Corto Maltese
A memória dos traços de Pratt.

Descobri os desenhos de Hugo Pratt na adolescência de 1972. O Tintin semanal, trazido à Livraria Bertrand, ao Sábado, imprimia-se e distribuia-se a partir da Amadora e na ficha técnica o chefe de redacção era então, Dinis Machado, aka Dennis MacShade e muito antes de pôr o Molero a falar num livro.

O Tintin em edição portuguesa, imprimia o melhor da revista Tintin belga, a original, de título, papel e cor mais brilhantes; e o melhor da Pilote francesa, casa de Astérix, Lucky Luke e Blueberry, na vanguarda da genialidade em desenhos semanais e que haveria, um par de anos mais tarde, de abrir o horizonte às aventuras humanóides na francesa Métal Hurlant.

O Tintin de 4 de Novembro de 1972, mostrava na capa uma ilustração das Três Fórmulas do Professor Sato, de Blake & Mortimer; nas restantes páginas, depois de espiolhar com Spaghetti e de vislumbrar o castelo das 4 luas de Olivier Rameau, via-se alguém a ser picado por um escorpião, n'O Caso Minos, de Dan Cooper. Porém, a fantasia de Rataplan, n'o sinal do touro, preparava o leitor para o Massacre para um motor, de Michel Vaillant e para ver a última vinheta de Lucky Luke em Canyon Apache ( i´m a poor lonesome cowboy and a long way from home). Os Franval, Mr. Magellan, Prudence Petitpas, Astérix entre os Helvécios e Alix com O Deus Selvagem antecediam a página simples de Taka Takata e então surgia a nota de apresentação de... Corto Maltese!

Quem o apresentava, sem grande cerimónia, mas com muita classe, era Vasco Granja, um grande sabedor dos bastidores das historietas contadas em quadradinhos!

Num texto de página, corrido a duas colunas e ilustrado com tantas imagens, Vasco Granja, depois de lamentar que Corto fosse então “injustamente desconhecido em Portugal”, divulgava que Hugo Pratt já tinha sido premiado em 1970, no Sexto Congresso de Lucca e distinguido pela revista Phénix, no ano seguinte.

Para ilustrar o texto monocromático, uma reprodução também sem cor, da capa de um álbum mítico publicado em 1971, pela editora francesa Publicness e que hoje suscita a cobiça de coleccionadores.

Ao longo dos anos seguintes, Vasco Granja, o grande divulgador nacional de bd, escreveu mais vezes sobre Pratt, na Tintin pelo que ao ler o número de 6.2.1973, a revista belga, já estava preparado para... Pratt!

Mas não era o Pratt de Corto Maltese. Eram o dos Escorpiões do Deserto, em missão no Norte de África, em 1940. À dúzia de páginas então publicadas, bem desenhadas e mal coloridas, juntou-se mais meia dúzia no número de 12.3.1974 e a irregularidade da publicação permitiu entretanto o aparecimento de Corto Maltese, pela primeira vez no Tintin belga, em 9.4.1974, alguns dias antes do 25 de Abril!

A apresentação começava assim... “ Un nouveau venu: Corto Maltese.” E continuava...

Corto Maltese c´est ce qu´on appelle aujourd´hui le ´marginal ` parfait. Il n´a ni attache, ni loi bien définie, ni ressources vraiment cnnues, et on le trouve partout où le souffle le vent de la liberté

O 25 de Abril, em Portugal, ocorreria dali a quinze dias...

A história publicada, sem título, mas conhecida como O segredo de Tristan Bantam, não era nova: já tinha visto a luz impressa, em 1970, na revista francesa Pif Gadjet, uma revista de historietas completas e que entre 1969 e 1973, chegou a vender mais do que todas as outras revistas de bd... juntas! Tudo por causa de um artifício comercial que a McDonalds conhece muito bem: com a revista e as historietas de grande qualidade gráfica, vinha anexo, num plástico, um pequeno brinquedo surpresa...

