A nostalgia internacional

Em blogs distintos, discute-se a... América! E deixa-se implícito que a América de Bush, com Katrina ou sem hurricanes, é grande - e os neo-cons os seus senhores! E quem diz o contrário anda distraído, é tolo ou andou a ver amanhãs a cantar durante muito tempo, ficando afectado pelo zumbido para todo o sempre.

É essa ideia, aliás, que se retira do belíssimo postal da URSS de antanho e que servia uma propaganda de putativo bem estar social, que só mesmo os intelectualmente cegos que não queriam ver, logravam enxergar.
Alguns enxergaram bem tarde e agora, até uma tragédia humanitária, social e económica como aquela que atingiu os USA estes dias, serve de pretexto ideal para retomar o velho, mas sempre actual, reflexo anti-americano primário e de caminho, sonhar outra vez com os amanhãs que ainda ontem deixaram de o ser.

É por demais evidente que em certa esquerda ideologicamente marcada por antigos credos sulfurosamente embebidos em doses letais de marxismo-leninismo-estalinismo-trotskismo, reina ainda uma nostalgia do tempo do vermelho e amarelo e das festas do Avante com discursos dos camaradas. Em 1994, Cunhal ainda por lá citava Marx, Engels e Lenine e afirmava que o "comunismo não morreu" e que o capitalismo não é o fim da história.

Este discurso, com cerca de dez anos, era já antigo e foi sufragado durante anos e anos por indivíduos que agora aparecem a defender a democracia parlamentar, apoiam partidos que se lhes opuseram ideologicamente, inserem-se na luta política nesses partidos com a maior das naturalidades democráticas, como se o episódio de uma vida adulta passada a combater essa mesma democracia parlamentar, se tratasse de um incidente no seu percurso para os amanhãs e como se uns meros documentos assinados por meia dúzia, apagassem as ignomínias políticas que produziram, sustentaram e impuseram, sempre com a maior e mais arreigada das convicções.

Talvez por essa razão, o inimigo de ontem, continua a ser o mesmo de sempre e de antanho: os execrados USA, pátria que combateu eficazmente, venceu e convenceu a pátria do pai dos povos e autêntico horizonte de onde proviria a felicidade neste mundo que esses mesmos nos garantiram, até na nossa Constituição de 1976.

Os próceres do comunismo de então, não suportam que se lhes lembre estas pequenas verdades e evidências, porque ainda está muito fresca na memória dos mesmos, a derrota e o fracasso das suas convicções que nos fizeram arrastar social e economicamente durante anos a fio, enredados em doutrinas que fatalmente foram sendo abandonadas, por serem simplesmente más, mas que continuam a defender em algumas das suas variantes.

Porém, como se entendem como seres superiores e advindos de esferas especiais do conhecimento gnoseológico, não se ficaram pelo abandono envergonhado de toda e qualquer actividade política, reconhecendo o fracasso e o opróbrio. Não. Viraram simplesmente o bico ao prego e passaram a defender com o mesmo arreganho e convicção, as ideias necessariamente contrárias àquelas que defendiam antes, ainda há menos de vinte anos.

Porém, há um sítio ideal e um lugar no imaginário onde se redimem deste vira-casaquismo algo vergonhoso: nas críticas à execrada América do capitalismo livre! É um lugar ideal para amar as antigas ideias e para disfarçar nos seus hábitos de cristãos novos, repristinando as práticas velhas.

Porém, não se confundem com os críticos que sempre o foram desse modelo americano, nem se misturam entre os que não suportam os neo-cons. Isso seria anódino, mas o efeito que pretendem é exactamente o mesmo. Sob a aparência da virtude politicamente correcta de uma social democracia aggiornata, jazem as antigas convicções que objectivamente mostram e que a negam.

Paul Krugman para eles, é um mero aliado de circunstância. Se lhes mostrassem o que ele escreveu sobre a antiga pátria do sol radioso e sobre o sistema que ainda há poucos anos defendiam encarniçadamente, virariam a cara.

É por isso que agora os vemos imensamente preocupados com o sistema de apoio social americano. Para mostrar a evidência de uma escolha liberal?! Para demonstrar que o nosso sistema de segurança social ou de protecção civil é melhor?! Não me parece.

