The times they are a changin´

Bob Dylan em Vilar de Mouros'2004

Eu sabia bem ao que ia.

Dylan em Vilar de Mouros, em 2004! Em 1971 por lá passara Elton John, ido de Viana do Castelo, onde ficara hospedado num hotel recente e fizera já exigências de star, muito comentadas na época. Em1982, foi a vez dos U2, num espectáculo memorável, em que Bono ainda tinha energia para subir aos postes do palco, ainda improvisado e amador, a gritar Sunday Bloody Sunday!

Em 2001, num palco já monumental e subsidiado pela Super Bock e outras marcas que apareciam nos écrans gigantes, tocou Neil Young e dedilhou Heart of Gold, antes de passar a Pocahontas, numa noite inesquecível de chuva miudinha e que acabou com Tonight´s the night.

O espectáculo de Vilar de Mouros é também o da multidão que se vai chegando ao palco, para melhor ver os artistas. Como não há cadeiras, o chão serve de almofada. Como há muita gente, espreita-se por entre os ombros. E ouve-se o som enorme da aparelhagem a anunciar o artista - From the USA, a Columbia recording artist - Bob Dylan!

E aparecem as luzes em focos concentrados, a tentar revelar mitos. Primeiro, os músicos. Alinhados e discretos, repartem a secção rítmica, no baixo/bateria, a meio do palco, deixando as pontas para os que merecem destaque: do lado direito, Larry Campbell, um magnífico guitarrista que salva o grupo da irrelevância. Dylan, esquivado no teclado, no canto esquerdo e com um chapéu de aba larga a cair-lhe pelo rosto que não quer mostrar, foge de enfrentar a multidão e nem sequer olha para o público, por uma única vez. Começa e acaba as canções numa penumbra envergonhada e com uma voz que já se tornou irreconhecível, pelo menos desde... 1976!

Ouvir Dylan, actualmente e a interpretar músicas suas, com trinta ou quarenta anos, é a mesma coisa que o ouvir nesse longínquo ano de 76, ano do bi-centenário da independência da América, no disco Hard Rain. As suas canções mais conhecidas só se reconhecem ao fim de algumas estrofes de canto guturalmente esforçado e que literalmente assassina as melodias dos discos originais.

Em Dezembro de 76 a revista francesa Rock & Folk, que celebrava dez anos, um pouco menos que os Beatles que apareciam na capa, recenseava criticamente, assim, o disco gravado ao vivo, no decurso de uma celebrada Rolling Thunder Review ...


...on se demande comment il a pu laisser sortir ça. Est-il devenu sourd? Quel peut bien être le but d´un tel disque, certes enregistré en public, mais rempli uniquemente d´anciens morceaux mal joués et dans des versions em tout point inférieures aux originales?”

A revista Rolling Stone, também em Dezembro do mesmo ano, não poupava nas críticas:...

Melody is all but dismissed, the backup vocals hapharzard, the solos inconsequential.

E continuava, definindo a arte de Dylan ...

Dylan is an instintive artist. His studio albuns have never been elaborately crafted, painstaking efforts. Instead they have been more like live performances in witch he has been concerned capturing the moment. In this sense, is a true rock & roll primitivist.(…) This is not to imply that his work is simple- on the contrary, the emotions, forms and masks are extraordinarily sophisticated. Rather, he is a naïf, so self-absorbed he believes that everything he does is of interest. Like a true primitive, Dylan´s work functions as a direct megaphone to himself. The result has been some of the most brilliant art that popular culture has ever produced. But it also means that Dylan is at once his own best and worst critic.

Os concertos de Dylan, desde aí, e até a maior parte dos seus discos, são um produto dessa última faceta do génio.

Por isso se torna penoso ouvi-lo, em gravações ao vivo, desde 1974 e depois do inultrapassável LP Before the Flood, acompanhado pelos The Band.

Em 2004, em Vilar de Mouros, eu sabia ao que ia. Esperava ouvir o som gutural e envelhecido; as sílabas sopradas e arrebatadas no final de cada estrofe das suas canções originais, para lhes emprestar mais premência e inclemência. Esperava ouvi-lo tocar harmónica. Esperava vê-lo a desafinar em cada canção. Tudo isso ele cumpriu religiosamente, num ritual já com trinta anos.

Eu sabia que Dylan tinha acabado em 1975, com o Lp Blood on the Tracks. Eu sabia isso tudo e contudo fui vê-lo, à espera de um lampejo do génio e para ver o mito. Que me pareceu mais frágil quando no fim apareceu a agadecer ao público, por breves instantes e a saltitar, num passo de pássaro que me fez lembrar...o americano Bush! Bob Dylan não é bem aquele que eu lá vi.

