Sophia
sábado, julho 03, 2004
«Não se perdeu nenhuma coisa em mim.
Continuam as noites e os poentes
Que escorreram na casa e no jardim,
Continuam as vozes diferentes
Que intactas no meu ser estão suspensas.
Trago o terror e trago a claridade,
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade.»
«Não se perdeu nenhuma coisa em mim», in Poesia I
Sophia de Mello Breyner Andresen era, até ontem, a maior escritora portuguesa viva.
Morreu numa sexta à tarde, de 2 de Julho de 2004, aos 84 anos.
A obra ficará - e a melhor homenagem que lhe podemos fazer é lê-la, relê-la e divulgá-la.
Sophia escreveu alguns dos poemas mais bonitos que li até hoje. Alguns deles já os publiquei aqui na Grande Loja ao longos destes meses. E inventou as melhores histórias para crianças, que ainda hoje releio. Contos como «A Fada Oriana», «A Menina do Mar», «A Floresta», «O Rapaz de Bronze»,«O Cavaleiro da Dinamarca», ou «A Árvore» são eternos.
Quando, à hora do jantar, ouvi de chofre a notícia da morte de Sophia, foi essa a primeira coisa que me veio à cabeça - a de que esses contos ficarão na minha memória para sempre. Espero poder lê-los aos meus filhos. Talvez assim possa agradecer a uma escritora que não cheguei a conhecer.
Filha de um dinamarquês, Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu no Porto, em 1919. Estudou Filologia Clássica, foi deputada eleita pelo Partido Socialista (embora nunca se tenha comprometido com qualquer cor partidária) e foi casada com Francisco Sousa Tavares, também ele escritor, deputado e governante, com quem teve cinco filhos.
Sophia deixa uma extensa obra, da qual destacamos títulos como «No Tempo Dividido», obra que colige poemas de «Poesia», «Dia do Mar» e «Coral»; «Geografia», «Dual», «Livro Sexto», «Grades», «Contos Exemplares», «Musa», «O Nome das Coisas», «O Cristo Cigano», «Mar Novo», «Navegações», «Ilhas», «Signo», ou «O Búzio de Cós e Outros Poemas», para além dos contos acima referidos. E destacaria aqui também a tradução que fez para a língua portuguesa do «Hamlet»,peça de Shakespeare, que tanto tinha a ver com o seu imaginário literário (sobre um príncipe da Noruega e sobre batalhas na Escandinávia)
Nunca recebeu o Nobel, mas vários foram os que defenderam a atribuição a Sophia do maior galardão literário mundial. Foi Prémio Camões, em 1999, e coleccionou centenas de prémios de cariz literário, um pouco por todo o mundo.
Como já escrevi aqui uma vez, a escrita de Sophia é singular: é iluminada por uma claridade que nos ajuda a entrar num mundo limpo e transparente. A luz, sobre a qual ela tanto escreveu, é tanto uma luz física - do sol (lindos os textos de prosa poética sobre Lagos e a Meia Praia) e do mar, o elemento que ela mais admira - como uma luz simbólica - a luz da ética, da verdade e da justiça.
Ler Sophia é, por isso, a melhor forma de nos rendermos perante a sua lisura ética e estética.
Recordar alguns dos seus poemas é a melhor maneira de nos curvarmos perante a sua morte
«Na luz oscilam os múltiplos navios
Caminho ao longo dos oceanos frios
As ondas desenrolam os seus braços
E brancas tombam de bruços
A praia é longa e lisa sob o vento
Saturada de espaços e maresia
E para trás de mim fica o murmúrio
Das ondas enroladas como búzios.»
«Praia», in No Tempo Dividido
«Será possível que nada se cumprisse?
Que o roseiral a brisa as folhas de hera
Fossem como palavras sem sentido
– Que nada sejam senão seu rosto ido
Sem regresso nem resposta- só perdido»
«Será Possível», in O Nome das Coisas
«Bebido o luar, ébrios de horizontes,
Julgamos que viver era abraçar
O rumor dos pinhais, o azul dos montes
E todos os jardins verdes do mar.
Mas solitários somos e passamos,
Não são nossos os frutos nem as flores,
O céu e o mar apagam-se exteriores
E tornam-se os fantasmas que sonhamos.
Por que jardins que nós não colheremos,
Límpidos nas auroras a nascer,
Por que o céu e o mar se não seremos
Nunca os deuses capazes de os viver»
«Bebido o Luar»
«Mar, metade da minha alma é feita de maresia
Pois é pela mesma inquietação e nostalgia,
Que há no vasto clamor da maré cheia,
Que nunca nenhum bem me satisfez.
E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia
Mais fortes se levantam outra vez,
Que após cada queda caminho para a vida,
Por uma nova ilusão entontecida.
E se vou dizendo aos astros o meu mal
É porque também tu revoltado e teatral
Fazes soar a tua dor pelas alturas.
E se antes de tudo odeio e fujo
O que é impuro, profano e sujo,
É só porque as tuas ondas são puras.»
«Mar»
«Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade»
«Liberdade»
«Tão longo caminho
E todas as portas
Tão longo o caminho
Sua sombra errante
Sob o sol a pino
A água de exílio
Por estradas brancas
Quanto passo andado
País ocupado
Num quarto fechado
As portas se fecham
Fecham-se janelas
Os gestos se escondem
Ninguém lhe responde
Solidão vindima
E não querem vê-lo
Encontra silêncio
Que em sombra tornados
Naquela cidade
Quanto passo andado
Encontrou fechadas
Como vai sozinho
Desenha as paredes
Sob as luas verdes
É brilhante e fria
Ou por negras ruas
Por amor da terra
Onde o medo impera
Os olhos se fecham
As bocas se calam
Quando ele pergunta
Só insultos colhe
O rosto lhe viram
Seu longo combate
Silêncio daqueles
Em monstros se tornam
Tão poucos os homens»
«Cantar»
«Um dia, gastos, voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.
O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados irreais
E há-de voltar aos nosso membros lassos
A leve rapidez dos animais.
Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais na voz do mar
E em nós germinará a sua fala.»
«Um Dia»
Publicado por André 02:32:00
0 Comments:
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)