"o  s o c o"


Conheci há muitos anos (já sou velho) um jornalista em Paris. Tivemos grande proximidade, pois que ele mantinha relações de amizade com amigos meus que viviam na capital gaulesa.

Como seria natural, as nossas conversa gravitavam à volta do direito e do jornalismo.

Lembro-me, como se fora agora, que, segundo ele, não interessava propriamente a notícia, mas antes o empolgamento que o jornalista conseguia transmitir. Se um comboio descarrilava, como aconteceu à data, não relevava o descarrilamento e consequências nefastas, mas o modo como o jornal conseguia, e fazia por chegar isso ao público.

No diário onde trabalhava, logo na primeira página, acentuava-se o drama, as mortes e fotos com pessoas tragicamente falecidas.

Tendo protestado pelo que achava ser de exploração da situação das vítimas, tive por resposta...

...você não percebe nada disto, o que interessa é o soco no estômago, sem isso o jornal não se vende...

Nos dias que correm, isto é o pão nosso de cada dia. Nos jornais e nas televisões. Basta abrir um jornal, ligar um telejornal, logo se encontrando o drama, a focagem do acessório, o empolgamento dos factos, os títulos que nada têm a dizer com o texto desenvolvido. Mercado.

Jean-Jacques Jesper, na sua obra "Jornalismo Televisivo" afirma que o público exige emissões de "qualidade, mas prefere programas demagógicos". Chama a isto fenómenos de esquizofrenia. E é.

Esquizofrenia que a comunicação social sabe explorar.

Veja-se aquela televisão que, ante uma tragédia, e ante um familiar de uma vítima, perguntava... "...e a srª., como se sente?...". Como se pode sentir um familiar de alguém que, momentos antes viu o filho falecer pela queda de uma ponte?

Por outro lado, como se escreveu no Le Monde, em 15/4/91, citado pelo autor antes apontado, " para ser ouvido por muitos é preciso não incomodar ninguém...".

O que, como é bom de ver, igualiza tudo por baixo, ao nível inferior do sensacionalismo. Este é, nos dias que correm, o tal "soco no estômago" de que falava o meu amigo francês.

Veja-se outra pancada no estômago.

Há uns anos, um jornal dizia que um juiz fora acusado "por ter opinião". Em título.

Aparentemente, o magistrado fora acusado por um delito de opinião contra todas as regras da democracia e de liberdade de expressão e pensamento que, evidentemente, um juiz tem.

Ao ler-se a notícia, via-se que não era nada disso, antes o magistrado contra as regras processuais, publicitara o seu voto, coisa que, em termos de julgamento dos factos, a lei não permite para salvaguarda do próprio juiz e para salvaguarda da liberdade de julgamento, protegendo-o, assim, e aos pares, de especulações e mesmo de vindictas.

Há duas horas atrás, assistimos estupefactos à transmissão em directo de um tribunal do protesto desesperado, e humanamente compreensível, de um agente da BT que, de modo dramaticamente perceptível, protestava a sua inocência pelos factos em que o tribunal o condenara. A televisão transmitiu, por diversas vezes, aquela cena dorida de um homem condenado e que se tinha por inocente.

Não se trata, nem trataria da inocência ou culpabilidade do agente, antes da exploração jornalística de sentimentos emocionais que todos compreendemos. Poderia esperar-se que o jornal anunciasse a condenação, mas não se ficou por aí.

Ao proceder, como procedeu, os objectivos são claros: subliminarmente, a televisão deixava no ar a hipótese da inocência de quem protestava pateticamente, depois, e mais à superfície, explorava sentimentos de solidariedade dos telespectadores. E explorava de jeito condenável a dor de um condenado.

Se o agente tivesse sido absolvido, a estação iria rebuscar nos arquivos o momento da prisão preventiva de todos os que foram arguidos no processo, a acção policial desencadeada a seu tempo e ela, televisão, julgava culpados, mesmo os inocentes. Porque, como se sabe, os cidadãos vão à televisão "buscar a justiça que os tribunais não dão...".

