Absolutamente Pacheco

Depois, de um texto como o que abaixo se transcreve, publicado no Público de hoje, o corolário lógico seria a demissão imediata das direcções do JN e do Público, assim como a "ordem"/"sindicato" dos jornalistas instaurar processos disciplinares por violação das mais básicas regras de deontologia.

Mas isso era se não estivessemos em Portugal

Anatomia de Uma Fuga do Processo da Casa Pia
Por JOSÉ PACHECO PEREIRA
Quinta-feira, 08 de Janeiro de 2004

1. O debate sobre o processo da Casa Pia está, há mais de uma semana, centrado numa notícia saída no "Jornal de Notícias" de 1 de Janeiro de 2004. A matéria factual da notícia é muito escassa:

"João Guerra, o magistrado do Ministério Público que investigou o processo Casa Pia, anexou ao inquérito duas cartas anónimas, que o próprio considerou não terem qualquer relevância. Os visados eram Jorge Sampaio e António Vitorino, respectivamente Presidente da República e comissário europeu."

2. Os factos são três:

1) "João Guerra, o magistrado do Ministério Público que investigou o processo Casa Pia, anexou ao inquérito duas cartas anónimas."

2) "João Guerra, o magistrado do Ministério Público que investigou o processo Casa Pia, (...) considerou não terem qualquer relevância [essas cartas]."

3) "Os visados eram Jorge Sampaio e António Vitorino, respectivamente Presidente da República e comissário europeu."

Destes três elementos, um foi posteriormente rectificado, o ponto 2, porque parece não estar explícito no processo qualquer julgamento taxativo deste tipo, pelo menos com a clara relação causal que o artigo lhe atribui.

3. Esta fuga de informação, quando analisada na sua forma original, é muito interessante. Como se vê, lendo a notícia, a fuga (a existência das cartas anónimas envolvendo Sampaio e Vitorino) serve de suporte a uma interpretação jurídica. A informação da fuga só é dada dentro de um contexto interpretativo que o jornal patrocina logo à cabeça: a junção das cartas anónimas ao processo era ilegal. Cita o "Jornal de Notícias", para sustentar essa afirmação, "juristas" não identificados, o que não se compreende muito bem, porque nenhum jurista teria problemas em denunciar uma ilegalidade assinando por baixo. A fuga de informação não é que Sampaio e Vitorino são indiciados numa carta anónima como estando envolvidos em actos pedófilos, mas sim que a junção da carta ao processo é ilegal. O "Jornal de Notícias", no dia 1 de Janeiro de 2004, apresenta-se mais com uma tese do que com uma informação.

4. A utilização de opiniões de "juristas" não identificados, oferecendo interpretações inequívocas de leis, procedimentos e actos processuais, tem sido uma constante no tratamento comunicacional deste processo. Acompanham normalmente a interpretação original de uma fuga de informação, o momento inicial da fuga. Também se verifica, nos dias seguintes, que essas opiniões taxativas ou são muito controversas, ou pura e simplesmente não são caucionadas por quase ninguém. Nalguns casos, essas teses são posteriormente repetidas pelos advogados de defesa. Foi o que aconteceu esta semana com uma notícia do PÚBLICO sobre a violação do princípio do "juiz natural", deixada cair logo em seguida, quando se verificou a sua "leveza", para não dizer outra coisa. O caso da fuga que analisamos não foge à regra: a opinião que a junção das cartas era uma ilegalidade é, pelo menos, controversa e não justificava as certezas do jornal nem das suas fontes. Apareceram na comunicação social vários juristas a afirmar que a junção das cartas era imperativa neste tipo de processos e era prática habitual. A questão continua a ser discutida mas as certezas do dia 1 de Janeiro não tiveram acolhimento universal, bem pelo contrário.

5. Surgiu então um outro argumento, este sim completamente perverso na sua lógica de círculo vicioso: a de que o magistrado, ao juntar as cartas, sabia que elas seriam publicitadas, visto que não há qualquer respeito pelo segredo de justiça. A sua junção ao processo seria por isso intencional, destinada a divulgar a carta anónima, colocando-a num processo sobre o segredo de justiça... Tudo é perverso neste "argumento", que já toma como garantido que a inclusão de peças processuais deve ser feita conforme o risco da sua divulgação pública, mesmo quando era suposto ficarem em segredo de justiça. O violador do segredo de justiça justifica-se assim... violando o segredo de justiça.

6. Veio posteriormente a saber-se que o autor da fuga seleccionara cuidadosamente o que entendera fazer "fugir": as duas cartas anónimas não estariam isoladas, mas fariam parte de um grupo de mais de uma centena (o número ao certo é desconhecido), supostamente todas as cartas anónimas recebidas durante a investigação. Acresce que os nomes de Sampaio e Vitorino foram seleccionados pelo autor da fuga de informação de um grupo de mais vasto de nomes que incluíam políticos do PSD, PP e PS. Na fuga inicial, escondeu-se que as duas cartas anónimas não eram excepcionais, mas sim uma pequeníssima parte das denúncias anónimas. Para julgar do seu peso e valor no conjunto do processo, saber se eram apenas duas ou cem é relevante. O autor da fuga não queria que conhecêssemos este contexto, nem o conjunto dos nomes, talvez porque isso desviaria as atenções do que para ele era fundamental. O jornal acolheu esta manipulação aceitando a escolha de nomes do autor da fuga.

