Aborto - contra a corrente.
sábado, maio 07, 2005
O Aborto é dos raros temas que considero realmente desconfortáveis. Sendo a questão simples na essência é-me complicado defender posturas absolutas, no último referendo acabei por votar em branco.
Dito isto, reza o senso comum indígena que foi sensato e inteligente por parte de Jorge Sampaio adiar para as calendas o referendo sobre o aborto. Não há analista de pacotilha, anónimo ou famoso, que não teça laudas a Sampaio, alguns até vêem (!) na decisão de Sampaio uma inolvidável vitória de Marques Mendes e das direitas, mais, dizem que a introdução do tema foi um flop estratégico por parte do Partido Socialista, que terá andado a reboque do Bloco de Esquerda.
Mas por muito que custe contrariar a vox populi, os raciocínios correntes estão todos invariavelmente errados, a decisão de Sampaio é, inquestionavelmente, um grande frete às esquerdas e uma elegante rasteira às direitas, nomeadamente à direita grunge, incapaz de pensar, para além do seu próprio umbigo.
Senão atentemos aos factos...
É verdade que a questão do aborto não é uma questão premente, é também verdade que noutros lados, Espanha, por exemplo, com legislação similar, as coisas "funcionam" e lá nem mesmo o ultra-progressista Zapatero sente necessidade de as mudar por aí além, por outro lado também é verdade que, estúpida e irresponsavelmente, há por aí muito boa gente, à esquerda e a direita, que mais do que resolver um qualquer problema ético ou social, adora, literalmente, é o aborto pela simplificação que permite e pela pretensa separação de águas que levanta, esquerda de um lado, direita do outro. Há por aí, mesmo algumas alminhas iluminadas que alegam, com candura, que a luta contra o aborto , em abstracto, é uma das últimas grandes causas de direita.
Assim sendo não espanta que em Portugal as coisas não "funcionem". E não funcionam, porque Portugal continua o reino da hipocrisia, tudo se pode fazer, tudo é permissível, desde que não se saiba, e, sobretudo, não se seja apanhado, o que importa, sempre, são as aparências. Só que neste caso o que parece a quase todos não é.
Mais do que a resolução de uma questão o que trouxe o aborto para o centro do debate, aquando do último referendo, foi a necessidade - convergente - de separação de águas; A esquerda, mormente o PS, liderada pelo social-cristão Guterres, precisava de algo que lhe permitisse recuperar a sua alegada identidade (Blair estava, como está, demasiado presente) reconciliando-a com o seu passado jacobino, a direita, em crise de identidade, não deperdiçou aquilo que via como uma oportunidade, por via do pantomineiro Marcelo... Deu no que deu. E, com o tempo, todos se sentiram vencedores.
A esquerda perante a complacência hipócrita da direita, "reencontra-se", exige periodicamente novo referendo, alegando lacunas na presente lei, e a direita, muito convenientemente, esbraceja, sentindo-se feliz por "não ser de esquerda". De permeio, ninguém faz rigorosamente nada quanto ao establecimento dde condições para o estrito cumprimento da lei em vigor, muito menos investe tempo a recordar que ela cobre praticamente todos os casos minimamente "discutiveis" e passiveis de discussão. Não se faz rigoramente nada porque não convém. Porque tem que se ser contra ou a favor, porque o meio termo não pode existir, porque ser contra, simplesmente, é de direita, como ser a favor será de esquerda.
Chegou-se, desta forma, à presente situação que muito parece alegrar os estrategos de alguma direita. Tem razões para isso. Não sendo premente, nem tendo sido particularmente tema de campanha nas últimas legislativas, o facto é que o assunto foi colocado em cima da mesa. E tendo-o sido, o ideal é que fosse de facto debatido, com um mínimo de seriedade. E seriedade seria, com humildade, reconhecer que o âmbito de algumas das modificações que presentemente se pretendem introduzir não é, simplesmente, referendável, porque o aborto não é um método de planeamento familiar, ou, então, forçar o referendo e demonstrar, não seria díficil, que a presente Lei já cobre as "necessidades" das mulheres e que a extensão das alterações pretendidas significa - apenas - transformar o aborto em, mais um, método de planeamento familiar.
Mas alguém acha que se está de facto a discutir o aborto ? Esquerda e Direita, querem é manter a sua identidade, whatever it takes, e para a Direita, nomeadamente a mais farisaica, isso significa manter a questão em aberto por tempo indeterminado, porque no momento em que for resolvida, perderão (!) uma das géneses da sua identidade, do mesmo modo que para a Esquerda e nomeadamente para o "fracturante" Bloco, perder a bandeira do aborto será o mesmo, ou quase, que um bebé perder o biberão.
Ao atirar-se de novo o assunto para debaixo do tapete, a consequência prática é que persistirá por tempo indeterminado esta separação artificial de águas entre direitas e esquerdas, que emergirá sempre que for conveniente.
E se-lo-á, e muito, nas próximas presidenciais... Onde certa esquerda e direita convergem no escândalo, no escândalo que é, para a esquerda, o Prof. Cavaco ser o preferido entre o eleitorado PS, e no escândalo que é, para certa direita, o homem nunca ter sido de direita, pelo menos da direita deles.
Para terminar, quero dizer que não considero que a temática do aborto seja de direita ou de esquerda, como não considero a inteligência e lucidez monopólio de qualquer dos lados, mais, sou - pessoalmente - contra, em, praticamente, todos os casos, considerando, todavia, que há situações em que é perfeitamente possivel alguém recorrer a tal método extremo em consciência e pelas mais legitimas razões. Mas não é isso que está em debate, pois não ?...
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Publicado por Manuel 18:39:00
Garnde número de Portugueses, como o Manuel, simplesmente não quis tomar posição. São contra o aborto mas também não se sentem bem a condenar as mulheres que o fazem.