Era uma vez a América...

Bush e Wolfowitz tentam fintar decisão do Supremo Tribunal...

Numa jogada relâmpago, a Administração Bush está a tentar criar um imbróglio legal, destinado a contornar os efeitos da decisão do Supremo Tribunal no caso Rasul vs. Bush, que reconheceu a jurisdição dos tribunais federais dos EUA para conhecer da legalidade das detenções de alegados “combatentes inimigos” na base de Guantanamo.

Durante dois anos, Bush e Wolfowitz defenderam que os EUA poderiam deter indefinidamente estes suspeitos em Guantanamo, sem acusação formal e sem recurso a controlo jurisdicional independente.

Isto, porque seriam “combatentes inimigos”, um conceito criado à medida para colocar os detidos num “limbo jurídico”. Não sendo reconhecidos como prisioneiros de guerra, não estariam ao abrigo do regime convencional de Genebra. Não lhes reconhecendo, por outro lado, o estatuto de prisioneiros de delito comum, também não beneficiariam das garantias jurídicas e judiciárias decorrentes da Constituição dos EUA, até porque se tratava de cidadãos estrangeiros, detidos num território sobre o qual os Estados Unidos não detêm, formalmente, soberania.

Quando em 28 de Junho o Supremo Tribunal do EUA reconheceu aos detidos o direito de interporem nos tribunais dos Estados Unidos providências de habeas corpus, questionando a legalidade das detenções, vislumbrou-se um triunfo do Estado de Direito e da democracia americana, prevalecendo a “rule of law” sobre o arbítrio da Administração.

Até o fiel aliado Blair acabou por afirmar publicamente que Guantanamo era uma “anomalia” que conviria erradicar.

Porém, ontem, Wolfowitz veio demonstrar que a Administração Bush não se conforma com a decisão judicial proferida em última instância, e tudo fará para minimizar os seus efeitos práticos. Através de uma “Order” por si emitida, promoveu a criação acelerada de intitulados “Tribunais”, para a revisão da detenção dos “combatentes inimigos”.

Estes novos “Tribunais” carecem em absoluto de independência e imparcialidade. De acordo com a “Order” que os cria, serão compostos por três oficiais das forças armadas dos EUA, ditos “neutrais”, mas cuja designação é inteiramente controlada pela Administração, através do Secretário da Marinha.

Não é reconhecido aos detidos o direito a escolher um defensor, nem é permitida a intervenção de advogados. Cada detido será assistido por um “Personal Representative”, um militar no activo designado pela mesma entidade que nomeia os "julgadores". Não está esclarecido se as audiências serão públicas.

O acesso às provas da acusação e a audição de testemunhas de defesa dependem de o tribunal as considerar “reasonably available”. O Tribunal não está vinculado às regras sobre a validade de meios de prova vigentes nos tribunais comuns e será livre de considerar qualquer informação que julgue relevante ou útil para a descoberta da “verdade”.

Admite-se expressamente, por exemplo, que possa recorrer a “hearsay evidence”. Teme-se que se julgue implicitamente autorizado a recorrer a outros meios de prova em regra proibidos, como, por exemplo, confissões extorquidas sob coacção. Em todo o caso, a “Order”, embora afirmando que a decisão do “Tribunal” terá como base a “preponderance of evidence”, tem o cuidado de consagrar uma monstruosidade que há muito se julgava extinta...


... there shall be a rebuttable presumption in favor of the Government’s evidence

Ou seja, consagra-se uma presunção de culpa, que cabe ao arguido ilidir.

Palavras para quê? É a América do séc. XXI, versão George W. Bush...

É óbvio para qualquer observador que este peculiar regime não consagra sequer um arremedo de “due process”, não satisfaz o direito de os detidos serem ouvidos por um juíz independente, num tribunal cuja competência esteja previamente estabelecida ou serem assistidos por um advogado. Como tal, <>bnão implementa a decisão do Supremo Tribunal, nem permite evitar a jurisdição por ele reconhecida aos tribunais federais. Por isso a “Order” prevê que os detidos sejam notificados de que têm também

the right to seek a writ of habeas corpus in the courts of the United States


A criação, a contra-relógio, destes deploráveis “Tribunais”, parece ter como único objectivo tornar mais complexos os processos de habeas corpus que venham a ser instauradas nos tribunais comuns, fornecendo aos advogados do Governo alguns argumentos para esgrimir nessas instâncias, evitando decisões quase liminares em favor dos detidos. A Administração procurará defender que os arguidos (já) não estão detidos arbitrariamente, sem acusação conhecida e avaliada por um julgador independente, uma vez que terão sido ouvidos por estes “Tribunais”, num processo que - alegar-se-á - lhes deu adequadas garantias de defesa.

Como refere John Mintz no “Washington Post” de hoje...

(…)The essential function of the new hearings, officials said, is to help government lawyers argue their cases for continued detention in the habeas corpus hearings that eventually will be held for all detainees. U.S. lawyers would be able to argue that there is no reason for a judge to inquire too deeply into a detainee's case because the government has already deliberated on it, legal experts said.

"When and if there are habeas petitions filed challenging their detention, the government will be in a position to say that we fully satisfied our legal obligations," a senior Justice Department official told reporters yesterday at a hastily convened news conference held on the condition that the speakers not be identified by name. (…)“

Ou seja, o Governo dos Estados Unidos persiste na tentação totalitária e recusa emendar a rota mesmo depois da intervenção do Supremo Tribunal. Sendo expectáveis decisões judiciais condenando o seu gulag cubano, procura dificultá-las, lançando cortinas-de-fumo baseadas na criação administrativa de sucessivas ficções pseudo-jurisdicionais. Em lugar de eliminar um arbítrio que a Constituição dos Estados Unidos e o direito internacional não consentem, procura preservá-lo a todo o custo, com tácticas de guerrilha jurídica que demonstram a pouca conta em que tem os Tribunais.

Por este andar, o principal legado de Bush traduzir-se-á num prolongado descrédito dos valores da democracia, do Estado de Direito e da defesa dos direitos humanos enquanto apanágio dos Estados Unidos da América e sustentáculo da superioridade moral da chamada “civilização ocidental”.

É obra!

Publicado por Gomez 20:49:00  

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