Os Homens, os Animais e os Anjos

«"Os Primeiros Encontros" de Arseni Tarkovski começa assim: "Cada momento passado juntos / Era uma celebração, uma Epifania, / Nós os dois sozinhos no mundo. / Tu, tão audaz, mais leve que uma asa, / Descias numa vertigem a escada / A dois e dois, arrastando-me / Através de húmidos lilases, aos teus domínios / Do outro lado, passando o espelho." Este é um dos poemas que podemos ouvir no filme "Nostalghia" de Andrei Tarkovski, na voz do poeta, seu pai. Em português encontra-se no livro "8 Ícones" numa tradução de Paulo da Costa Domingos (Assírio & Alvim). Lembro-me de versos soltos do poeta: "e em Junho havia tantos lilases / que o brilho do mundo se fez turquesa", "como se abre um caderno, eu estudei a erva / a erva tornava-se flauta para cantar", "por ti, que me foste tirada, que de noite / choravas por mim, num simples / vestido negro", "procuro na alba os teus ténues traços / Lembro-me de tudo. Vingar-me-ei.", "a morte imprime o seu selo sobre todas as coisas"... E de imagens do filme: Gorchakov encosta-se a um espelho, as duas gotas de azeite transformam-se numa só, os pássaros saem do ventre de Nossa Senhora do Parto, o escritor olha-se ao espelho e vê o rosto do louco, Domenico chama pelo cão porque tem medo de estar sozinho, Gorchakov atravessa a piscina com uma vela acesa na mão. As palavras de Domenico junto à piscina: "nunca te esqueças do que Ele disse a Santa Catarina, tu és aquela que não é, Eu sou Aquele que é".

Há uma poesia, um cinema, uma pintura que são um itinerário místico. Tonino Guerra trabalhou com Tarkovski no argumento de "Nostalghia". No seu livro "O Mel", o Canto Dezasseis remete para o filme, há um homem que tenta atravessar a água com uma vela acesa na mão. Disponho os livros dele ao acaso sobre a mesa e os desenhos das capas (que me lembram um pouco os de Paul Klee) transformam-se num desenho só, sempre diferente, sempre misterioso, igrejas, peixes, pássaros. No argumento de "Nostalghia" havia um anjo, no filme só ficou o movimento da asa, e uma pena que esvoaça. Em "Histórias para uma Noite de Calmaria" um dos contos mais enigmáticos chama-se "Dois estranhos de olhos claros", começa em Veneza, e penso que ainda não terminou. No livro de Mário Rui de Oliveira, "Bairro Judaico", há um anjo na capa, um anjo das ruínas de Erculano, em Nápoles. Um anjo esquecido, talvez.



Mário Rui de Oliveira nasceu em Braga no mês de Abril de 1973. Vive em Roma, e é o tradutor de "Histórias para Uma Noite de Calmaria" e "O Mel" de Tonino Guerra (Assírio & Alvim). (Fico à espera das traduções de "Il Vecchio com un Piede in Oriente", "Il Viaggio", "La Capanna", "L'Orto d'Eliseo", "I Cento Ucelli".) O seu primeiro livro, "O vento da noite" (Assírio & Alvim), tinha um prefácio de Eugénio de Andrade, que falava da presença de Deus naqueles textos: "Esta vizinhança de Deus sente-se logo ao abrir o livro, porque desde os sinos do primeiro poema somos convocados a entrar num espaço como que sagrado, pois mesmo sem tocarem, os pássaros cantam dentro deles". É um espaço sagrado. Como no texto que se chama "Ícone": "Que suplicam de nós os olhos onde descansa o esplendor? Que silenciosos anjos guiam rebanhos em seus cabelos? Por engano floresce, tão solitário, o matinal afago? A beleza deste rosto reclama a maior consolação. Um só lençol envolve o mundo, de safiras e de sangue." Um espaço sagrado onde alguém anda de autocarro, de olhos cerrados, até se perder. Ou segura uma chávena de café, "ninguém como ele conhece os segredos que se agarram a um casual café". Ou lê Clarice Lispector e Jean Genet. Ou olha para uma escultura de Alberto Giacometti e para telas de Rothko. "Mark Rothko": "Mede a tapeçaria como quem entra no santuário e quebra o espelho de uma ausência. Suas cores são um milagre. De púrpura violácia, de púrpura escarlate, de púrpura carmesim. Assim o manto do seu encontro. Feito de romãs e sinos de oiro. Da matéria dos holocaustos."



O segundo livro chama-se "Bairro Judaico" e tem um anjo na capa, um anjo esquecido. É belo e terrível, como um anjo de Rilke. "Logo atrás de ti": "Esta dor não passa quando adormeço / chora ao pé de mim / irremediável // alguém nos toca o ombro e / damos por nós mais sozinhos // o meu lugar na morte / é junto da janela / logo atrás de ti." Nestes poemas surgem as flores, as que nos comovem (as flores brandas de Março ou talvez ainda as frésias que procuramos pela cidade inteira) e as que não nos comovem (as que crescem fora da estação), os cães, os cavalos, as fotografias de Francesca Woodman (o seu corpo nu, as enguias e os limões, "on being an angel"), Louise Bourgeois (o seu rosto de mensageiro, o seu sonho de corpos e aranhas), uma canção dos The Smiths ("I never never want to go home / because I havent got one / I havent got one"), "Os Quatrocentos Golpes" de Truffaut, a paixão de Simone Weil (amar Deus sem consolação), a cerimónia de Cristina Campo, o desejo de San Juan de la Cruz, o Deus vivo, um ícone e a música de Pergolesi, um personagem de Tonino Guerra, rosas, árvores, insectos, pássaros, destroços, a morada em Paris de Giacometti, de Cézanne e de Van Gogh, as plantas que Laertes ofereceu a Ulisses, um bairro judaico, e "Jerusalém": "Também assim os versos / caem perto do que esquecemos e arrastam / a mil anos de distância / esta espécie de uivo / este grito de veludo escondido em nós / desde que os glaciares derreteram // nossas mãos / assemelham-se tanto a cidades destruídas // Jerusalém, meu coração".



Lembro-me de uma entrevista em que Tonino Guerra pedia a Tarkovski para lhe contar a última cena de "Stalker", como se ele fosse cego. E às vezes é tão difícil encontrar as palavras para falar de algo que existe com muita força. Como "Bairro Judaico", que pode facilmente tornar-se um dos livros da vida de alguém. No final de "Nostalghia", pouco antes de imolar-se pelo fogo (a paixão pelo fogo encontra-se em Tarkovski, em Giacometti, em Tonino Guerra, em Mário Rui de Oliveira), Domenico diz: "ouve, é a voz da natureza, é a voz de Deus". E por algum motivo me lembro dessas palavras quando folheio este livro.»

«Os Homens, os animais e os anjos», Ana Teresa Pereira
crónica inserida no suplemento «Mil Folhas», do jornal Público de 6 de Março de 2004

Publicado por André 16:10:00  

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