PLÁGIO REGENERADOR (digo, Sebastianista)

Recebido de Juvenal, publica-se este postal...


---Depois de em marcha sonâmbula – mas rodeada de alvíssaras e amanhãs róseos – muito calcorrear Lisboa (e até cidades e serras) o Partido Sebastianista(digo, Regenerador) ressuscitou um dia, alvoroçado por entre as brumas duma chaminé co-inceneradora, pronto a reformar as suas hostes e o País contribuinte.
---Era um personagem de fato austero, passo hirto, voz possante, sorriso comedido às ovações esperançadas que o acolhiam de volta ao mundo dos vivos.
Ninguém sabia bem o que aquilo queria e, à esperança juntava-se a curiosidade.
Mórbida é certo – alguns mirones diziam ser um óbvio D.Sebastião, recauchutado sob a forma europeísta, outros, pelos cafés, alvitravam tratar-se só de uma variante latina dos mórmones ou, mesmo, a face pública de uma associação secreta de cangalheiros, rendidos ao choque tecnológico do século XXI.
Pelo País, alegadamente moribundo, e por Lisboa (que é o resumo do País) corriam, pois, os mais inverosímeis boatos. Mas, imperturbável, pelo Rossio o personagem avançava, a passo certo, pesado, com a solene solidez de centurião romano em procissão de semana santa.

---Ao princípio, e apesar dos vivórios, o seu caminhar seguro causava uma imensa impressão nos passantes e nas senhoras que andavam às compras na Baixa mas, por último, alguns atrevidos (incluindo jornalistas) foram-se chegando, e já no Terreiro do Paço, aí por alturas do "Martinho d’Arcada", começaram a tocar-lhe com o dedo, a ver se era de pau ou de alguma liga metálica, importada da aeronáutica. Era de carne…real. Percebeu-se mesmo que suava.
Com audácia crescente resolveu-se pô-lo a perguntas.
---Senhor – adiantaram com vénia – circula por aí que vindes regenerar, restaurar o País, com a confiança da Vossa maioria absoluta. Qual o Arquétipo, o Lema, qual o Princípio, a Idéia em suma, que norteia a Vossa missão reconstituinte?...
Em matéria de Educação, por exemplo?
– Contra os "lóbies"! – respondeu, seco e sábio, o Partido Regenerador(Sebastianista, digo).
---Espanto geral.
---Bom…e em matéria de Defesa Nacional?
– Choque tecnológico! – grunhiu, saboreando o impacto, o Partido Sebastianista(digo, Regenerador).
---Silêncio incrédulo….
---Ora, e no Trabalho?
– Contra os "lóbies"! – roncou, triunfante.
---Bem, e na Segurança Social?
– Choque tecnológico! – rugiu, firme.
---Como…? Na Segurança Social?
– Contra os "lóbies"! – voltou a rugir.
---Safa!...E na Economia? na Agricultura?
– Contra os "lóbies"! – urrou.
---Bolas…! E na Cultura?
– Choque tecnológico! – mugiu, de olhos já revirados.
---Caramba!...E a Questão Europeia?
– Contra os "lóbies"! – bradou, possesso.
---Irra!...Mas, na questão do Aborto?
– Choque tecnológico! – uivou.
---Também no Aborto?
– Contra os "lóbies"! – tornou a bramar.
--- Já agora, e na Co-Incineração?
– Choque tecnológico! – ganiu, com raiva.
---Silêncio de chumbo…
---…E na área da Justiça, dos Tribunais?
– Contra os "lóbies"! Contra os "lóbies"! – espumou, com rouca indignação, dando enérgicas patadas no lajedo.

---... Aí tentaram apaziguá-lo, enquanto um sujeito de óculos e cachecol, que se acercara vindo do largo portal que n’Arcada dava acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, dizia, pressuroso, que não valia a pena tudo aquilo, sugerindo um leque, um abano…
– Contra os "lóbies"!...mmee…éh…ih… – rouquejava, já.

---O sujeito de óculos, curvava-se de ouvido sagaz, ajeitava o cachecol, chamava a atenção, parecia-lhe que o Partido Sebastianista acrescentara mais um fonema, mesmo uma idéia: «menos férias» ou algo assim…e apoiava muito! dizia, apoiava muito!
---Com redobrado interesse e esperançados naquela variante, fizeram-no sentar então, por alvitre do sujeito do cachecol, no degrau do largo portal do Supremo e repetiram, todos à uma: – Menos férias? Nos Tribunais, é?...
– Contra os "lóbies"!...mmee…éh…ih… – estertorava, os lábios brancos de saliva seca, dando novas patadas ansiosas no lajedo.
---Instalou-se, então em volta, um desorganizado terror. Voltaram até a tocar-lhe com o dedo…continuava de carne. Continuava a suar. Já exalava, mesmo. Aquilo não dizia mais nada, e sem variantes, afinal…
---Foi aí que um moço louro, estreado há dias nos Noticiários duma rádio local, recobrou o sangue frio e sugeriu novas experiências, augurou novas variantes…
---Que horas são?
– Contra os "lóbies"! – rosnou, retomando a voz com rancor.
--- Apre!... sabes qual a farmácia de serviço?
– Contra os "lóbies"! – espumou, num sufôco, feroz.
---De redor trocavam-se olhares esgazeados, desabotoavam-se colarinhos, arregaçavam-se mangas de camisa, num esforço de compreensão solicitou-se, mesmo, o auxílio dum padre que por ali passava e que, debruçado, numa voz meiga, sugeriu tentativas mais pedagógicas, mais doces:
--- Bom…agora com calma: Gostas mais do papá ou da mamã?...
– Contra os "lóbies"…! – gemeu, exausto.
---Deram-lhe finalmente um copo de água.
---O sujeito de óculos e cachecol quis afastar dali uns fotógrafos da imprensa, assegurando, com muita rectidão, que não tinham nada que o fotografar naquela cena, que só tinha vindo cumprimentar um amigo, aliás que já se ia embora, e num gesto de compulsiva caridade retirou o cachecol, enrolou-o com presteza no pescoço solene do Partido Sebastianista, acautelando-lhe a infrene rouquidão e retirou-se, recomendando muito que, na próxima, o copo d’água – fosse com açúcar…
---A imprensa, o padre e os curiosos debandaram. Ao longe continuava o vivório.
---Foi, então, com desgostada mágoa que os moços da imprensa reconheceram, nos periódicos da manhã seguinte, a grande Saudade dos tempos do Diálogo em S.Bento e do fado manso gargarejado em água benta. É que, mais uma vez, o partido Regenerador (digo, Sebastianista) não tinha Idéias: só reacções de Pavlov…arrancos vocais…entradas de leão...e, de novo, mesmo, só uns tiques remoçados de autoritarismo pombalino.
---Ah!: e publicaram, com feia malícia, a foto com o sujeito de óculos e cachecol. Andou muito tempo, coitado, a justificar-se (não fossem pensar que também não tinha idéias…).
---Que sina.

Notas de Rodapé
("…estalando de riso por todas as entrelinhas, mesmo quando franzem a testa" - Eça de Queiroz
[sobre as Farpas, in «Uma Campanha Alegre»] )

JUVENAL
contribuinte fiscal
.

Publicado por josé 15:08:00  

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