Causa e Efeito ...

Do Causidicus, via Cordoeiros e com a devida vénia ...

A REFORMA DO PROCESSO PENAL
(notas à margem de um Acórdão recente)

A análise de várias propostas de reforma do Código de Processo Penal (CPP) tem estado na ordem do dia. Não sendo “especialista” na matéria, não irei aqui maçar os eventuais leitores deste blog com as m/ opiniões sobre o assunto, decerto pouco abalizadas. O alcance deste post é mais modesto. Visa, simplesmente, sugerir aos especialistas encartados da n/ blogosfera que integrem nesse debate os contributos inovatórios que me parecem resultar de um recente Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa relatado pelo Ven. Desembargador Dr. Telo Lucas.

Cumpre-me esclarecer, preliminarmente, que o Causidicus continua a entender não poder pronunciar-se sobre decisões judiciais concretas cujos autos não conhece. Qualquer comentário a uma decisão de que não se conhece o teor integral e cujos fundamentos o comentador não pôde avaliar no respectivo processo seria sempre, no mínimo, leviana. Não se entenda pois este post como um qualquer comentário, directo ou indirecto, à decisão proferida naquele caso concreto.

Em todo o caso, os alegados extractos do Acórdão divulgados na comunicação social (lidos no “CM” de 2004-04-03), mesmo que – porventura – inexactos ou retirados de contexto, suscitam, em si mesmos, pelo carácter inovador e criativo de que se revestem, um conjunto de reflexões que conviria analisar e aprofundar em sede de reforma do CPP. Quer para consagrar tais soluções – se forem entendidas como adequadas – quer para, na medida do possível, as afastar – se forem tidas como inconvenientes.

Até agora, havendo (como parece ter sido reconhecido neste Acórdão), fortes indícios de prática de crime doloso punível com determinada pena de prisão e perigo concreto de continuação da actividade criminosa, considerava a generalidade da n/ jurisprudência dever ser aplicada a medida de prisão preventiva se as demais medidas de coacção se revelassem, face ao circunstancialismo do caso, inadequadas ou insuficientes para prevenir a prática de novos crimes. A aplicação da medida de coacção pelo Tribunal devia garantir que o risco de continuação da actividade criminosa não poderia ser concretizado pelo arguido, aplicando-se a prisão preventiva aos casos em que tal garantia não poderia ser dada por outra medida de coacção, o que, evidentemente, em nada brigava com o carácter excepcional da aplicação da medida de prisão preventiva.

Inovando em relação a este paradigma, a doutrina que parece resultar dos alegados extractos do Acórdão em causa, dispensa uma efectiva garantia de não continuação da actividade criminosa assegurada por medidas de coacção aplicadas pelo Tribunal, confiando que, face a determinadas circunstâncias, o arguido se absterá da prática de novos crimes. A substituição de um princípio cautelar garantista (ou, se se preferir, de adequação às exigências cautelares requeridas pelo caso) por este novo e menos exigente princípio de confiança, que se satisfaz com uma provável abstenção do arguido, pode constituir uma das mais revolucionárias propostas de reforma do n/ ordenamento processual penal, suscitando também uma série de novas questões cujas implicações conviria fossem analisadas pelos teóricos e práticos desta área.

O aludido princípio de confiança, aplicado à escolha da medida de coacção face ao risco de continuação da actividade criminosa, parece decorrer, na doutrina em apreço, de dois sub-princípios. A confirmar-se a fidedignidade da doutrina divulgada pela comunicação social, seria a meu ver justo reconhecer o contributo inovatório do seu alegado autor, baptizando-os, por hipótese, de princípio do limiar de Telo e princípio do outsourcing coactivo de Lucas (caso os relatos da comunicação social não sejam, afinal, fidedignos, esta proposta de denominação fica, naturalmente, sem efeito).

