'Bilhete de Identidade' - Maria Filomena Mónica
'Morangos com Açucar' - versão para intelectuais
segunda-feira, novembro 28, 2005
Se fosse uma obra de ficção o 'Bilhete de Identidade' de Maria Filomena Mónica estaria às portas de ser uma autêntica obra-prima. Se. Não é. Falta-lhe em distanciamento, o que sobra em presunção.
É porém um retrato fiel das (auto-proclamadas) 'élites' que ululam, nos dias de hoje, neste país, e é um dos melhores retratos sobre a vacuídade. É uma obra amoral e egocêntrica que retrata um percurso errático, desde um berço dourado, até à idade adulta, de uma menina 'bem', que estava 'predestinada' a estar no topo, 'à sua maneira'.
Durante todo o livro percebe-se que as regras dela, não são as nossas, reles plebeus, como se percebe que a 'lógica' dela não se aplica a nós e vice-versa. Filomena Mónica vê-se, à distância, como parte de uma casta superior, com direitos e deveres diferentes dos demais. É uma obra escrita, na primeira pessoa, por alguém absolutamente incapaz de ter sentimentos mais profundos que não os da satisfação do seu próprio interesse. É uma obra sobre a fachada, a aparência e a traição. Filomena Mónica, involuntariamente, espelha uma certa crise de valores, onde a única coisa que resta, e tida como certa, é, em bom rigor, o status social, custe o que custar.
Mas o livro é muito mais que o retrato mais ou menos fiel da deriva da autora por este mundo, é também o retrato do, 'pequeno', 'mundo' da autora... de famílias 'bem', que se conhecem umas às outras, que casam umas com as outras e que (julgam? que) 'mandam' em Portugal. A 'élite', uma 'aristocracia'. É também o retrato das duas últimas gerações, o qual abarca praticamente toda uma certa burguesia - lisboeta - que não se rebelou contra o Estado Novo, aderindo ao PC, antes 'esperando'. Da deriva à 'esquerda', primeiro, da 'distribuição' pelos diferentes 'partidos' depois, e da deriva (neo)'liberal', por estes tempos. É o retrato das certezas absolutas, dos devaneios absolutos, dos direitos absolutos, da arrogância absoluta, o retrato dos que nasceram 'bem', e dos que, de 'fora', tudo fizeram para se 'integrar'.
Um destes dias Vasco Pulido Valente (que a par de António Barreto é das duas únicas pessoas - referenciadas na obra - que me merecem solidariedade e compreensão, até mesmo pena) queixava-se, a propósito das presidenciais, acidamente do fim de um mundo, do fim de uma certa 'aristocracia' (que Soares representaria). É esse o 'mundo' que Filomena Mónica retrata. Um mundo onde o que conta é uma hipotética 'cultura', a par da mais cruel, e frívola, das desumanidades.
Uns são, ou continuam, de esquerda, Sampaio esteve no lançamento, outros de quem der mais, outros, ainda, dizem-se de direita, como a nova coqueluche da direita-grunge, Rui Ramos, uma absoluta nulidade com direito a citação no prefácio, mas a praxis é sempre a mesma - a absoluta arrogância, a absoluta altivez, as absolutas certezas, e 'clichés', de quem se julga mais que os outros, o absoluto determinismo. Mais 'democrata', mais 'culto', mais 'humanista', mais 'relacionado', mais 'tudo'.
Sobre o precedente aberto por Filomena Mónica de escaqueirar no prelo a sua vida intíma, citando sem pudores terceiros, muitos ainda vivos, não vou perder tempo. Isso é lá com eles, mas não venham é depois esses mesmos a propósito de outros temas berrar contra a devassa da vida privada...
Literariamente continuo a preferir Ian McEwan, mas vale a pena ler o livro, auto-retrato da autora pretensamente 'à inglesa', mas com toques de um absoluto calvinismo, uma espécie de 'Morangos com açúcar' para intelectuais de pacotilha, escrito com o tradicional, e provinciano, complexozinho de ser 'português'. É que é mesmo um retrato.
Publicado por Manuel 19:41:00
GALAHAD: Blue. No, yel-- »
:)
nao li nem lerei tao cedo mas deverá serr o livro do ano em Pt. Na blogoesfera é! E pelo que vejo aparenta-se com a autora, gera reacções apaixonadas, nao parece deixar ninguem indiferente.
(e se me permite, bela prosa Manuel.)
homemDASneves
Quanto à autora e sobre as crónicas que escrevia/e no Público posso apenas dizer que me ficou na memória uma que escreveu sobre o Alentejo. Foi uma ode à estupidez.
Não fiquei foi com curiosidade nenhuma em ler o livro...pelo contrário.
Como ando a ler o livro,ontem li algumas páginas.
Tenho que dizer que gosto do que vou lendo e não costumo ler tudo o que me aparece.
O livro, à partida, corresponde de algum modo ao que esperava. Mas temo que não cumpra a promessa que depositei ao comprar: ler algo que me elucidasse um pouco mais acerca dos meandros sociais dos anos sessenta e início dos setenta, de uma certa intelectualidade lusa.
Tirando os aspectos intimistas e pessoalíssimos da autora como sejam a descoberta que fez, já nos anos recentes de que a mãe fora registada como... filha de mãe incógnita, por motivos que a autora se põe depois a especular, sem grande interesse a não ser, talvez, para ela própria e para os seus, tirando isso, como dizia, deveria sobrar uma análise menos perfunctória e mais interessante do meio social em que se moveu.
Veremos se tal se confirma, sendo certo que pelas críticas que vou lendo, nos blogs( particularmente no Esplanar), tal pode muito bem não se confirmar.
Logo se vê.
O livro é interessantíssimo sobretudo como crónica de alguns meios (bem diversos) da sociedade portuguesa.
Na página 47, na qual a senhora faz o elogio da estúpida criada que, depois de morta, se descobre que fazia parte da família, encontrei a seguinte frase: "Fomos nós, os «seus» meninos, a levantar-se.
Não me parece que alguma vez eu fosse ler esta coisa, mas após o seu comentário...nem pensar!
Um abraço
Abel