A cópia da semana.

O texto que segue, é da autoria de um... Dragão!

Em tempos de leituras apressadas e num país que consome três jornais desportivos, todos os dias,com tiragens de fazer inveja aos diários de notícias, só um iconoclasta encartado e politicamente incorrecto, escreveria assim...


Eu sei que não devia falar destas coisas. Parece mal. Cobre-me de infâmia, sujeita-me aos remoques azedos, ofendidos, dos filhos do trolha com a mulher a dias; ou do sacristão com a costureira; ou da peixeira com o merceeiro da esquina (enfim, são muitos, e patrulham sem descanso). Sou o primeiro a reconhecê-lo: É uma impertinência inqualificável da minha parte, um despautério de todo o tamanho, uma falta de respeito descarada pela brutidão reinante, pela alarvidade campeã. Eu sei que devia ser trolha, eu sei. Mas, que querem, não consigo. Já vou na terceira lobotomia, tomo comprimidos, faço terapia, leio os jornais, banqueteio-me na televisão, vejo filmes, tenho um blogue, mas é mais forte do que eu. Atormenta-me, obsidia-me.

São os livros. É esse lixo todo do passado que resiste à lavagem, ao dentífrico, ao shampô! Quando penso que já estou curado, imaculadamente limpo e desinfectado, ei-los que voltam, que regerminam, ad-nihil, como as ervas daninhas. Os piores são os de filosofia. Conspiram contra mim, contra a minha felicidade e o meu bem estar. Urdem a minha penúria e a fome dos meus filhos. Os psiquiatras são unânimes: uma vez lidos, já não há nada a fazer. Nenhum tratamento surtirá efeito. Os anestésicos mais poderosos, coletes de forças, electrochoques, apenas retardarão o inevitável. É uma contaminação vitalícia, letal. Uma vez lidos, a vítima gastará o resto da vida a tentar compreendê-los. A rebolar-se com eles na poeira, em zaragatas absurdas, descabeladas, dignas da mais inoportuna epilepsia. A enfrentá-los como Édipo enfrentou o Destino: num duelo titânico condenado ao fracasso humano e ao triunfo inexorável do Além, seja lá quem for que lá reine (e suspeito que não me grama). Não adianta fugir. Nenhum fim do mundo será longínquo o suficiente, nenhum cu de Judas resultará embrutecedor o bastante.

Eu já tentei tudo, acreditem-me. Nem vos passa pela cabeça as paisagens onde já acordei. Dos gelos aos trópicos, especialmente os trópicos, busquei refúgio por toda a parte. Consultei astros, matusaléns antiquíssimos, sábios exóticos, bruxas inenarráveis, mas debalde. Olharam pra mim, comiserados, e deram-me a resposta que o Sileno deu a Midas:

porque nos perguntas aquilo que mais valia não saberes? Se era a ignorância exímia, a pura brutidão redentora que buscavas, essa, agora, já não podes almejá-la: era não teres lido, não teres espreitado detrás do véu que esconde o mundo! E, sobretudo, ó artolas, não fazer perguntas!...


Bla-bla-bla, e outros mimos que tais. Eu que me lixasse. Fiquei na mesma. Desejei que um raio os partisse.

Por isso, desencantei-me. Não perco tempo com ilusões. Anda pr'aqui uma puta duma lucidez a tentar dar cabo de mim e de todos os meus dignos projectos de carreira. E vai consegui-lo.

No entretanto, como diz um certo Manuel que não é burro nenhum (coitado dele), afundo-me neste abismo.

Neste e em todos os que houver neste mundo! É a minha maldição. Sísifo e Tântalo são meus camaradas. E como os condenados eternos, à semelhança dos bêbados, não gostam de penar sozinhos, tomem lá Nietzsche e vinde-vos quilhar também!...

Vejo e tenho visto, horrores piores, uns de que preferia não falar, e outros que nem sequer consigo calar; vi homens a quem tudo falta à excepção de um único membro hipertrofiado, homens que apenas são um grande olho ou uma grande goela ou uma grande pança ou qualquer outra deformidade, a esses chamo enfermos às avessas.

Quando abandonei a minha solidão e, pela primeira vez, atravessei esta ponte, nem podia crer no que os meus olhos viam. Olhava de um lado, olhava de outro, e acabei por dizer: "Isto é uma orelha! Uma orelha tão grande como um homem!" Porém, olhando de mais perto, vi que sob a orelha se agitava outra coisa lastimosamente pequena, miserável e débil. E, em verdade, a enorme orelha estava poisada sobre um caule fininho e curto, e esse caule era um homem! Com o auxílio de uma lente, podia-se mesmo distinguir um pequeno rosto invejoso e uma pequena alma empolada que pendiam da extremidade do caule. Contudo, o povo assegurou-me que aquela orelha não era só um homem, mas até um grande homem, um génio. Mas eu nunca acreditei no que o povo diz acerca dos grandes homens, e continuei a crer que se tratava de um enfermo às avessas, com muito pouco de tudo, e demasiado de uma coisa só.

Nietzsche, "Assim Falava Zaratustra" [Da Redenção]



Publicado por josé 20:57:00  

1 Comment:

  1. zazie said...
    é um dos melhores textos deste Dragão!

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