Bob Dylan está nos discos dos anos sessenta e nas dezenas de canções geniais que compôs.

Só no final, repetindo os versos de Don´t think twice it´s allright e acompanhado pela viola acústica de Larry Campbell, numa interpretação excepcional, me dei conta que afinal o tipo que via ali encolhido no canto esquerdo e a esconder as rugas, do público curioso, ainda podia cantar a seguir Like a rolling stone e encantar do mesmo modo que outrora o fizera, Before the Flood.

Valeu a pena.


Publicado por josé 19:23:00  

8 Comments:

  1. zazie said...
    Excelente texto José!
    Seu sortudo que até fiquei com um nó na garganta por ter perdido...
    josé said...
    Zazie:

    Desta vez , vou ser despudoradamente imodesto.
    Este texto que escrevi sobre VIlar de Mouros, é o que gostaria de ter lido na imprensa.

    Amanhã, trazem-me de Lisboa( uns certos fanáticos do futebol que frequentam a casa dos meus pais, ao DOmingo e que hoje foram ver o Benfica) um livro sobre Vilar de Mouros- 35 anos de festivais. O livro que já folheei por aí, no Corte Inglês, é um dos documentos sociologicamente mais interessantes dos anos sessenta no nosso país. As fotos e ilustrações são interessantíssimas.
    Estou à espera da prenda, impaciente como um puto.
    Anónimo said...
    Fui a Vilar de Mouros em 82 e os U2 foram verdadeiramente épicos.

    Sim, Bob Dylan acabou nos anos 70, tal como muitos outros, mas não Neil Young.

    Mário

    retorta.net
    josé said...
    Elogio em boca própria, é vitupério. Pássaro gabado, sai carriça.
    São ditados populares que aprecio e que se me aplicam, agora.
    Escrevi que os U2 em 1982 tocaram Sunday Bloody Sunday. Suponho agora que não deveriam ter tocado, pois a canção foi publicada em Abril de 1983 no LP War.
    Anónimo said...
    José, pelo que me lembro, tocaram o BOY todo e pelo menos o Gloria do segundo LP, depois voltaram a tocar canções do Boy porque já não tinham mais nada ensaiado.
    Mas à distância de tantos anos já não posso ter a certeza, quem tiver as fitas do concerto (ouvi algumas na rádio nas semanas seguintes) poderá confirmar.

    Mário
    retorta.net
    josé said...
    Segundo o autor do magnífico livro que referi( e que já tenho aqui)- Fernando Zamith, um minhoto por adopção, aparentemente ainda jornalista na Lusa - o alinhamento terá sido:

    Gloria; I Threw a Brick Through the window; A Day without me; An Cat Dubh; Into the Heart; Rejoice; The Cry; Electric Co; I Will Follow; A Celebration; The Ocean; 11 O´Clock Tick Tock;

    Ainda seguindo o livro, a participação dos U2 no Festival custou 300 contos; Os Stranglers custaram 550!

    Bons tempos.

    Ah! E parabéns também para a retorta. É um dos melhores blogs que conheço e tem uma apresentação gráfica invejável e de expert.
    Anónimo said...
    Obrigado

    Mário
    retorta.net
    Sofia Garcia said...
    Também fui ao concerto de Dylan e escrevi sobre este . Está em www.acorneta.blogspot.com

    A minha visão não é enviesada (se se pode usar esta expressão) por um conhecimento prévio de Bob Dylan (para além de alguns álbuns obvios que estão lá por casa, conheço pouco da carreira). Não me guiei de como ele era. Assisti a um grande concerto e não me importei de não ver a cara, de não ouvir os hits, de a voz estar pior. Foi muito bom.

    Mas digo-lhe que Love & theft é um grande álbum , talvez num registo a que não estamos habituados a ouvi-lo, blues. E teve boas críticas (ver All Music Guide por exemplo... ).

    Numa de comparação já assisti, por exemplo, a concertos de outros consagrados como Rolling Stones, e mesmo a este último de Doors XXI e pareceram-me a km de distância. Aqui ainda há artista, ainda há arte. Nesses exemplos há mais a máquina do Marketing a trabalhar.

    Mas gostei muito da sua visão, concerteza mais informada. Já agora não sei assistiu tambám a PJ Harvey que deu um grande concerto.

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