A cópia do dia

O “crítico” de televisão Eduardo Cintra Torres escreve hoje no Público uma crónica que vale a pena ler.

A Imprensa É Livre, Os Jornalistas Não

O tema de hoje é melindroso. Mas não é meu hábito evitar questões melindrosas se interessam ao espaço público e merecem debate.

Circula na Internet uma mensagem com o título "Coincidências". Refere que a SIC foi a única estação que esteve no Parlamento quando o juiz Rui Teixeira ali entregou o pedido de levantamento da imunidade a Paulo Pedroso. Refere depois uma série de relações pessoais ou profissionais de pessoas da SIC: Daniel Cruzeiro, chefe de redacção, é filho do advogado de Paulo Pedroso e é casado com Rita Ferro Rodrigues, também ela da SIC e filha do secretário-geral do PS; Sofia Pinto Coelho, jornalista, é casada com Ricardo Sá Fernandes, da defesa de Carlos Cruz; Ricardo Costa, editor de política, é irmão de António Costa, dirigente do PS. A que se somam estes factos: Cruz era apresentador na SIC até à eclosão do caso Casa Pia; Marta Cruz, filha do apresentador, é presença constante num programa da SIC; Herman José, arguido do mesmo caso, é apresentador dum programa da SIC.

O que chama a atenção é a quantidade. Georg Simmel escreveu em 1908 um notável texto sobre "a quantidade em grupos sociais" em que teoriza sobre as consequências sociológicas internas e externas do número de pessoas na parte ou no todo dum grupo. Afirma que "uma modificação numérica produz uma transformação notável na categoria sociológica", resultando "da causa quantitativa consequências sociológicas qualitativas". Perante a pequenez numérica da redacção conjunta SIC e SIC Notícias, compreende-se que o grande número de profissionais relacionados com um único partido ou, por casualidade, com pessoas que estão ou foram directa ou indirectamente relacionadas com o caso da Casa Pia, produza "certos rasgos e carácter no grupo social" (Simmel).

Há uma coincidência inescapável: todos os três dirigentes do PS que deram a conferência de imprensa antes da detenção do deputado - Ferro Rodrigues, António Costa e o próprio Pedroso - têm alguma relação directa ou indirecta com pessoas que trabalham ou dirigem a redacção da SIC.

São normais certas coincidências nos meios das elites: há sempre encontros que parecem fortuitos. Mas não são fortuitos num sentido social: existem explicações lógicas para que um membro das elites sempre encontre pessoas conhecidas ou relacionadas noutro meio das elites ("O quê, você é Cintra? Mas então é dos Cintras do Sporting ou daqueles outros Cintras?"): as elites portuguesas são pequenas - ou não seriam elites - e muito ciosas dos seus espaços de poder. São também endogâmicas, casam entre si para controlarem a sua população e reproduzirem o seu poder. A tese do doutoramento em 1995 de Pedro Tavares de Almeida na FSCH-UNL (que ainda não li) quantifica e analisa esta endogamia e autodefesa da elite política na primeira Regeneração, na segunda metade do século XIX. O fenómeno atravessou o tempo até hoje; as mudanças de regime não afectaram a estabilidade do fenómeno.

As elites portam-se como as aristocracias históricas na "tendência para a maior limitação numérica possível", o que se deve não só "à repugnância egoísta para partilhar o domínio" mas também ao facto de "as condições vitais duma aristocracia não poderem cumprir-se senão dentro dum escasso número de indivíduos" (Simmel).

Esta realidade social já permitiria por si que relações entre a elite política e a elite mediática se cruzassem na redacção e programas da SIC (ou de qualquer outra estação). Mas neste caso, por casualidade ou por causalidade, as coincidências quantitativas são tantas que adquirem uma condição qualitativa. Merecem referência.

Quais as "consequências sociológicas" da coincidência? É fácil imaginar, como Simmel faz para certos grupos, o que seja trabalhar num grupo de 20 ou 25 pessoas em que chefes e colegas têm as características ou casualidades referidas. Como farei eu certa notícia se amanhã estarei na cantina almoçando com tal e tal pessoa? Se eles se sentam ao meu lado ou são meus chefes? Por mais silenciadas que estas questões estejam no seio dum grupo e não haja pressões, elas estão inevitavelmente presentes. Todos os indivíduos são socialmente constrangidos pelas circunstâncias e pelo acaso. No caso dos jornalistas (e dos comentadores como eu, já agora), a distância que separa o seu trabalho do ideal do jornalismo livre e independente varia em cada peça e em cada dia. Outro grande sociólogo alemão, Ferdinand Tönnies, definiu este facto de forma lapidar em 1922: "A imprensa é livre, mas os jornalistas não."

Uma notícia da SIC sobre o caso Casa Pia foi exemplar neste campo: era uma "entrevista exclusiva à SIC" de uma psicóloga americana que veio a Portugal e disse, em suma, que as crianças vítimas de pedofilia são em geral umas mentirosas. Depois do tempo de antena dado à senhora, a notícia procurava quase clandestinamente dizer-nos para não lhe darmos demasiada importância porque era necessário saber quem tinha convidado a psicóloga a cá vir. Incrivelmente, a notícia não revelava essa informação vital. Houve um constrangimento. O "Correio da Manhã" (10 e 11 de Janeiro) obteve confirmação da relação entre a presença da psicóloga em Lisboa e a sua eventual participação na equipa da defesa de Carlos Cruz.

No geral, a informação da SIC sobre o processo da Casa Pia sofreu uma mudança significativa de atitude desde Novembro de 2002, quando as primeiras informações foram reveladas - precisamente na SIC e no "Expresso". A partir da altura em que o processo envolveu membros das elites política e mediática, a informação da SIC distanciou-se do ponto de vista das vítimas e aproximou-se do ponto de vista da defesa dos arguidos. Esta alteração é legítima, mas faz parte da crítica chamar a atenção para ela. A TVI, onde não há os referidos constrangimentos na redacção, colocou-se totalmente do lado das vítimas e, de alguma forma, num pressuposto hostil aos arguidos. Uma consequência disso é o facto de a mulher de Carlos Cruz já se ter recusado a responder a perguntas da TVI à porta da Penitenciária.

Por vezes não é necessário procurar cabalas nem conspirações secretas nos meandros dos "media" e dos corredores de poder para explicar atitudes e opiniões. Há factos sociais. "Facto social é toda a maneira de fazer, fixada ou não, susceptível de exercer sobre o indivíduo um constrangimento exterior; ou então que é geral no âmbito de uma dada sociedade tendo ao mesmo tempo uma existência própria, independente das suas manifestações individuais." (Durkheim)




Publicado por josé 11:15:00  

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