A Cópia da tarde
segunda-feira, fevereiro 02, 2004
O Jornalismo de Investigação e a Justiça
Num artigo publicado em 2002, o jornalista José Pedro Castanheira, escreveu neste local de além-mar, extensamente sobre o jornalismo de investigação em Portugal - antes do caso Casa Pia.
Vale a pena recordar o escrito e aqui ficam os últimos parágrafos da versão integral:
"Todos sabemos que os tribunais funcionam muito deficientemente.
Até há bem pouco tempo, a investigação sobre os chamados crimes de colarinho branco não passava de uma farsa. Quem contasse com conhecimentos bem colocados e bons advogados, pagos a peso de ouro, estava safo. "Em Portugal, temos desigualdade de justiça, só temos pobres diabos presos." A frase é de Maria José Morgado, a procuradora-geral-adjunta que saiu da Polícia Judiciária a bater com a porta (Público, 29/9/02).
Ou seja: "A justiça que temos é forte com os pequenos e desigual em relação à criminalidade dos poderosos".
O ex-presidente do Benfica, Vale e Azevedo, acabou por ter azar: foi a primeira figura do jet set nacional a ver os seus negócios investigados a sério. Julgado, foi a condenado a quatro anos e meio de prisão efectiva.
Seguiu-se a Universidade Moderna, cujas conseqüências ainda são imprevisíveis no plano político. Muito provavelmente, com as recentes demissões na PJ, tudo voltará à farsa do costume.
Ora, um grande número de casos abordados pelos jornais incidem não tanto sobre os crimes of the streets, e mais sobre os crimes of the suites. Mal investigadas pela Polícia Judiciária ou pelo Ministério Público, as denúncias feitas pelos media acabam por dar em nada. Ou melhor, acabam por voltar-se contra os media, na medida que põem em causa a sua credibilidade.
Por outro lado, há a lentidão paquidérmica dos tribunais. Em 1985 escrevi em O Jornal uma história sobre a passagem de cheques sem cobertura em quatro países, por parte de um fulano que entretanto fora nomeado administrador de uma empresa para-pública, ainda por cima com o pendências financeiras. A história parecia-me meridiana e tinha como base aquilo que eu julgava ser a melhor fonte possível: uma ficha da Interpol, com identificação completa do homem, sem esquecer a própria impressão digital.
Fui processado. Estávamos na altura do "Bloco Central", a grande aliança entre PS e PSD. O homem era do PSD, "irmão" num dos mais importantes ramos da Maçonaria e foi defendido por um dos mais conhecidos e caros advogados da nossa praça.
Já estão a imaginar o resultado: perdi!
Na primeira instância, fui condenado pelo crime de difamação a três meses de prisão. Apesar de se ter provado que a ficha da Interpol era autêntica.
O processo, digno de Kafka, subiu e acabei por ganhar na Relação e no Supremo, mas ao fim de onze anos - isto numa época em que os crimes de imprensa ainda eram considerados de apreciação prioritária...
Nesse ínterim, já eu saíra de O Jornal, que por sua vez já não existia, enquanto a minha principal fonte e testemunha de defesa já tinha falecido...
Já no Expresso, acompanhei de perto uma história sobre um escandaloso perdão fiscal, determinado pelo então secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Oliveira e Costa. A história foi escrita em 1990. O caso continua - e já passaram 12 anos.
Não sei quantos processos tive, mas foram mais de uma dezena (presentemente, creio que não tenho nenhum). E eu até passo por ser um jornalista rigoroso e cauteloso. A verdade é que os tribunais acabam por transformar-se numa maçada para toda a gente - menos para os advogados, os únicos que ganham verdadeiramente com isso.
Ninguém gosta de ir a tribunal: não é só o jornalista, são também as testemunhas de defesa, mesmo as abonatórias, o editor (que pôs em página e titulou a notícia), o director (que até 1999 era legalmente co-responsável por tudo quanto se publicava), e a empresa (que vê um seu jornalista e o seu jornal no banco dos réus e que teme o montante de uma eventual indemnização). Depois, são as sessões adiadas. E as ausências que têm de ser justificadas. E as multas que têm de ser pagas. E os interrogatórios sobre assuntos que quase todos já esqueceram. E os recursos para a Relação. E os contra-recursos para o Supremo.
O jornalista acaba por se sentir "culpado" por incomodar tanta gente, fazer perder tanto tempo, esgotar tantas energias. Tudo isto acaba por se transformar numa forma de pressão inconsciente sobre o jornalista.
Mas valerá a pena? - acabará por se interrogar, quando depara com um novo caso complicado.
Veja-se o que é feito dos grandes casos da Imprensa de há dez, doze, quinze anos.
Veja-se o caso Melancia. Para os mais novos e para os que têm a memória mais curta, recordo que a primeira manchete de O Independente com o fax para o governador de Macau foi em fevereiro de 1990.
O caso só foi definitivamente encerrado pelo Supremo Tribunal de Justiça há exactamente duas semanas - mais de 12 anos depois!
Perante tamanha morosidade e/ou incompetência da máquina judicial, a dúvida instala-se: valerá mesmo a pena continuar a esgrimir contra moinhos de vento? Valerá mesmo a pena correr riscos?
