"Os Lilases"
terça-feira, abril 20, 2004
«Abril é o mês mais doce, pensou. Tinha a impressão de que escrevera a frase numa das suas novelas, Abril é um mês azul, os lilases, os jacarandás, os lírios. E o mar, que se estendia à sua frente, o mar no qual podiam surgir monstros de olhos verdes. Fechou o livro e pousou-o no muro, estendeu as pernas para o lado das rochas. No livro havia um rio, duas casas, uma em cada margem, e uma pequena ponte que as personagens atravessavam ao longo de toda a história. Desapareciam durante uns minutos e depois tornavam-se visíveis a meio da ponte. Tony, um homem bem-parecido que despertava paixões violentas, Jean, bonita e luminosa, com o cabelo muito louro, e Rose, uma personagem de Ibsen, feia e linda (Tu sabes o que eu sou, e voltaste para isso, finalmente, de muito longe). Era um livro ao qual apetecia voltar (e são os únicos que interessam), pelas casas, os jardins, o rio, e por eles, pela paixão e a violência que estavam tão perto da superfície. "The Other House" era uma novela surpreendente para quem conhecia a obra de Henry James, ali não havia subtileza, rodeios, tudo estava em bruto, ele nunca escrevera assim.
Abril é o mês mais doce. Voltou as costas ao mar e ficou a olhar para o jardim, os lilases estavam em flor, cresciam pelas paredes da casa e pelas árvores em volta, o jardim estava azul, ao longe viam-se as flores dos jacarandás. A casa era cinzenta e tinha uma torre. Também havia lilases na casa do romance que estava a escrever, ficava numa ruazinha de Londres, na parte da cidade de que mais gostava, perto da National Gallery, dos alfarrabistas, dos teatros. Byrne alugara o sótão durante um ano para escrever um livro sobre Iris Murdoch. E ela conhecia o rosto de Byrne, era o de um actor de cinema, durante meses recortara fotografias de revistas, voltara a ver os filmes dele (And I love you, angel), e depois fora a Londres porque precisava de ver quadros e de caminhar na rua onde ficava a casa de Ashley. Uma noite fora ao teatro, a cadeira ao seu lado estava vazia, um homem entrara quando as luzes estavam apagadas; no intervalo vira que o homem sentado ao seu lado era ele. E nem mesmo Henry James seria capaz de fazer isso, pensou. Lembrava-se de palavras que lhe dissera naquela noite, e ele, o protagonista do meu livro, tem o teu rosto, e os teus olhos, e a tua voz, e é irlandês, e tem cinquenta e dois anos. Um sorriso. Then he has nothing to do with me, I am only twenty seven.
Caminhou devagar pelo jardim, deteve-se para fazer uma festa a um gato. Algum tempo depois um escritor que vivia muito longe sonhou com o livro, disse que ainda não chegara o momento de o publicar, acontecera algo de parecido com um filme de Antonioni, e ele não fizera o filme. E havia a história dos anjos que desdobravam os céus no princípio dos tempos. Encontrara referências a esses anjos nos romances de Iris Murdoch, em "Nuns and Soldiers" eles desdobravam os céus, em "The Green Knight" voltavam a dobrá-los, porque chegara o fim dos tempos.
Entrou pela porta envidraçada do escritório, as reproduções de Rothko e de Chagall, as estantes, as pedras, a jarra de lilases. Tirou o manuscrito da gaveta, folheou-o devagar, os versos de Stevenson, as ruas de Londres, os quadros, os parques, a casa de praia e os pássaros. E a neve. E parecia tudo tão calmo, tão inofensivo. O livro ficara inacabado, ela gostava de livros inacabados, de quadros inacabados. Voltou a guardá-lo na gaveta e foi à cozinha buscar uma fatia de pão.
Escolheu um vídeo, um filme a preto e branco de Vincente Minnelli, com Robert Mitchum e Katharine Hepburn. O mar muito calmo. You can't always see that undercurrent, but it's there.
Como na vida.»
«Os Lilases», Ana Teresa Pereira
crónica inserida no suplemento «Mil Folhas», do Público de 10 de Abril de 2004
Publicado por André 20:15:00