Chama-se a isto o tal "SOCO NO ESTÔMAGO" e que hoje tem uma designação mais eufemística, o sensacionalismo.

Lembrem-se os jornalistas, e nós também, que hoje é o dia do jornalismo para paz.

Alberto Pinto Nogueira

Publicado por josé 13:48:00  

11 Comments:

  1. josé said...
    Talvez as declarações que Marcelo Rebelo de SOusa está nesta altura a prestar perante a AACS, o façam acordar dessa letargia anómica.

    O que se diz no postal é uma glosa sobre a manipulação dos media para produzir efeitos no mercado.
    O condicionamento da liberdade de expressão que também já atingiu o aqui autor do post por causa de uma entrevista que deu ao JN e em tempos aqui comentada, é um assunto sério.

    Parece que o 25 de Abril de 1974 e a conquista constitucional da liberdade de expressão ainda é uma miragem em certas paragens, como são o CSM e o CSMP, às vezes.
    Calar vozes incómodas é uma tentação de quem tem poder e não gosta de o ver questionado na praça pública.

    O poder do CSM e do CSMP não é dos respectivos presidentes, nem eles são guardiões de templos- que os não há, pois o laicismo é norma, mesmo nestas confrarias que são o MP e a magistratura judicial.

    Assim, há efectivamente quem se pele por socos no estômago daqueles que têm veleidades de publicamente os questionarem, mesmo fundadamente.

    Por causa dessa evidência, podemos ver que por exemplo no blog Incursões,( e até por aqui) uma boa parte dos comentadores que podem muito bem ser magistrados, assumem um estatuto confortavlemente anónimo. Essencialmente, porque têm medo! De quem?! Dos Conselhos SUperiores!
    Zé Pedro Silva said...
    Caro Alberto Pinto Nogueira,
    O seu texto, revestido de desabafo (acho que entendi bem) é notável. Acho até que se trata de um sentimento comum. Nos nossos conhecimentos, por diversas vezes temos estes debates, e quase sempre há um ponto comum: a exploração meramente económica do mal dos outros. Não há, na maior parte das vezes, nenhum contributo social ou cultural das notícias. Mas o interessante é pensar no que se pode fazer para mudar? Nada! O único que poderia modificar erguendo regras aos responsáveis, ou seja, o legislador, é o principal dependente desse mesmo mercado. Por outro lado, nenhum político quer ficar com o peso de ter construído alguma forma de censura. Esta palavra até provoca medo. Mas não devia.
    As imagens que referiu do agente deviam ter sido censuradas, as imagens (que vi há instantes) do resgate de um corpo vítima de naufrágio deviam ser censuradas. Se o bom senso dos directores de informação dos órgãos de comunicação social não basta, pois que se aplique a lei. Se houver lacuna, pois que se interprete normas que, já existindo, poriam muitas barreiras a determinadas condutas jornalísticas. Admitindo que quem não pode o menos não pode o mais, como se justifica que pelo CC 280º nº 2 seja nulo qualquer negócio contrário à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes, mas que uma estação de televisão possa explorar o sofrimento. E aqui estamos fora da autonomia privada, pelo que mesmo com a concordância das partes (jornalista e interveniente), a lei deveria proibir certas reportagens.
    Mas que fazer, neste momento, os leitores destes comentários já me estão a acusar de um chorrilho de intolerâncias e fascismos... A democracia é muito recente e ainda há muitos estigmas.
    A sociedade portuguesa (como outras, a americana, estou a lembrar-me) está viciada nesta constante especulação e exploração da dor. Qualquer canal que saia deste trilho, perderá audiências e assim, o negócio. Por este facto, só a lei poderá alterar o actual sistema. E a lei, essa, provoca repugnância. Que inferno!
    Anónimo said...
    Efectivamente, podemos ver que, por exemplo neste blog, uma parte dos autores assume um estatuto confortavelmente anónimo.

    Essencialmente, porquê?!
    josé said...
    Que fazer? Talvez quase nada!

