"Solidariedades/Cumplicidades"
quinta-feira, abril 29, 2004
Gandalf está velho. Passado. Confunde tudo. Relembra, vivamente e lucidamente, epifenómenos do antigamente. Esvaziam-se-lhe, num ápice, os grandes fenómenos da véspera. É vaidoso, sem senso, quer o seu nome publicado: na Grande Loja, não nos jornais!
Não entendem que a máxima virtude de um ancião é a vaidade. Falece-lhe o espírito crítico. Olha só para dentro
Arteriectasia.
Como velho, armazena papeis, recorta jornais, revistas mundanas com mulheres nuas. Anarquicamente, à mistura com filmes pornográficos e peças de artesanato, a dizer com a decadência das suas longas barbas brancas, mal aparadas.
De quando em vez, impulsionado pelo falso vigor da sua vetustez, revisita pastas, o que já lá vai e toda a gente esqueceu, só os velhos se lembram. Um trabalhão: opiniões, manifestos, abaixo-assinados, juras de solidariedades difusas, afirmações solenes de amor eterno à democracia e direitos humanos.
Gandalf fica confuso no seu estado confuso.De velho. E como velho. E soletra, lá para dentro: "..já nada é como era.." Ser solidário, agora, é outra coisa: apoiar "politicamente" o gajo do partido que está indiciado de crimes vergonhosos. Monetariamente compensadores. Desde que tenha enviado, por baixo de mão, o grosso da massa para o partido.
Num desses recortes, Gandalf encontra o APELO. Recorte enodoado por pingas de comidinha que, gulosa e descuidadamente,deixou tombar no jornal, em noite erótica de espreita, às escuras, sem a patroa ver, dum daqueles filmes que já disse quais.
Repara que ser solidário é apelar a tudo e todos, poder inclusive, contra os excessos da prisão preventiva, contra o segredo de justiça, contra os abusos das escutas telefónicas se, e quando, os arguidos são correligionários. São figuras de peso: Mário Soares, Freitas do Amaral, Leonor Beleza, Galvão Teles e o inefável Jorge Lacão.
Gandalf hesita. O recorte é da década passada? Lê,relê, volta a ler e a reler. Não, com lunetas, próprias de Gandalf, fica seguro que o APELO é de 24 de Julho de 2003. Fica atónito: no fascismo era tudo mais democrático!!!.Está lá. Na altura, Gandalf, que era ainda menos velho protestou. Que não senhor, que protestavam porque "há porcos mais iguais que outros porcos, mas que todos são porcos". Que quando se prendia, antes do tempo,os ladrões de autorádios e os traficantes de esquina, não havia protestos, que vítimas da prisão dita preventiva eram os milhares de desempregados, vítimas das escutas eram os que viviam em buracos e que se diziam, eufemisticamente, de "bairros sociais", e os cidadãos que viviam em barracas onde nem se podia "amar" sem que se ouvisse no quarto do vizinho do lado.
O velho quedou-se amargurado. Já não sabia o que era a solidariedade. Então não era justo, quão justo(!!!), que protegessem os amigos em prisão preventiva cujo sistema eles próprios criaram para os outros a partir de 1 de janeiro de 1988? Aquilo estava certo, democrático, ressocializador. Mas com destinatários de outras "famílias".
Depois, só depois, percebeu: a Imprensa Nacional, no DR-II, de 21 de Abril certificava, com força de documento autêntico, que não sabia nada de leis, de prisões, preventivas, ou não, de segredos, de justiça, ou não, de presunções, de inocência, ou não. Um velho precisa de ser convencido. Com força. Com APELO, ou sem ele.
Há dias, Gandalf é violentamente despertado por uma "sirene de ouro". Que barulheira! Surdo pela velhice, supunha-se a salvo de tanto ruído. Ouviu, leu, releu e tornou a ouvir. Solidariedades. Nas teias, presuntivamente teias, ó críticos. De futebois, de construções, de partidos políticos, de especiais mensagens de solidariedade. Em quê? Tudo gente bem, com vários empregos mal pagos por causa da crise. Que o governo de todos os portugueses não se mete nisso, que há a separação de poderes, "...à justiça o que é da justiça, á política o que é da política..." Que foi sempre esta a nossa política.
Os defensores voltaram à TV. Com elogios. O Velho estranha. Elogios? E informa-se. E comprende. Elogios à juíza? E comenta, só para si, sem ninguém ouvir: "...À juíza , ou às JUÍZAS?"
Como Gandalf é um vencido da vida, vai cogitando, sempre à noite, quando faz aquele acto de contrição que um ancião tem de fazer: que solidariedades são estas? E logo responde, muito silenciosamente: "similes cum similibus".
Gandalf
Publicado por josé 12:05:00