investigação criminal. E também detenções, “mises en examen” e promoções para a prisão preventiva. Neste caso, controladas e decretadas por um outro juiz das liberdades e da detenção.
No final da instrução, os juizes, remetem-na, com a acusação para posterior julgamento ou arquivam o procedimento.
No processo de Outreau, intervieram assim, várias dezenas de pessoas que decidiram, determinaram e investigaram factos que se revelaram logros, pondo em causa a Justiça do caso concreto e principalmente o sistema de Justiça francês.
Por causa disso, as reacções institucionais e populares, em França, determinaram uma excepcional atenção ao assunto.
Logo em Dezembro, por unanimidade, a Assembleia Nacional francesa decidiu abrir um Inquérito Parlamentar, convocando todas as pessoas para serem ouvidas pela Comissão de Inquérito e também pela opinião pública, através dos media que transmitiram algumas sessões em directo. Em 18 de Janeiro de 2006 foram ouvidos os absolvidos de Outreau. Logo a seguir os seus advogados.
Entre estes depoimentos avulta o do padre Wiel que declarou muito simplesmente que “ Acho muito curioso que os media pusessem tanto empenho em meter-me num buraco como agora a pôr-me nos píncaros”! E passou a frisar a perplexidade que o convoca sempre que verifica a facilidade com que do mesmo modo como o trataram publicamente como um “salaud” agora o tratam como um herói popular.
Para rematar, disse ainda que os media em geral e as pessoas da imprensa em particular, têm uma grande responsabilidade no que se passou, devendo fazer uma reflexão séria, porquanto são um quarto poder sem contra-poder.
E se os juizes já estão a interrogar-se, o padre Wiel espera que os media façam o mesmo.
No programa (Arrêt sur Images, France5, 18.12.2005), dois jornalistas, dos pouquíssimos que aceitaram dar a mão à palmatória, vão ao ponto de confessarem que “trabalharam com areia e que esta lhes fugia das mãos...” Confessaram que durante algumas semanas, as fontes de informação eram provenientes do parquet de Boulogne, da polícia, e também dos representantes das crianças que depuseram perante a imprensa, gizando cenários diabólicos e credíveis, de pedofilia em rede extensa que veio a revelar-se uma pista falsa.
Para além disso, os jornalistas denunciaram a extrema abertura do Parquet de Boulogne para fornecer as informações sobre o caso e da própria polícia local que lhes dizia abertamente “ É betão”(informações sólidas) “Podem avançar à vontade” ! E no entanto, perceberam também que as informações provinham de testemunhos, apenas...e que tudo assentava em testemunhos.
Assim, são os jornais que são abertamente questionados, por causa do sensacionalismo das notícias e da pressa em transmitir novidades. E o veredicto é grave: foram também os media quem, na voragem de uma ridicularização da presunção de inocência e da pronúncia do veredicto, contribuíram para legitimar ou confortar o percurso da máquina judiciária contra os acusados de Outreau.
(Continua aqui)
Publicado por Carlos 12:37:00
Em alguns casos até podemos, quase, ver reflectido alguns dos episódios do caso Casa Pia.
Convêm recordar que todos os implicados viram a suas vidas completamente destríudas e um suicidou-se na prisão.
Em França originou um debate nacional, seria interessante que os mídia em POrtugal, cumprissem o seu dever e, pelo menos analisassem este caso.
Cumprimentos
Adriano Volframista