O princípio do limiar de Telo parece assentar na convicção do efeito pedagógico da sujeição a prisão preventiva, defendendo que um cidadão que preze a sua liberdade pessoal, após ter sido sujeito a vários meses de prisão preventiva, tenderá a abster-se de praticar novos crimes, pelo receio da reaplicação daquela medida. A ser aceite este princípio, poderia o legislador definir um limiar, de “x” meses, após o qual a medida de prisão preventiva destinada a impedir a continuação da actividade criminosa seria obrigatoriamente substituída por outra medida de coacção, pelo menos nos casos de arguidos sem antecedentes criminais e que não revelassem indiferença pela sua liberdade. O carácter revolucionário de uma tal medida de política criminal dispensa comentários.

O princípio do outsourcing coactivo de Lucas é mais complexo. A confiança de que o arguido se absterá da continuação da actividade criminosa parece fundar-se, neste caso, na existência de mecanismos de controlo e escrutínio social e pelos media, decorrentes da especial exposição pública do arguido e do interesse social e mediático que o mesmo desperta. Também aqui o Tribunal deixa de garantir a impossibilidade da prática de novos crimes, confiando num outsourcing coactivo assente no escrutínio social e mediático.

A aplicação de um tal princípio levanta, porém, problemas extremamente complexos, alguns dos quais referirei telegraficamente. Como se concilia a protecção dos direitos do arguido libertado (direito à imagem, à liberdade de movimentos, a não ser importunado,...) com o funcionamento intrínseco dos mecanismos de outsourcing coactivo que fundamentaram a sua libertação? O reconhecimento da existência e do papel destes mecanismos de controlo extra-judiciais pode, em algumas circunstâncias, determinar a existência de causas de justificação para intromissões na reserva de intimidade e vida privada do arguido, designadamente quando os crimes que lhe são imputados decorrem, pela natureza das coisas, em locais reservados e fora do normal escrutínio público? Como e com que periodicidade se afere da subsistência destes mecanismos de controlo, face ao decurso do tempo e à volubilidade do interesse público e mediático?

Mas as potencialidades deste interessante princípio não se restrigem ao campo do Direito. A sua importância económica também deve ser relevada. Como em qualquer situação de outsourcing, uma eventual generalização da aplicação deste princípio deverá determinar a contratualização de alguns dos aspectos a ele inerentes. Não será de excluir que, no futuro, os Tribunais possam contratualizar a efectiva prestação e continuidade destes mecanismos de controlo, independentemente da evolução das agendas mediáticas e/ou sociais, por exemplo com uma pool de jornalistas ou com grupos de cidadãos, abrindo novas oportunidades de negócio, de redução do desemprego e criação de riqueza. A instituição desta possibilidade, por via legislativa, poderia até assegurar obrigações do Estado decorrentes do princípio da igualdade. Em determinadas circunstâncias a definir pelo legislador, mesmo presos preventivos menos conhecidos e/ou mediáticos poderiam requerer a substituição da prisão preventiva por mecanismos de ousourcing coactivo desta natureza, suportados pelo Estado. E as potencialidades desta doutrina ao nível da retoma da nossa economia nem sequer ficam por aqui... A contratualização do outsourcing coactivo exigiria decerto a criação de entidades de certificação, de fiscalização e até de formação profissional específica (por ex., o que deve um jornalista outsourcer coactivo fazer caso suspeite estar a presenciar uma entrega de uma qualquer “TelePutos” a arguido indiciado por pedofilia?).

Tenho ainda uma angustiosa dúvida final. Caso um preso preventivo libertado à luz deste princípio da confiança venha, não obstante, a praticar novos crimes, quem deve ser responsabilizado, designadamente em sede de eventual responsabilidade civil: apenas o arguido, ou também o Estado (pelo risco criado)?

As problemáticas - mas também as potencialidades - destes princípios que questionam o paradigma vigente são imensas. Aqui fica o repto para que sejam aprofundadas, também em abstracto, por alguém mais capaz. A criatividade dos juristas - é sabido - não conhece limites.

Publicado por Manuel 16:34:00  

0 Comments:

Post a Comment