A teia do medo

O que se passa na Madeira, uma ilha, pérola do Atlântico, com cerca de 260 mil habitantes, 120 mil deles concentrados no Funchal, costuma interessar pouca gente.

As notícias saltam, às vezes, para dar conta de antagonismos políticos acirrados e que redundam em peixeiradas visíveis para a comunicação social "mainstream", como foi o caso recente dos "sifões de retrete" para "hipopótamos adormecidos".

Se a Madeira tivesse a importância da Itália, porém, os fenómenos provavelmente já teriam dado à capa da Economist. Assim, só se fala de rábulas carnavalescas e do traje de ocasião do presidente do Governo Regional!

Porém, o que vem hoje na Visão parece-me uma daquelas reportagens cujas imagens valem mil palavras e em que as centenas de palavras do artigo assinado por Miguel Carvalho, valem um retrato preciso e uma imagem focada e que se assemelha ao verdadeiro autoritarismo fascista: o da repressão efectiva e eficaz da discordância e dissidência, com a disseminação do medo, generalizado, de falar livremente e de afrontar os poderes fácticos aí instalados.

Não se trata de um problema da oposição. Não é mais uma questão de política interna a espelhar a luta pelo poder político. É muito mais do que isso, embora muitos o queiram reduzir a essa disputa, iludindo a questão de princípio.

Esta, foi bem explicitada nas palavras de despedida do ex-comandante da Zona Marítima da Madeira, Figueiredo Robles a quem aí chamaram "colonialista"! Escreveu uma carta aberta a Alberto João Jardim em que lhe disse da "inqualificável pressão par fins pouco claros, a qualquer preço e sem qualquer pudor." E falou ainda da coragem dos que têm de enfrentar o medo, na região. Que medo é este?
Segundo o antigo advogado do regime, Filipe Sequeira, titular do escritório SMS, por onde , dantes, passava tudo, é mesmo um medo físico, de agressões concretas e que o faz dizer seriamente que "corro riscos ao dar esta entrevista", (à Visão).

Para se entrever a expressão deste medo, comecemos pelas imagens da Visão...

Em seis fotogramas alinhados no topo de duas páginas, vemos uma sequência delas, tiradas pelo fotógrafo da Visão num espaço público - a Assembleia Regional - onde se reconhece um tal Cunha e Silva, advogado e antigo sócio daqueloutro, actualmente vice-presidente do Governo regional, a olhar, notoria e desconfiadamente desagradado, para o fotógrafo.

No segundo fotograma, o deputado Cunha e Silva esconde a cara e a expressão, com a mão, e segundo o fotógrafo, nesta altura estaria a avisar Alberto João Jardim, ao seu lado e a discursar, fazendo-lhe notar discretamente, o intruso.

Jardim olha para o fotógrafo de modo iniludível e severo e dirige-se ao presidente da Assembleia que por sua vez, mira o fotógrafo com curiosidade que se estende a um assessor que, também ele, olha para o mirone da Assembleia.

No último fotograma, vê-se o tal Cunha e Silva a fotografar, por sua vez, o fotógrafo, com o telemóvel em riste.

É só isto! As imagens até podem estar manipuladas, embora se deva presumir a inteira credibilidade do fotógrafo e por isso a fiabilidade da interpretação, tendo em conta o contexto .

Mas quem as olhar e ler o texto, perceberá numa instante, aquilo de que fala Umberto Eco, ao escrever sobre o "fascismo eterno",o Ur-fascismo, num dos seus Cinco Escritos Morais.

Tal como Eco descreve, por ali, na reportagem da Visão de hoje, passa a imagem, em palavras, da recusa do pensamento crítico que opera distinções e erege o desacordo como traição; por ali passa o medo à diferença e a recusa de intrusos; por ali passa a imagem clara da ascensão de uma classe média nova-rica; ali passa uma espécie de xenofobia disfarçada e que repele o "contenente", num nacionalismo ilhota e que por vezes aflora em escritos e dizeres públicos com ameaças de secessão.

Ali passa a imagem do medo do putativo "inimigo", bem notórias na foto; ali passa o princípio da guerrilha permanente de palavras e actos consecutivos. Ali passa também a imagem de uma transferência da vontade de poder para questões sexuais, com o machismo latente e pesporrente nos ditos desbocados . Ali passa o populismo aberto e qualitativo, com denúncia da III República apodrecida em Lisboa e a consequente deslegitimação dos poderes constituidos. Por ali passa uma neo-linguagem, para uso em comícios regados de boa disposição e alarvidades várias, com heroísmos de feira. Por ali passa ainda a noção de que a instrução deve ser primária, porque assim chega. Por ali passa, finalmente, a real apetência pelo elitismo das altas esferas e o desprezo pelos mais fracos que se calam com medo desse poder avassalador que lhes tiraria o emprego num instantinho.