Assim, as histórias de Corto Maltese que o jornal Público, durante 16 semanas entrega com o jornal, a troco de 4 euros, são já antigas - pelo menos tanto como o truque comercial que as faz vender.

A actual série que se reúne em dois álbuns sob o título de Sob o Signo de Capricórnio, são todas desse ano de 1970 e da revista Pif Gadjet. Provavelmente serão as melhores historietas do marinheiro vagabundo e maltês e valem a pena ler e ver nos desenhos primorosos de Hugo Pratt que morreu em 1995.

Em 1999, a revista francesa BoDoi , numa homenagem ao mestre, publicou uma entrevista de um companheiro de viagens, Jean Claude Guilbert.

Este conta como apresentou ao mestre o grande Milton Caniff, desenhador americano que influenciou gerações de desenhadores. Foi em 1972, em Lucca, no festival de banda desenhada que aí se costumava realizar e que Vasco Granja costumava frequentar e relatar no Tintin português. Pratt ficou lívido de admiração; pegou nas mãos do mestre e ao tocá-las exclamou: “É mesmo verdade que toco estas mãos!” Segundo a testemunha do acontecimento, Pratt desatou em lágrimas de comoção.

Hoje, por força das mitologias, Pratt transcende Caniff em importância e Steve Canyon é um desconhecido ao lado de Corto, o maltês.

Pensando bem, talvez seja merecido. O marinheiro entrou numa fábula, em Veneza, que é um sonho publicado pelo primeira vez na revista italiana L´Europeo, em 1977 e repetido em Janeiro de 1979 na revista francesa A Suivre.

A Fábula de Veneza que o Público publica a 22 de Novembro é um mergulho nos sombrios canais de Veneza e uma viagem de gôndola delirante por entre seitas esotéricas, na busca de uma esmeralda com o nome improvável de “clavícula de Salomão”.

Corto encontra-a na última página, antes de bater à porta da penúltima vinheta e pedir para... mudar de história, para um outro sítio!

Publicado por josé 23:44:00  

15 Comments:

  1. Alexandre said...
    e terás tu a Geo Hors Édition, de 2002, integralmente dedicada ao Corto Maltese? Eu tenho.... :D
    josé said...
    Não...desgraçadamente, não tenho. Mas tenho a Hors Série de Novembro do mesmo ano, com desenhos de vários artistas "Le monde dessiné par les plus grands"! E a fls.169 vem lá essa...que deixei fugir.

    Buona fortuna!
    Cronista Oficioso da 3R said...
    Obrigado josé.
    É bom ser reconduzido ao passado e a doces descobertas de então... também conheci Pratt pela saudosa revista Tintin mas mais tarde que o José em 1975 quando foi publicado o segredo de Tristan Batan (embora pintado a aguarela)...
    Mas em termos de albuns de referência há um que sem a sofisticação da Fábula de Veneza e um pouco mais naif, não deixa de revelar uma dimensão que a bd antes nunca tinha atingido: Concerto em O menor para Harpa e Nitroglicerina.
    Sem dúvida que me parece justo que na Europa a memória de Pratt esteja mais presente do que a de Milton Caniff, pelos horizontes que rasgou... mas Milton Caniff tem uma influência ainda muito forte e incomensuravelmente superior à de Pratt no outro lado do Atlântico.
    Cronista Oficioso da 3R said...
    Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
    josé said...
    Quase:

    Em 1975, já tinha arrumado o Tintin, em resmas ordenadas por anos, a aguardar as memórias que vêm com o tempo. Deixei-o precisamente na altura da historieta da Gaivota, "A cause d´une mouette" e que é uma das histórias inseridas no álbum que o Público hoje publica, Sob o signo de Capricórnio. Nessa altura, o Tintin belga publicava-o a cores, num aguarelado muito bem conseguido e que não parece ser da autoria de Pratt.
    Aliás, o colorido da história de Tristan Bantan no Tintin belga que referi também está muito bem realizado, ao contrário das ilustrações dos primeiros Escorpiões, demasiado borratadas para o meu gosto. Talvez por isso, o cheiro a tinta fresca da revista que comprava ao Sábado, ainda perdura no meu olfacto memorizado.
    Os álbuns do Corto de Pratt, em 1975, fascinavam-me pelo aspecto graficamente cuidado de alguns deles. Particularmente, lembro-me de ver as edições de luxo da Publicness, algures na Bertrand de Coimbra ou Lisboa: caras, mas deslumbrantes.
    Um desses álbuns esgotados, trazia na capa a imagem de marca de Corto, na espreguiçadeira, com os pés em cima da mesa- e que é a imagem de abertura da aventura do Segredo de Tristan Bantan.

    Porém, que fazer a Corto quando nesse ano já só jurava por Tardi, Gir e Moebius?! E já procurava apenas recolher os últimos "recueils" da Pilote francesa que também trazia Tardi e Forest?
    Em 1975 começava a segunda série da Pilote. Os primeiros números são de esbugalhar os olhos logo na capa.
    Em 1975 começava a aventura da Métal Hurlant que para além do esbugalhar os olhos,com as ilustrações de Moebius, já eram a rampa de lançamento das aventuras fatais das sagas futurísticas e oníricas que durante dez anos me divertiram e formaram o gosto.

    Em 1978, começou uma outra grande aventura a preto e branco: A Suivre!
    E assim o tempo passou e a bd ficou como recordação de um tempo que já não volta e cuja nostalgia é apenas o prazer de reviver o sentido da arte: um infinito gozo intelectual.
    Cronista Oficioso da 3R said...
    Está visto que mais do que um conhecedor, o José é um apreciador... (e onde teremos andado a par terá sido aquando do aparecimento da Suivre).
    Uma sugestão: A GLQL pode criar um departamento ou uma periodicidade para a partilha destes seus gostos.

    Uma pergunta: Existindo hoje uma geração com mais de 40 anos que aprecia a bd de qualidade, coisa que não acontecia há 20 ou 30 anos, e tendo-se generalizado uma maior disponibilidade generalizada em termos financeiros e na aquisição dos ditos bens culturais, parece existir um mercado maduro para a edição de bd.
    Contudo em Portugal, se em termos de albuns o panorama há muitos anos que é relativamente pobre em revistas é um zero quase absoluto desde a morte do Tintin. E embora, o cenário europeu actual não tenha o dinamismo dos anos 70 e mesmo 80, existem revistas de diferentes formatos que conseguem manter-se com elevado nível de qualidade e públicos fieis.
    O facto de os tempos hoje não se compadecerem com esperas de uma semana para as próximas duas páginas de uma história não explica tudo, até porque esse modelo de revista já foi por regra substituído por outro. O que explica então o cenário paupérrimo da edição nacional?
    Cronista Oficioso da 3R said...
    Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
    Cronista Oficioso da 3R said...
    Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
    josé said...
    (Quase)uma tentativa de resposta:

    O panorama da bd pode ver-se de alguma forma na FNAC. Existe uma secção de álbuns de expressão francesa. Muito poucos de expressão castelhana ou galega ou catalã e uma série de caderninhos de comics da Marvel & Co.

    Revistas? Há a francesa BoDoi, com trema em cima do ´o` que apresenta as tendências tradicionais ou estica as já existentes. Autores novos e notáveis? Talvez Gibert. Talvez o já "velho" Miquelanxo Prado, da Galiza. Talvez um ou outro mais e cujo nome me escapa.