    Ao ler o comentário, lembrei-me de uma revista que há bocado vi no quiosque. É francesa, recente e dedica-se a explorar o lado chocante das notícias: corpos esfacelados,a arder, a apodrecer ou simplesmente a morrer.Desastres e acontecimentos espectaculares!
    Fotos de ocasião, que apenas são vistas pelas testemunhas da ocorrência, dão assim a volta ao mundo, permitindo o voyeurismo de quem disso sente necessidade.

    E parece que a necessidade é alimentada a preceito por quem disso faz vida, explorando o nicho de mercado.
    Para exemplo, é ver aqui o site da revista:
    http://www.chocmag.fr/

    Em Portugal, a imagem do GNR condenado, ontem, chocou-me pela crueza e pela violência de quem se sente condenado a cumprir pena de prisão por algo que intimamente não sentirá como sendo merecedor.
    A mim, não me diz que o indivíduo está inocente ou é culpado, porque isso não me chega. Está para vir o dia em que um condenado a pena de prisão, aceite de bom grado a condenação. Todos protestam inocência e se os julgamento se fizessem apenas com a versão dos arguidos, as absolvições eram quase totais.

    Porém, o problema da transmissão televisiva de imagens choque, não tem grande solução. A censura não serve de remédio, porque não se garante que quem censure, o faça apenas no limite daquilo que socialmente é aceite.
    A tentação de censurar conteúdos de outra natureza seria sempre muito grande, como se demonstra pelo teor das declarações de MRS na AACS.

    Assim, havendo liberdade e sendo esta um valor importante e fundamental a preservar, a opção é aceitar o mal menor. E este será o de se poder protestar por tudo aquilo que nos fere a sensibilidade, sendo certo que há determinados valores comuns que ainda não estão abandonados, mas há outros que definitivamente já o foram: é esse o preço.
    Por exemplo, no sexo, a tv hoje mostra o que há dez anos não seria possível sem cair o Carmo e a Trindade. Essa evolução nos costumes parece-me mais positiva do que negativa. E contudo, ainda há quem proteste e vocifere.
    Na violência, há filmes na tv com muita violência, mas plastificada, meditatizada e que não tem o cheiro da morte- esse é que é a barreira final.

    A imagem da morte na tv pode ser, assim, de uma violência extrema e cuja visão é escusada. Não é notícia a exposição de um cadáver de um afogado ou de um mutilado num atropelamento, pois provoca choque desnecessário a quem vê. Porém, se quem mostra o faz para conquistar a percentagem de espectadores que apreciam esse voyeurismo, pode e deve ser vituperado por isso. Esse direito que cada um tem de não ver ou de não olhar para a morte de frente, não deve ser negado ao espectador distraído. Quem quiser ver, que o faça - mas deve respeitar o pudor alheio e maioritário.

    Quem mostra essas imagens deve ser criticado abertamente sem medos de ser apodado de censor- porque a censura é feita por quem mostra, ao negar o direito ao pudor alheio.
    Se no sexo, o conceito vai alargando e é uma questão de costume, na visão da morte não é, pois todas as culturas respeitam a morte.
    Quem a não respeita são os bárbaros de hoje- como eram os de ontem.
    josé said...
    Caro anónimo:

    Há alguns meses, escrevi um postal em que tentei defender o estatuto do anónimo que escreve na net. Essencialmente, é um direito que deve ser preservado.
    Mas referia-me ao anónimo que escreve sob pseudónimo e que não quer dar a conhecer sempre que escreve, qual a sua identidade de bilhete. Isso não significa que se esconda atrás do pseudónimo para assumir escritos apócrifos que o próprio gizou e o alter ego transcreve.
    Não é bem assim. E tanto não é que sempre que o meu pseudónimo escreve fica lá a marca de água que é o endereçoi de e-mail. Isso para já não falar na quantidade de pessoas que sabe muito bem quem se acolita atrás do nome próprio...deixando de fora os apelidos.