Fico-me por aqui. Não distingui, propositadamente, os aspectos conjunturais, dos aspectos mais estruturais ou, se se preferir, das tendências mais profundas, de longo prazo. Como não me pronunciei sobre as formas de tentar alterar esta situação de estado de crise. Fica para o debate. "
Até há bem pouco tempo, a investigação sobre os chamados crimes de colarinho branco não passava de uma farsa. Quem contasse com conhecimentos bem colocados e bons advogados, pagos a peso de ouro, estava safo. "Em Portugal, temos desigualdade de justiça, só temos pobres diabos presos." A frase é de Maria José Morgado, a procuradora-geral-adjunta que saiu da Polícia Judiciária a bater com a porta (Público, 29/9/02).
Ou seja: "A justiça que temos é forte com os pequenos e desigual em relação à criminalidade dos poderosos".
O ex-presidente do Benfica, Vale e Azevedo, acabou por ter azar: foi a primeira figura do jet set nacional a ver os seus negócios investigados a sério. Julgado, foi a condenado a quatro anos e meio de prisão efectiva.
Seguiu-se a Universidade Moderna, cujas conseqüências ainda são imprevisíveis no plano político. Muito provavelmente, com as recentes demissões na PJ, tudo voltará à farsa do costume.
Ora, um grande número de casos abordados pelos jornais incidem não tanto sobre os crimes of the streets, e mais sobre os crimes of the suites. Mal investigadas pela Polícia Judiciária ou pelo Ministério Público, as denúncias feitas pelos media acabam por dar em nada. Ou melhor, acabam por voltar-se contra os media, na medida que põem em causa a sua credibilidade.
Por outro lado, há a lentidão paquidérmica dos tribunais. Em 1985 escrevi em O Jornal uma história sobre a passagem de cheques sem cobertura em quatro países, por parte de um fulano que entretanto fora nomeado administrador de uma empresa para-pública, ainda por cima com o pendências financeiras. A história parecia-me meridiana e tinha como base aquilo que eu julgava ser a melhor fonte possível: uma ficha da Interpol, com identificação completa do homem, sem esquecer a própria impressão digital.
Fui processado. Estávamos na altura do "Bloco Central", a grande aliança entre PS e PSD. O homem era do PSD, "irmão" num dos mais importantes ramos da Maçonaria e foi defendido por um dos mais conhecidos e caros advogados da nossa praça.
Já estão a imaginar o resultado: perdi!
Na primeira instância, fui condenado pelo crime de difamação a três meses de prisão. Apesar de se ter provado que a ficha da Interpol era autêntica.
O processo, digno de Kafka, subiu e acabei por ganhar na Relação e no Supremo, mas ao fim de onze anos - isto numa época em que os crimes de imprensa ainda eram considerados de apreciação prioritária...
Nesse ínterim, já eu saíra de O Jornal, que por sua vez já não existia, enquanto a minha principal fonte e testemunha de defesa já tinha falecido...
Já no Expresso, acompanhei de perto uma história sobre um escandaloso perdão fiscal, determinado pelo então secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Oliveira e Costa. A história foi escrita em 1990. O caso continua - e já passaram 12 anos.
Não sei quantos processos tive, mas foram mais de uma dezena (presentemente, creio que não tenho nenhum). E eu até passo por ser um jornalista rigoroso e cauteloso. A verdade é que os tribunais acabam por transformar-se numa maçada para toda a gente - menos para os advogados, os únicos que ganham verdadeiramente com isso.
Ninguém gosta de ir a tribunal: não é só o jornalista, são também as testemunhas de defesa, mesmo as abonatórias, o editor (que pôs em página e titulou a notícia), o director (que até 1999 era legalmente co-responsável por tudo quanto se publicava), e a empresa (que vê um seu jornalista e o seu jornal no banco dos réus e que teme o montante de uma eventual indemnização). Depois, são as sessões adiadas. E as ausências que têm de ser justificadas. E as multas que têm de ser pagas. E os interrogatórios sobre assuntos que quase todos já esqueceram. E os recursos para a Relação. E os contra-recursos para o Supremo.
O jornalista acaba por se sentir "culpado" por incomodar tanta gente, fazer perder tanto tempo, esgotar tantas energias. Tudo isto acaba por se transformar numa forma de pressão inconsciente sobre o jornalista.
Mas valerá a pena? - acabará por se interrogar, quando depara com um novo caso complicado.
Veja-se o que é feito dos grandes casos da Imprensa de há dez, doze, quinze anos.
Veja-se o caso Melancia. Para os mais novos e para os que têm a memória mais curta, recordo que a primeira manchete de O Independente com o fax para o governador de Macau foi em fevereiro de 1990.
O caso só foi definitivamente encerrado pelo Supremo Tribunal de Justiça há exactamente duas semanas - mais de 12 anos depois!
Perante tamanha morosidade e/ou incompetência da máquina judicial, a dúvida instala-se: valerá mesmo a pena continuar a esgrimir contra moinhos de vento? Valerá mesmo a pena correr riscos?
Fico-me por aqui. Não distingui, propositadamente, os aspectos conjunturais, dos aspectos mais estruturais ou, se se preferir, das tendências mais profundas, de longo prazo. Como não me pronunciei sobre as formas de tentar alterar esta situação de estado de crise. Fica para o debate. "
Publicado por josé 18:16:00
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