    Revistas como a Métal Hurlant original, acabaram! Há a Métal Hurlant em edição americana, chamada Heavy Metal. O título, por nabice idealista dos proprietários do original, que o cederam quase a título gratuito aos americanos nos anos oitenta, passou assim a nasalar na palavra heavy, em vez de uivar urlantemente na ficção científica feita no velho continente. Mas é bem feito, porque as ideias originais da Métal Hurlant recendiam fortemente aos ficcionistas de além-mar e até o grafismo copiava as ideias alheias das Amazing Stories e outras Astounding. Isso para não falar no culto que os Dionnets e até Moebius votavam ao Phillip Dick. As ideias do Major Fatal, da Garage Hérmetique e do próprio Difool, de onde vêm?! As ideias para as historietas fantásticas de Jodorowski, de onde partem?!
    Do melhor que a América sempre teve para dar!
    O que sobra para os europeus? O génio artístico de Moebius!
    Cheguei a ver, em 1999, em Paris, uma exposição de desenhos do mestre, em formato pequeno ( metade de A4). As cores eram simplesmente fantásticas! Os temas incríveis de imaginação criadora!
    E nessa altura tinha acabado de ir ao Louvre...
    zazie said...
    Viva José! Boas recordações e bom post. Sabem que tenho por lá na Janela um gajo a chagar-me por ter feito o anúncio ao Festival de BD da Amadora? Para ele tirando o Chago Armada, o Paz Boïra e o Martin Vaughn-James, tudo o resto é treta. Até diz que o Moebius e o Eisner são artistas medíocres que trabalharam para os lordes do kitsch que fazem fortunas a vender imbecilidades aos adolescentes. E que mais triste ainda é haver adultos que os apreciem... bem, o rapaz é uma ave rara. Também acha o Little Nemo uma coisa que tem o seu charme mas mais nada... “:O.
    zazie said...
    o não, a Paz Boira.
    josé said...
    Zazie:

    O Little Nemo é uma relíquia e vale a pena mencioná-lo! Até o Moebius se atreveu a um recriação.

    COntudo, admira-me como o tipo não falou no Yellow Kid! Isso sim, seria a prova inequívoca do pedantismo...assim, ainda fica o benefício da dúvida.
    vague said...
    Oiço falar no Vasco Granja e vem-me à memória aquelas sessões de desenhos animados com a pantera cor de rosa, está associado sobretudo a esses momentos mágicos de há mil anos atrás ;)

    Qto à Bd, há-a excelente, actualmente. Conheço poucos autores, poucos lidos, mas é um universo que me está a fascinar...Sugestões?
    vague said...
    Oiço falar no Vasco Granja e vem-me à memória aquelas sessões de desenhos animados com a pantera cor de rosa, está associado sobretudo a esses momentos mágicos de há mil anos atrás ;)

    Qto à Bd, há-a excelente, actualmente. Conheço poucos autores, poucos lidos, mas é um universo que me está a fascinar...Sugestões?
    josé said...
    Sugestões?

    Depende da idade. Se já tiver passado a adolescência, pouco ou nada há a fazer. A maior parte da bd lê-se e vê-se com a descoberta dos sentidos e da fantasia. Pelo menos para mim, foi assim. Tal como o Ivanhoe do Walter Scott ou o TOm Sawyer se lêem nessa altura, assim as aventuras de Corto, de Blueberry , de Bernard Prince, Blake & Mortimer ou Cisco Kid, se apreciam devidamente nos verdes anos.
    Depois, o gosto mistura-se com maiores exigências estéticas e sofisticações avulsas.
    Desta triagem natural, sobra o que impressionou.Tal como uma obra de arte na pintura, a imagem desenhada ou colorida, conserva o encanto se alguma vez nos encantou a sério.A simples memória dessa impressão matricial é um encanto renovado. Daí o meu interesse em coleccionar e guardar encantos, como uma espécie de regresso ao futuro.
    Temo que isto seja coisa aparentada à loucura normal e por isso, fico por aqui neste estenderete de intimidades.

    Quanto a sugestões práticas, a leitura de toda a obra de Moebius é a melhor prenda que alguém pode descobrir. Mesmo na idade adulta. É uma fantasia permanente para quem aprecia ideias de ficção científica e uma alegria constante, descobrir a beleza plástica das ilustrações.

Post a Comment