Pelo fogo, não!

No séc. XIV, a Inquisição santa, instituída em 1229, segundo A. Herculano (História da Inquisição em Portugal), era uma instituição tão banal como o era a Comissão de Censura do regime de Marcelo Caetano, em 1972, em Portugal.

Porém, neste ano, as edições Afrodite de Fernando Ribeiro de Melo, uma personagem deveras original da nossa contemporaneidade e que a TV devia recordar, publicaram o livro O Manual dos Inquisidores, ou Directorium Inquisitorum, atribuído a Nicolau Emérico (N. Eymerich, 1320-1399), um frade da ordem dos Pregadores (dominicanos) e grande inquisidor de Aragão.

O Manual publicado pela Afrodite em 1972 é uma repescagem de textos da penúltima edição do livro, datada de 1607, sendo certo que as práticas aí relatadas eram aplicadas aos herejes desde meados do séc XIV e a primeira impressão do livro data de 1578.

É um manual de literatura jurídica, importante pela precisão de conceitos.

Começa assim...

Há três maneiras de iniciar o processo em matéria de heresia, a saber: A Acusação, a Denúncia e a Inquisição. O processo é intentado por acusação, quando um Delator se ofereça para provar aquilo que afirme, submetendo-se à pena de talião quando tal não consiga provar. (...) Denuncia-se alguém como culpado de heresia, sem aceitar ser parte, unicamente por causa da excomunhão que atinge todos aqueles que não denunciam(...) e por via da Inquisição, a qual se emprega quando não há nem Denunciador nem Acusador. (...) Há duas espécies de Inquisição; uma geral que é a busca de heréticos; (...) outra tem lugar quando o qualquer rumor público faça chegar aos ouvidos do Inquisidor que tal pessoa disse ou fez qualquer coisa contra a fé.

O primeiro inquisidor português, no entanto, só aparece em 1376 e com pouca força ou convicção, ao contrário da vizinha Castela, onde pujava o fanatismo. Em 1482 aparece em Castela e Aragão, Tomás de Torquemada, o frade dominicano símbolo último da Inquisição e que escreveu um código da Inquisição, tendo como fonte o livro que no século antecedente, Nicolau Emérico escrevera. A obra deste Torquemada, de terror contra os marranos, judeus, obrigou-os a vir em debandada para Portugal e outros sítios, mais amenos e propícios à tolerância. Mas esta durou pouco e em 1531, foi restabelecida a Inquisição em Portugal, com muitos dos ademanes da de Castela.

No Manual dos Inquisidores, aparece a menção aos livros, em nota apócrifa...
Se os inquisidores podem inquirir e reprimir os que se atrevem a pregar certas proposições, com mais razão, sem dúvida, poderão proibir livros que as contenham: com efeito, estes pregam não uma vez nem duas; mas sempre, de dia e de noite, inculcam aqueles arrazoados aos ouvidos de quem os lê.(…) portanto, ou se devem proibir de todo, ou se podem deixar de vir a público, depois de terem sido muito bem emendados. ( …) A mesma opinião se deve ter também acerca daqueles livros ou tratados que versem assuntos inúteis, infrutíferos, ou de coisas ligeiras e ridículas. Em meu entender, os bispos não devem deixá-los ser impressos ou espalhados em suas dioceses; seja como for, convém, nestes casos, usar de senso e prudência.

Ora, esta história abreviada é contada a propósito do artigo no Público sobre a o despacho de Rui Grácio, logo a seguir ao 25 de Abril de 1974 a mandar destruir livros e revistas “de índole fascista. Tal ordem fundamentou-se na pretensão do autor em “levar o 25 de Abril à Educação, libertando-a desses domínios da ideologia fascista.”

O antigo director geral do Ensino Básico, Rogério Fernandes, justifica-se perante os leitores do Público, dessas actuações, recusando o epíteto de colaborador em “autos de fé”, através da ordem emitida para destruição pela maneira como os encarregados das bibliotecas das escolas acharam “mais conveniente”. Algumas escolas, como se vê pela fotocópia de um “auto de destruição” de livros de “índole fascista”, publicada na reportagem, acharam que o método mais “conveniente” erao do fogo! Porém, é isso mesmo que o antigo governante e professor catedrático jubilado de Psicologia e Ciências da Educação (!!) da UL recusa terminantemente e aparentemente o aflige: fogueiras, não! Fala no assunto, pelo menos três vezes, na pequena entrevista que dá ao jornalista e no artigo de opinião que escreve para sacudir a água do capote que lhe assentaram e minimizar a importância do aguaceiro. Acrescenta até no artiguinho de opinião que “ (…) em nenhum documento oficial do Ministério, figura a ideia ou se alimenta o propósito de destruir pelo fogo as bibliotecas.”

Fogueiras, não! Destruição?! Sim! Á vontade! A diferença?! Meramente semântica

Na simbologia própria à langue de bois que começou a fazer escola na época, a mera referência a “auto de fé, atribuído justificadamente a quem usava a expressão para combater o “fascismo”, deve ser um suplício em si mesmo.

Atrás da expressão, cavalgam os demónios todos dos Eméricos, dos Torquemadas e dos Savonarolas e isso é insuportável para quem queria à viva força mostrar que havia que “desfascizar!

É preciso ter lata para vir com a palavra “desfascizar! Ainda hoje?!! É que o tipo não se mostra sequer arrependido! Nem um pouco sequer.

O que era isso de “desfascizar”?! Quem é que era o “desfascizador?! Quem era o Emérico, o Torquemada, o Savonarola que veio nessa altura com as teses peregrina da “desfascização”?!

Temos a resposta: João Freitas Branco, Rui Grácio, Maria Justina Sepúlveda e Rogério Fernandes, pelo menos. Logo em 1974, a ideia era muito simples: “libertar a Educação dos domínios da ideologia fascista”! Ou , nas palavras preclaras do catedrático Rogério, poupar os leitores desprevenidos e culturalmente desarmados à propaganda do Estado Novo, do colonialismo, etc. Para cumprir tal desiderato, nada melhor do que recorrer aos velhíssimos métodos já descritos no Manual de Inquisidores! Destruir livros! Queimá-los?! Bem, até aí, nem tanto! Destruí-los bastava! Savonarola destruiu, em 1497, numa enorme fogueira de vaidades, obras literárias, de arte e tutti quanti afrontasse a sua particular visão religiosa.

Rogério Fernandes, Rui Grácio e João Freitas Branco não chegaram a tanto: limitaram-se a mandar destruir livros para “desfascistizar” a Educação. Assim, como quem “desparasitiza” bibliotecas públicas e lhes limpa o cadastro para registo futuro, substituindo os livros “maus”, “fascistas”, pelos livros bons, de acordo com a fé que os iluminava e ilumina, desgraçadamente.

Umberto Eco, no Nome da Rosa, tem uma belíssima alegoria para tais feitos: o bibiliotecário criminoso e que esconde os livros “maus” dos olhares profanos e dos que “ se encontram desprevenidos e culturalmente desarmados à propaganda” ... é um cego!

Publicado por josé 01:02:00  

2 Comments:

  1. zazie said...
    parabéns José! grande post! posso guardar?
    Gomez said...
    As férias do José são um regalo para os leitores! Bravíssimo!

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