Foi por isso que Figueiredo Robles também disse que...

curvo-me respeitosamente perante aqueles que, vivendo o quotidiano nessa região, ousam fazer da sua verticalidade um hino à coragem.

Como se torna isto possível neste cantinho de Portugal que se costuma chamar a pérola do Atlântico? Não temos exemplos destes em mais nenhuma outra região do país! Não há nada que se pareça e seja conhecido, mesmo nos locais de maior caciquismo tradicional.

A Visão aponta uma explicação...

Festas, beberetes, jantares do Rotary Club, dos Amigos do Peixe e da Academia das Carnes, os convívios entre figuras gradas da política e do meio judicial são constantes. " O ritual de encantamento sobedece a regras muito rigorosas e incide sobre um vasto leque de altos funcionários forasteiros: ministros da República, majores-generais,capitães-de-mar-e-guerra, juizes, procuradores, comandantes da GNR, coordenadores da PJ,SEFe SIS e directores de Finanças" , ilustrou, em recente crónica, Miguel Fernandes Luís, do DN da Madeira. Depois das sudiências da praxe, a "vítima" recebe semanalmente, "dezenas de convites para iniciativas(...)Com tanto convívio é fácil fazer novos amigos que, por sua vez, têm conhecidos/familiares com pequeninos problemas que "o amigo visitante" ajuda a resolver.

Uma mão lava a outra, escreve o jornalista. Ferreira Neto, durante 13 anos foi juiz de círculo na Madeira, mas...
pagava o preço de ser isento e independente. Se não formos alinhados, marginalizam-nos socialmente. Com grandes custos familiares. A dada altura , conhece-se toda a gente, é difícil ser juiz. (...) Sentia-me incómodo para o poder político. E como não sou domesticável...
, diz o juiz.

Segundo a Visão...
" Num curso de jornalismo judiciário na Madeira, os jornalistas queixaram-se, na presença de juízes de fazerem notícias de casos polémicos que depois não são investigados pelas entidades competentes. O jornalista é que apanha uma queixa por difamação."
E o advogado
António Fontes, social democrata, diz ainda mais...
Estou convicto da existência de uma grande promiscuidade entre o poder político e o poder judicial.
Pois...

A reportagem da Visão da semana é um retrato do medo... na Madeira, já denunciado por outros e nunca entendido pela maioria.

Em Portugal, em 2005, numa ilha que é parte integrante de Portugal, mais de trinta anos depois do 25 de Abril e por causa de uma pessoauma única pessoa, repare-se bem!- que consegue ganhar eleições a eito, e se resguarda inevitavelmente nesse alibi inatacável, vive-se assim!

Muitos se queixam; poucos se fazem ouvir. A resposta do poder instituído na Madeira, aliás, legitimado democraticamente, é sempre a mesma: antes do poder da trilateral e da maçonaria era a esquerda o bombo da festa. Agora, continua a ser a esquerda e "os idiotas úteis" a que se acrescentam as oposições, mais os jornais que não escrevem artigos laudatórios das grandes obras. E são estes, sempre que é preciso, que pagam a despesa, pois é com estes que ela se tem feito também. Segundo a reportagem- o jornal JM recebeu durante 2003, mais de mil contos por dia!

Deverão os restantes 10 milhões de portugueses, ficar constantemente sujeitos a estes enxovalhos? A esta vergonha permanente? A democracia compadece-se com isto? Não há volta a dar-lhe?!

! E a resposta está obviamente no poder político central! Particularmente no PSD nacional! A reportagem da Visão devia fazer acordar muita gente para este pesadelo e despegar de mais uma anomia.


Publicado por josé 15:21:00  

2 Comments:

  1. Joao said...
    O dia correu-me mal. Mas e depois? Que se lixe a Madeira, que se lixe o AJJ, que se lixem todos, que venha un Tsunami e os leve a todos. Afinal votam nele não é? Que temos nós a ver com isso? Deixemos de ir lá em férias.
    zazie said...
    Bom texto José! É assustador e disto não se fala. Aquilo é tudo bastante assustador e só lembra o colonialismo. Quem esquecer os hotéis e se meter por aquela serra dentro parece que recua um bom século no processo civilizacional. E depois temos os negreiros na capital.

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