"bem vistas as coisas"


Aí vai mais uma heresia.

Bem vistas as coisas, e sem preocupações ou tabus corporativos, os tempos são outros. São tanto outros que o Ministério Público hoje não é, de modo evidente, o que era há trinta ou vinte anos, ou dez, se se quiser estar mais próximo no tempo.

Quem se lembra do Estatuto Judiciário e da teoria de Alberto dos Reis sobre o Ministério Público não se revê, de nenhum modo, na actual magistratura.

Sempre se teve por certo que as funções imanentes ao Ministério Público, respeitam ao exercício da acção penal e à defesa da legalidade que, após Abril, passou a ser democrática. Tive a oportunidade de dizer isto com outro colega, na primeira Lei Orgânica do Ministério Público, publicada em 1979.

Aí se lembrava o IV Congresso Interamericano do Ministério Público, onde se defendeu a necessidade de separar as funções próprias do Ministério Público das que, por razões históricas, sociais e económicas, lhe são atribuídas por lei, como representante do Estado e de outros interesses públicos ou privados.

O que significa que o Ministério Público deve representar o Estado-Comunidade e não o Estado-Administração.

É que, sendo magistratura, órgão de justiça, quadra mal ao seu estatuto entrar em domínios em que a lei não é restritamente defendida e antes, à sua frente, se colocam interesses públicos ou privados.

Exactamente porque, mas não só, o Estado alongou as competências do Ministério Público, é que esta este acumula, inevitavelmente, o desenrolar dos processos criminais, não faz prevenção criminal, não coordena os órgãos de polícia criminal, não dirige nada, nem a si próprio.

Aos Governos fica barato, mas aos cidadãos fica caro e o Ministério Público paga a factura dum produto que não comprou.

E perde muito dos seus quadros superiores em matérias inúteis e de sine cura.

Quem se der ao trabalho de ler o relatório da PGR de 2002, que o de 2003 ainda não foi publicado, vai verificar situações confrangedoras que revelam a falta de liderança de que falava há dias Rodrigues Maximiano... Tanto mais que outros, no mesmo grau hierárquico, aguentam com trabalho que sobra para outros tantos..

Assim, dando só alguns exemplos, o auditor jurídico da Assembleia da República, em 2002, elaborou 16 pareceres, o do Ministério da Defesa 6 pareceres, o do Ministério das Finanças 11 pareceres, o do Ministério da Economia 4 pareceres.

Ressalva-se a tudo isso o Ministério da Justiça e da Administração Interna, onde o trabalho é, à vista desarmada, mais que suficiente para três auditores.

Mas o que se quer dizer, e aí se quer chegar, é que o Ministério Público, tocando todos os instrumentos, não toca nenhum de modo satisfatório : os Governos ficam hipocritamente satisfeitos e o Ministério Público não topa o engodo. Na hora da verdade, pedem-lhe contas do que não pode fazer.

Se se apontar as centenas de milhares de inquéritos, as centenas de milhares de julgamentos, as centenas ou, ao menos, as dezenas de milhares de recursos penais e de constitucionalidade, os interesses da Comunidade no domínio do ambiente e outras áreas de ressonância global, terá de concluir-se que, pouco a pouco, o poder político prendou o Ministério Público com muitos poderes, mas não lhe confere um mínimo de capacidade logística para que os possa exercer.

E o Ministério Público, com uma ingenuidade que dá dó, fica radiante por ser o garante de todos esses poderes, sem que, na verdade, exerça um só com dignidade e competência que seria de exigir num estado democrático.

O Ministério Público, de modo formal, tem hoje atribuídas muitas competências, mas onde estão as provas de que as exerce com eficácia, legalidade e constitucionalidade?

O exercício da acção penal, a defesa da legalidade democrática e constitucional são o coração do Ministério Público, o ponto nodal onde deve intervir, gostem ou não os novos “teóricos” do Ministério Público fora dos tribunais, os “teóricos” de sacristia para quem os tribunais são um templo onde o povo só pode entrar com mesuras e logo se benzendo à entrada.

Todas essas questões devem ser repensadas, discutidas sem complexos, com o poder político e com os advogados, com a sua ordem.

É precisa uma optimização dos quadros superiores e médios do Ministério Público que se torna indispensável a que a justiça funcione mais convenientemente, na constitucionalidade, na fiscalização das decisões dos tribunais de modo a sujeitá-las ao veredicto do tribunal superior, sendo que é aí, segundo penso, e na acção penal, que se joga definitivamente a Autonomia do Ministério Público.

Por mais relevantes socialmente que sejam outras funções – e são-no – a verdade é que a sua doação ao Ministério Público não passa de um logro dos políticos que, assim, sacodem a água do capote e enterram o Ministério Público no lamaçal das ultra competências que tem e não pode exercer, naturalmente.

Por isso que, e Bem vistas as coisas, não me causa nenhum repúdio, nem estranheza, o discurso do Bastonário da Ordem dos Advogados que hoje veio a lume no Diário de Notícias.

Caramba, qual a razão que impede que se discuta isso de modo franco, leal, recebendo uns e outros os testemunhos a conceder? È sempre útil ouvir, mesmo que saiba, ou se pense que sabe, que se vai ficar na mesma. A história demonstra, em matérias muito mais grandiloquentes, que não é assim.

Alberto Pinto Nogueira

Nota
Há dias, apresentei aqui um “Compromisso Definitivo” de não falar em público antes que me esclarecessem certos factos. Responderam-me que estava tudo em segredo de justiça. Porque, como é sabido, nunca nada se sabe e o tal sigilo é eterno, rompo o compromisso. Aliás, pareceu-me que a resposta foi dada a pensar em calar-me.

Publicado por josé 10:53:00  

2 Comments:

  1. zazie said...
    Pois faz muito bem. Que isso dos silencias também era noutras épocas... hoje nem se nota a diferença entre os que são deliberados e os que são mandados...
    Anónimo said...
    A visão do Dr. Pinto Nogueira parece-me completamente ultrapassada e ignora a realidade social dos nossos dias. É evidente que a concepção de um MºPº para o século XXI não pode ser lida à luz da realidade vivida em 1979, quatro anos após a Revolução de Abril.
    Se bem entendermos, o legislador constituinte tem vindo a dar outras funções ao MºPº, para além das "funções basilares"( defesa da legalidade e exercício da acção penal), sempre na perspectiva da defesa daqueles interesses ou extractos sociais mais débeis ou que se admite precisarem de especial cuidado e protecção colectiva.
    Tal traduz uma concepção de um Ministério Público empenhado na defesa da igualdade dos cidadãos e, nessa medida, da legalidade democrática.
    Por outro lado, um acelerado movimento de globalização e uma crescente redução do papel do Estado conduzem a uma desjudicialização e privatização dos mecanismos de resolução dos conflitos. A este propósito convem lembrar que ganham peso na resolução dos conflitos os tribunais arbitrais e os julgados de paz, sem que o MºPº aí tenha qualquer intervenção.
    A concepção de que o MºPº tem como primordial função o exercício da acção penal, para além de fortemente redutora, ignora a realidade social dos nossos dias e conduz ao esvaziamento progressivo do primado da lei.
    C.J.

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