Uma carta ao director do Público que poderia ter saído no Inimigo Público

Ter cara de preto é uma vergonha?

Neste país de brandos costumes, o racismo envenena indiscriminadamente todos os estratos sociais. Se, nos estratos mais baixos, esse preconceito se manifesta de forma mais ou menos despudorada, nos estratos tidos por superiores ele existe de forma mais contida (ou provavelmente envergonhada), mas nem por isso é menos afrontoso. Uma pedra de toque para avaliar o racismo que se aloja, por vezes de forma inconsciente, no espírito de muitas pessoas que se julgam imunes a tal estigma, é o uso corrente de certas expressões. Uma das mais chocantes, não obstante o uso e abuso que dela fazem pessoas que pontificam nos órgãos de comunicação social, é a que determina o gesto de pintar a cara de preto como penitência atribuível a quem tiver algo de que se envergonhar ou como manifestação de arrependimento e reparação de uma falta.
Há tempos, perante uma situação deste género, surpreendentemente protagonizada pelo deputado Miguel Portas num artigo do Diário de Notícias, dirigi-lhe uma carta de protesto, a que ele respondeu de imediato a dar-me razão e a prometer uma autocrítica pública, "à chinesa", que todavia nunca fez. Idêntica nódoa manchou recentemente a crónica semanal de José António Lima, director adjunto do Expresso. Também o político José Magalhães, ao tempo em que era participante do programa Flash Back, da TSF, aceitou sem pestanejar o repto dos seus comparsas Pacheco Pereira e Lobo Xavier, prontificando-se a pintar a cara de preto no caso de ver desmentida uma das suas conjecturas, o que aliás se verificou. (...)
A expressão boçalóide surgiu agora, uma vez mais, nas páginas do PÚBLICO, subscrita pelo seu cronista-mor Eduardo Prado Coelho, designado como professor universitário e membro da comissão política de Manuel Alegre. Na sua crónica de quinta-feira, dia 8, em que polemiza com Joana Amaral Dias, escreve o emérito intelectual que "basta olhar para o que neste momento se passa na área do Porto do PS para ficarmos com vontade de pintar a cara de preto". Ou seja: para ficarmos cheios de repulsa e de vergonha. O que, mutatis mutandis, significa que ter cara de preto é repulsivo e vergonhoso. Um skin head não diria melhor!

Acácio Barradas (leitor)
Público, 10.12.05

Publicado por Nino 10:36:00  

1 Comment:

  1. Jose Maria Eça de Queiroz said...
    Numa coisa o dito Sehor tem razão: A lingua Portuguesa é muito traiçoeira e capaz de lançar um incauto no dominio inquisitorial do Políticamente Incorrecto.
    Como Português, fico tão incomodado que acho que vou "pintar a minha cara de prêto".
    O Velho da Montanha.
    (http://ovelhodamontanha.blogs.sapo.pt)

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