sobre o 'homem normal'

A propósito de mais um aniversário de Mozart, e da transmissão, ontem na RTP/1, do Amadeus de Milos Forman, o João Gonçalves assinou uma cirúgica prosa sobre a verdadeira 'estrela' do filme, o narrador, Salieri, a qual Constança Cunha e Sá complementou, com refinada ironia, terminando-o assim...

A “mediocridade” de Salieri vem deste reconhecimento: dos seus limites, da sua impotência, da sua solidão perante a gratuitidade do génio. Só ele, a quem Deus, na sua infinita injustiça, deu o talento de saber “ouvir”, é capaz de compreender a genialidade de Mozart. O homem normal, o “ouvido” da corte, desconhece estes abismos da criação: o esforço inglório de Salieri e a imensa facilidade dos que, como Mozart, foram tocados pela "graça" divina. A revolta de Salieri, a sua loucura final, acompanhada pela música de Mozart (concerto para piano nº 20, se não me engano) mostra o imenso “talento do fracasso”, como diz o João, perante a “normalidade” dos homens e o génio inalcansável daqueles que foram eleitos. O Mozart de Forman, na sua exterior vulgaridade, é uma caricatura que serve apenas de contraponto à personagem de Salieri. Deus é injusto. Até naqueles que escolhe!
No fundo, um tratado em dois actos sobre a natureza humana. Quantos Salieris não há afinal por aí, na arte, na política, na vida, prisioneiros da sua própria personagem, incapazes de irem para além dela, porque 'cegos' pela 'graça' que tocou a outros, ou pela 'graça' que acham que até lhes tocou. Quanto a Deus, um eufemismo nestas coisas, este, cara Constança, nunca é injusto. Nós é que somos imperfeitos, demasiado humanos. Preferimos apreciar a 'grandeza' e a 'sorte' dos outros, resignando-nos a não ousar, a nunca desafiar o destino, a ver para além do óbvio e do imediato. Conformamo-nos porque no fundo achamos que está tudo escrito e que não vale a pena lutar. A culpa é sempre dos outros. Olhem que não.

Publicado por Manuel 00:08:00  

1 Comment:

  1. Isabel Magalhães said...
    Nem mais!

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