    COisa muito diferente é a escrita anónima completa. Os comentadores que escrevem e que não há meio algum de descortinar a que clube pertencem, por se tornarem virtualmente transparentes se alguém lhes quiser ver o perfil, para além do escrito.
    Por mim, não me incomodam muito esses cultores do mais rígido anonimato. Os que insultam dessa forma, podem muito bem ter a certeza que se diminuem mais a eles próprios do que outra coisa, pois denotam cobardia assumida.
    Os que comentam por interesse em ser lidos, aprecio seja com anonimato ou sem ele.
    Mas referia-me a certos comentadores, magistrados de profissão ou jornalistas que me parecem esconder-se no mais completo e opaco biombo, por terem receio de alguém os topar e comentar a prestação.
    Creio bem que comentam em certas matérias desse modo por receio de essa posição poder ser conhecida, principalmente pelos COnselhos e/ou pelos inspectores.
    Posso estar enganado, porém...
    Toix said...
    Quanto mais anestesiados andarmos mais intenso e frequente tem de ser o soco.
    Anónimo said...
    Apesar da longa explicação de «josé» continuo sem entender o anonimato dos autores do blog - quanto ao dos comentadores, admitamos que o seu estatuto é diferente - nem todos são juristas ou magistrados e, provavelmente, usam de alguma prudência na «forma» de emitir comentários.

    anónimo
    josé said...
    Caro anónimo:

    Do site da PGR colhi este excerto:

    "O parecer nº 13/96, aprecia a desobediência a uma ordem de identificação proferida por um um militar da Guarda Nacional Republicana, denunciado num inquérito-crime. Neste âmbito, defende-se que do "cruzamento do direito à identidade pessoal, que inclui fundamentalmente o direito ao nome e o direito à historicidade pessoal, com o direito à intimidade da vida privada, poder-se-á extrair uma protecção constitucional do anonimato (...). Em obdiência ao princípio da tipicidade legal das medidas de polícia, consagrado no nº 2 do artigo 272º da Constituição da República, e tendo em conta que a reserva de identidade é expressão do direito à intimidade da vida privada, consagrado no nº 1 do artigo 26º da Constituição da República, há-de derivar da lei o condicionalismo concreto de que depende a legitimidade da exigência da identificação (...)."

    COmo vê, o anonimato até terá protecção constitucional...

    Quanto às razões que gostaria de ver escritas para ficar mais convencido, deverá compreender que também há razões que a razão desconhece- e devem ser respeitadas.

    Por último, as questões que se impõem:

    Por que razão quer saber a identidade de b.i. de quem escreve?! Isso interessa para quê?!
    Se a identificação para o que interessa estiver assegurada, para quê exigir mais?!
    Anónimo said...
    Nunca! nada de desafiar o «josé», de lhe exigir o que quer que seja, nem sequer de lhe pedir, mais do que a continuação dos seus posts.

    Mas, para que conste, na sua identificação no GLQL aparece apenas isto:

    «The Blogger Profile you requested cannot be displayed. Many Blogger users have not yet elected to publicly share their Profile.»

    E isto vale tanto ou tão pouco como «anónimo».

    «anónimo»
    josé said...
    Caro anónimo:

    Acho que o seu anonimato vale mais, porque estou em posição de inferioridade. Se eu lhe quiser agradecer ou elogiar comentários, como distingui-lo dos outros anónimos valerosos que por cá aparecem?!

    No blogger profile não pesca nada, porque a maré não está para lançar redes.
    Mas se quiser pegar na cana da escrita e enviar mail,para o endereço real que aqui fica,(jmvc@sapo.pt- visível se clicar no nome) pode ter a certeza que responderei. E é por isso que reservo o direito ao anonimato: porque deixo de o ser logo que se revelar necessário.
    zazie said...
    Pois, uma pessoa também se esquece das razões que a razão desconhece... e o José até é bem parecido... isto nunca se sabe, eles andem aí “:O)))))))

    cuide-se josé, cuide-se... ":O)))))

Post a Comment