O turno da senhora juíza e o «totoloto» da Justiça
sexta-feira, setembro 03, 2004
Sucedeu num turno de serviço urgente de férias judicias, em Portugal.
A história é conhecida: a Dra. Filipa Macedo, durante o seu efémero turno no Tribunal da Boa Hora decidiu ordenar oficiosamente a prisão preventiva de seis arguidos num processo que, por acaso, é um dos processos com mais repercussões socio-políticas e mediáticas de sempre.
Contra a posição do Ministério Público (exclusivo titular da acção penal) e durante a pendência de um recurso em que se questiona, precisamente, a situação processual de alguns desses arguidos.
Sem que invocasse qualquer facto novo. Apenas com um argumento: tais arguidos seriam indivíduos perigosos e teriam tendências compulsivas para a prática de factos idênticos aqueles pelos quais estão acusados.
Com a inaudita e inaceitável admissão de não ter estudado todo o processo, mas de ter, apenas, lido o despacho de pronúncia e algumas declarações das vítimas.
Como o magistrado do Ministério Público esteve louvavelmente atento – mais uma vez sendo o garante da legalidade democrática – promovendo a revogação do despacho que ordenava a emissão dos mandados de detenção, o colega da senhora juíza (do turno seguinte) não hesitou em revogar o despacho da colega e mandou recolher os mandados.
O que aconteceu é de uma gravidade extrema. Apesar disso, uma vez mais, tal situação parece estar votada à autista complacência do órgão de gestão da magistratura judicial. Como é possível ser ordenada a prisão de uma pessoa (cuja libertação fora ordenada por um tribunal superior), durante um turno de férias judiciais (de serviço urgente), com base na leitura de poucas peças processuais num dos processos com maior importância mediática e sócio-política de sempre?
A singular interpretação que a senhora juíza faz do que é «o seu poder jurisdicional» revela-se de um puerilidade patética, inadmissível num Estado de Direito.
O Conselho Superior da Magistratura continua ensurdecedoramente silencioso. Silencioso perante a ilegal atitude jurídico-processual da magistrada em causa e perante o teor das declarações por ela prestadas à comunicação social, em que manifestava o seu desapontamento perante a posição do seu colega (que acolheu a promoção do Ministério Público) e do que disse ser o «branqueamento por parte da PGR» da posição do procurador do processo.
Face a incidentes deste tipo, não serão de estranhar as crescentes tentações por parte do poder político para criar condições de restringir a margem de independência do poder judicial, como meio de evitar a repetição de ocorrências semelhantes.
A bem da transparência e da reposição da legalidade da conduta da senhora juíza, impor-se-ia, no mínimo, uma posição oficial e peremptória do CSM.
Ah. É verdade. A dita magistrada tem classificação de Muito Bom. Não tarda, será promovida a desembargadora.
Talvez, então, possa voltar a pegar («julgar»?) no processo, em fase de recurso.
Não desespere. Quem sabe?
Mangadalpaca©
Publicado por josé 21:33:00
9 Comments:
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":O.
Enfim, é de alguma forma o paradigma de alguma magistratura (infelismente não tão pouca como isso).
Agora essa do MP ser o garante da legalidade, também é demasiada.
Então não foi o MP que requereu (e recorreu) a prisão preventiva para todos os arguidos deste abençoado processo (apenas porque teve o condão de publicitar e evidenciar a existencia de aventesmas nos tribunais como a Dra. Filipa).
Assim vai a aplicação da lei em Portugal (não confundir com aplicação de justiça).
A igualdade de todos perante a lei é um princípio constitucional.
COntudo, nem todos os crimes são iguais; nem todas as circunstâncias da prática de crimes são iguais; e é a própria lei que distingue entre as pessoas: os próprios crimes em causa, só têm gravidade porque as vítimas são...menores!
Além disso, um processo que determina a atenção de todas as forças políticas( sei lá, talvez o apagado PND não tenha dado atenção...ahahahah) e até agora de todos os órgãos de soberania;um processo em que todos os media têm os holofotes postados nele; um processo à volta do qual se gerou quase uma histeria colectiva, NÃO É um processo igual aos outros, embora a lei na sua cegueira o considere como tal e mande aplicar a lei com igualdade.
Há uma diferença-mas parece que não é visível a toda a gente...
Quanto ao MP ter defendido a legalidade democrática, isso é manifesto.
Relativamente a Kamikaze: na prática, a suspensão dos efeitos do despacho da juíza equivale à sua «revogação» (foi isso que se quis dizer).
Mangadalpaca.
Subscrevo totalmente, menos num ponto.
Não será o CSM o garante da normalidade da magistratura judicial pela invisibilidade omnipresente?
O seu mérito é sabermos que está lá, ainda que a prova dependa da nossa fé. Como Deus. E Deus não responde em discurso directo (desculpa Alexandra...).
Cara Zazie
Não esteja tão certa disso, pelo menos no que toca ao Partido dos Doentes, a julgar por algumas intervenções.
Observador Divertido
Parece-me que, nesta situação a maneira correcta de colocar a questão é a seguinte:
1. Uma magistrada tomou um decisão que está dentro dos poderes que a lei lhe confere (se a lei está mal, não é problema dela);
2. Tal decisão (e refiro-me à situação processual concreta, não às posteriores intervenções na comunicação social) não integra qualquer ilícito, disciplinar ou outro;
3. Se tal decisão revela qualidades desvaliosas enquanto magistada (falta de ponderação, bom senso, ou o que quer que seja), a sede própria para apreciação de tais questões é a da inspecção à prestação funcional da mesma (se o sistema de inspecções está mal, também não é problema dela);
4. Se em sede de inspecção de apurasse que efectivamente a globalidade do seviço da magistrada revelava as tais qualidades desvaliosas, deveria a mesma ser penalizada (o que a impediria, por exemplo, de subir ao TR); caso constrário, apurando-se que o expisódio em questão estava isolado numa carreira de mérito, não me parece defensável qualquer "punição" para mesma.
A magistratura, que por definição tem de ser autónoma, é uma garantia essencial dos cidadãos.
Por isso, e é esta a minha opinião, quem defende que sejam conferidos ao CSM (ou a quem quer que seja) poderes para intervir em, ou em função de, situações jurisdicionais concretas, ainda que para dar "puxões de orelhas" camuflados sob a forma de uma tomada de posição oficial, está (voluntaria ou involuntariamente)a prestar um mau serviço à sociedade democrática.
Em vez de se confundir a nuvem com Juno, deviam dirigir-se a maior parte das críticas que são destinadas à magistrada, à lei (ou falta dela) que regula o serviço de turno) e/ou ao sistema de inspecções de magistrados.
Soumynona