"O fim da inocência"

Francisco José Viegas tem hoje no Jornal de Notícias de hoje uma prosa absolutamente fora de série e que não resisistimos a citar com a vénia devida :


Estávamos longe disto, muito longe.

As notícias sobre o "escândalo Gary Hart" (o democrata que foi obrigado a desistir da corrida à Casa Branca devido ao seu envolvimento com uma jovem, aliás bonita) ou sobre os vários "escândalos Clinton" (o presidente democrata que tinha a mania de se relacionar com jovens, aliás feias) nunca passaram à nossa porta. Não porque não existissem razões para se falar do assunto.



À boca pequena, com o rigor de qualquer boato, sempre se mencionaram casos, aventuras, incidentes, pequenos escândalos. Mas o domínio do "íntimo", do particular, do pessoal – do sexual – raramente passou para as páginas da Imprensa.

Felizmente para todos nós, que pudemos manter um razoável nível de sanidade e de dignidade. Não se tratava da intervenção do casto pudor português. Tratava-se, apenas, de pudor.

Era, foi, uma das nossas boas virtudes: as orgias dos vizinhos são coisa deles. Aplicava-se a mesma coisa à vida dos políticos. Repito: ainda bem.

Julgar a actividade de um político (de um deputado, de um ministro) pelo ritmo das suas aventuras amorosas sempre me pareceu um critério desajustado a toda e qualquer circunstância, desde que o Estado não sofresse com isso. Geralmente, como se sabe, somos nós a sofrer com o Estado.



O presidente Clinton sobreviveria à vontade em Portugal – embora sofresse mais, naturalmente, caso Hillary fosse portuguesa. Mas, em termos estritamente políticos, não estou a ver um procurador português, adepto de futebol ou de comida minhota, inquirir o presidente da República, com a serenidade de um pervertido, sobre sexo oral e humidificação de charutos. Há coisas que não aconteceriam em Portugal.

O "escândalo Casa Pia" (limito-me a colocar o acento tónico na sua dimensão de "escândalo" – para não citar o processo) pode bem constituir a reviravolta nesta simpática prática portuguesa.

José António Saraiva, no "Expresso" da semana passada, deu o mote: "Será normal que um político que toma decisões em nome de um país ou um colunista que influencia milhares de leitores ande disfarçado atrás de jovens no Parque Eduardo VII?" Eu compreendo a ideia e acho-a aceitável.

Porém, há um risco aparentemente invisível de que convém não nos aproximarmos: o da moralização da vida pública através da Imprensa, por exemplo, é um deles. Se andar atrás de jovens no Parque Eduardo VII é criticável, e pode configurar um ilícito de certa gravidade, um passo em frente seria suficiente para cairmos na paranóia: um ministro que se dedica a actividades de comércio carnal com uma actriz, uma deputada que negoceia afectos com um deputado de outra bancada, um político apanhado em Bali na companhia de uma senhora. É importante definir os critérios dessa avaliação.



Poderá um fumador ser ministro?

Poderá um praticante de ioga ser juiz de um tribunal?

Poderá um motard sentar-se no Parlamento?

Eu estou de acordo no seguinte: quem pratica crimes não pode nem deve deixar de ser julgado, independentemente das suas preferências ou aventuras sexuais.

Mas abrir a porta para a "escandalização" da nossa pobre e cinzentíssima vida política é meio caminho para a desgraça. O moralismo das primeiras páginas é o pior de todos.


Mais palavras para quê ? ...

Publicado por Manuel 00:59:00  

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