O que querem evidentemente mostrar, mais uma vez, é a falência de todo o sistema americano! Querem pôr em causa, toda uma forma de organização social e económica que afinal venceu e convenceu a antiga URSS, antiga pátria cujo sistema idolatraram sem reservas e reservaram críticas acerbas a quem as fazia nessa altura.

Assim, actuam como a raposa infeliz perante as uvas do progresso social a que não chegam por incapacidade ideológica: mal cai a parra de uma desgraça, na América, voltam-se e gritam: estão a ver?! É uma desgraça, a América.

E é. Principalmente para eles. Porque perderam uma pátria e não ganham outra. Vivem no limbo.

Publicado por josé 15:30:00  

4 Comments:

  1. zazie said...
    excelente e de facto até bastante meigo porque se o JPP entra no retrato a 100% o caso dos novos liberais é mais estranho.
    Na verdade dá-me ideia que só se agarram a este mito americano às avessas por uma questão de fincapé na dita trincheira da direita. Porque o que acabam por defender é que assim, sem intervenção atempada e evacuação das pessoas é que está bem. Assim é que deve ser liberal e cada um que se amanhe.

    Ia jurar que foi preciso este acontecimento para se notar esta propaganda pela lei do mais forte de modo tão claro.

    Não há cultura, não há noção de pártria nem de país, não há obrigação nacional: cada um que se cuide. E o Bush para eles até cuida demais. Só o defendem porque é atacado pela esquerda das causas socializantes (leia-se, neste caso-cuidar daquilo que governam)
    António Viriato said...
    Boa crónica, com oportunas chamadas à razão dos que tecem tão severas críticas aos EUA pela fraca organização demonstrada no debelar da catástofre do Katrina, quando é sabido que nunca abriram a boca ante as imensas catástofres que ao longo de décadas ocorreram nos países onde se dizia haver nascido o «homem novo», depois da mítica revolução de Outubro.Porém, aceitando a falta de autoridade desta gente, para criticar a actual situação criada pelo Katrina, a verdade é que o Estado de novo se dissolveu por aquelas paragens e voltou-se ali à velha lei da selva, em que cada um saqueia aquilo a que pode deitar mão e onde cada qual defende o pouco que tem com armas em punho. Já há uns anos, em Los Angeles, tínhamos visto o mesmo descalabro, na sequência de uma sentença contestada de um tribunal regular dos EUA. A facilidade com que o Estado desaparece em situações de crise nos EUA denuncia um profundo mal social e afinal uma ordem frágil e ilusória. Torna-se difícil,em momentos de crise, distinguir Nova Orleãs ou Los Angeles de Abidjan ou de Nairobi... E não é só pela cor dominante...
    josé said...
    António Viriato:

    Pelo seu nome, dei com um bom blog:
    Alma Lusíada.
    Mas não basta a referência. Importante, é uma crónica sobre José Pedro Machado, o filólogo que morreu recentemente e que pouca gente mencionou.
    Se fosse um qualquer apaniguado, teria honra de abertura de telejornal. Assim, ficou para a posteridade nas obras em que colaborou, uma das últimas sendo o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, que o Público vendeu há pouco tempo, em 8 volumes.
    António Viriato said...
    José,
    Tem toda a razão. José Pedro Machado foi quase ignorado pela nossa airada Comunicação Social. Uma ou outra pequena, ridícula, citação ou abreviada crónica, quase sempre com erros, e por aí se ficaram. Quem não pertence a capelinhas, nem goza de compadrios, morre mouro, como se usava dizer. Nem o mago da Comunicação, vedeta mediática por excelência, MRS, lhe dedicou mais que umas rápidas e atabalhoadas palavras, quase um mês depois do infausto acontecimento. Quase não se percebeu a quem se referia ele, que tanta banalidade costuma dali, daquela tribuna, enaltecer. E não poderia MRS alegar falta de elementos informativos.Enfim, critérios mediáticos... É a vida, como diria o outro PM, mais Engenheiro, mas, nem mesmo assim, mais bem sucedido na governação...
    Votos de continuada inspiração nas crónicas que aqui assina.

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