7. Por que razão o autor da fuga só referiu estes dois nomes? A questão tem toda a relevância para se perceber a intencionalidade da fuga. O do Presidente era o do Presidente, era sempre relevante de "per se", e já aparecera associado aos esforços do PS de impedir que Pedroso fosse ouvido pelo Ministério Público nas mesmas condições que qualquer outro deputado. Mas por que razão acrescentou o de Vitorino, um nome que nunca aparecera, e ocultou os outros nomes do PSD, PP e PS? Não foi certamente para os proteger, dado que o nome de Vitorino estaria nas mesmas circunstâncias desses nomes, ou seja, nunca viera a público. A ocultação é intencional e por ela também se percebe o que é que quer o autor da fuga e a manipulação que faz do "Jornal de Notícias" e dos seus leitores.

8. Porquê só os nomes do PS? A soma de mais um nome de topo do PS tem dois resultados que parecem desejados pelo autor da fuga. Um, a ideia de que o processo da Casa Pia é um processo contra o PS, envolvendo toda a elite socialista. Outro é o de que cada nome acrescentado, em particular nomes com forte efeito de inverosimilhança, desvaloriza todos os anteriores. Quantos mais nomes vierem a público nas circunstâncias dos de Sampaio e Vitorino, menos importância tem a carga simbólica da acusação sobre os nomes dos que são efectivamente acusados. É um mecanismo semelhante ao que aconteceu nas viagens para deputados: a multiplicação de nomes, misturando situações muito distintas, gera uma desvalorização de cada novo nome que apareça e de todos os outros para trás. A uma dada altura, as pessoas encolhem os ombros e ou dizem "são todos iguais", ou, "com todos estes nomes, tudo isto só pode ser falso".

9. A divulgação do nome do Presidente garantia a controvérsia e podia levar, como levou, a um pronunciamento do próprio. Garantia-se assim mais um passo na politização do processo, que parece ser uma motivação do autor da fuga. A divulgação do nome do Presidente tinha um elemento provocatório que, um pouco incompreensivelmente, resultou. (De passagem: o Presidente não pode colocar-se na situação de fazer apelos sucessivos do mesmo teor, sem parecer que não tem autoridade para os fazer acatar.) A fuga, isolando um facto que no contexto poderia ser considerado pouco importante - quase que se pode ter a certeza que nas denúncias anónimas estão muitos nomes atirados ao ar por vingança ou ressentimento contra os políticos -, dava relevância à sugestão de haver uma perseguição do Ministério Público contra os políticos, a começar pelo Presidente.

10. O modelo, o padrão interpretativo, que esta fuga de informação pretende reforçar é o de apresentar o chamado "processo da Casa Pia" como um processo conduzido por um grupo de magistrados e juízes animados por um justicialismo anti-sistema, que, abusando dos seus poderes e cometendo ilegalidades e negligências, pretendem perseguir políticos, em particular, os ligados ao PS. Que existem tendências justicialistas no discurso do Ministério Público (e dos defensores de uma "república de juizes" como, até ao processo Casa Pia, era o discurso do PS e do PCP) é verdade. Que isso seja válido para este processo, só residualmente. A atrapalhação do Ministério Público com a politização do processo é evidente e nada indica que seja desejada.

11. Os motivos próximos do processo, a violação de crianças, as redes de prostituição infantil e os actos de pedofilia, são sistematicamente ocultados nesta sucessão de fugas. Estas deixam de parte as acusações concretas de pedofilia, o que, se as fugas fossem "neutras", teriam muito mais relevância, a favor dos incidentes processuais reais ou imaginários. O objectivo é sustentar uma interpretação de que se trata de um processo político e com motivações políticas. Ninguém nega os factos que estão na origem do processo, ninguém nega que foram cometidos todos os abusos possíveis sobre as crianças da Casa Pia, ninguém sequer diz que a investigação atingiu o local errado - por exemplo, ninguém diz que os culpados dos actos pedófilos devem ser procurados noutro lugar, noutro grupo de pessoas, e que é um erro fundamental de investigação centrar-se neste grupo de pessoas. Ninguém verdadeiramente diz que Carlos Silvino é inocente, nem que os arguidos civis, os que não são políticos, estão inocentes. O silêncio sobre eles com origem nos que têm a tese de que o "processo" é contra o PS, ou contra a esquerda, é uma admissão tácita da sua culpa, ou pelo menos de indiferença sobre a sua culpa ou inocência. Não foram a acusação a Carlos Silvino, Carlos Cruz, Hugo Marçal, Diniz Ferreira, ou mesmo o embaixador Ritto (que, se for considerado culpado, implicará mais o poder político institucional do que qualquer outro acusado) que levaram à politização do processo. Tudo começou quando se chegou ao deputado e porta-voz do PS. Aí abriu-se uma avalancha de processos de intenção e de fugas de informação, de teorias conspirativas, que acaba por negar qualquer fundamento do processo Casa Pia. Não teria tudo sido inventado?

Publicado por Manuel 09:00:00  

0 Comments:

Post a Comment