Natal ou a derrota do pensamento
quarta-feira, dezembro 22, 2004
Mandam os costumes que se ofereçam coisas nesta época. A maldita tradição judaico-cristã que nos cruxifica diariamente, exige a mais radical hipocrisia. Eu, por norma, não ofereço nada ou muito pouco. Gosto, no entanto, de sugerir leituras. As que mais gosto, naturalmente. O excerto que coloco aqui de seguida pertence a um livro a que regresso amiúde. Não está "na moda" nem acabou de ser lançado. Tem o oportuno título de A Derrota do Pensamento e o seu autor é o filósofo francês Alain Finkielkraut (Dom Quixote, 1988). Serve para reflectir enquanto se deambula pelos corredores anónimos dos centros comerciais ou pelas ruas com luzinhas irritantes a tremeluzir por todo o lado. Passaram os anos porém a "mensagem", incómoda mas verdadeira, permanece.
Com a condição de trazer a assinatura de um grande estilista, um par de botas vale o mesmo que Shakespeare. E tudo em conformidade: uma banda desenhada que combima uma intriga palpitante com belas imagens vale o mesmo que um romance de Nabokov; o que as lolitas lêem vale o mesmo que a Lolita; um slogan publicitário eficaz vale o mesmo que um poema de Apollinaire ou de Francis Ponge; um ritmo de rock vale o mesmo que uma melodia de Duke Ellington; um bom jogo de futebol vale o mesmo que um bailado de Pina Bausch; um grande costureiro vale o mesmo que Manet, Picasso, Miguel Ângelo; a ópera de hoje - "a da vida, do clip, do jingle, do spot" - vale à vontade o mesmo que Verdi ou Wagner. O futebolista e o coreógrafo, o pintor e o costureiro, o escritor e o visualizador, o músico e o rocker são, com o mesmo direito, criadores. É preciso acabar com o preconceito escolar que reserva esta qualidade a alguns, e que mergulha os outros na subcultura. Ao desejo de humilhar Shakespeare, opôe-se assim o enobrecimento do estilista de calçado. Já não é a grande cultura que é dessacralizada, implacavelmente reconduzida ao nível dos gestos quotidianos realizados na sombra pelo comum dos homens - são o desporto, a moda, o ócio que forçam as portas da grande cultura. A absorção vingativa ou masoquista do culto ( a vida do espírito) no cultural (a existência costumeira) é substituída por uma espécie de alegre confusão que eleva a totalidade das práticas culturais à posição de grandes criações da humanidade.
Pensem nisto. "Have yourself a merry little christmas".
Publicado por João Gonçalves 13:32:00
2 Comments:
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- Anónimo said...
5:48 da tarde, dezembro 22, 2004eu penso que o que pensas do que as pessoas pensam poderá estar certo na maioria dos casos.- António Viriato said...
11:57 da tarde, dezembro 22, 2004Confesso que quando li este livro, logo que a D.Quixote o editou em Portugal, no fim dos anos 80, ele me causou funda impressão, a começar pelo título «A Derrota do Pensamento/La Défaite de la Pensée» que corresponde a uma atitude mental corrente no nosso tempo. Poucos se dão ao trabalho de pensar por si os assuntos que estão na actualidade. Muito melhor é confiar em quem sobre eles já emitiu opinião, de preferência se pertencer a um partido da esquerda bem pensante, regularmente associado ao poder, quando ganha as eleições e quando não ganha, mas se mantém à frente das instituições que influenciam o poder. Quase todos os chamados fazedores de opinião temem pensar pela sua própria cabeça, até para não correrem o risco de concluir de maneira diferente dos chamados líderes, políticos ou não.E assim chegámos, creio que, pela primeira vez, na História, a uma estranha situação, em que o povo, os cidadãos, dão provas de maior sensatez e maturidade político-cultural que os seus ditos líderes. É ver como se dividem as opiniões sobre a entrada da Turquia na Europa, a adaptabilidade do Islão aos padrões de vida moral e mental europeus, a aceitabilidade dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo e outros tantos temas ditos fracturantes, que, na verdade, vão dilacerando as teias sociais que tornaram durante décadas a vida possível, pacífica, convivente e tolerante, pelo menos aqui na Europa, na América do Norte e na Oceania.Ao contrário, hoje parece que tudo se desmorona. Terá o pensamento racional, apanágio da espécie humana, vindo a ser progressivamente derrotado, ao ponto de ele próprio, hoje, se demitir da sua inerente função, permitindo a proliferação de absurdos , na nossa forma de viver, contrários ao nosso bem-estar individual, social e psíquico?