Os bombeiros da Justiça

Helena Matos, na sua crónica de página inteira, hoje no Público, dedica-se a paralelos. Entre o futebol e os juízes dos tribunais. De futebol, declaradamente, não percebe nada, nem quer perceber, segundo afirma. De juízes, vai pelo mesmo caminho, mas não o proclama.
É legítima então, a pergunta: então, se pouco ou nada percebe, porque não se cala e deixa ouvir quem perceba um pouco mais?

Criticando a decisão dos magistrados, advogados e funcionários do tribunal de Santa Maria da Feira, elenca as suas razões, num paralelo com o vencedor, campeão europeu, firmadas na noção de dever cumprido e a cumprir. E escreve:

Onde pára o brio e o sentido do dever dos detentores de poderes tão inalienáveis do Estado como a justiça e a segurança? Por exemplo, qual é a noção de dever dos juízes que se auto-suspenderam no Tribunal de Santa Maria da Feira? Mesmo deixando de lado que ninguém naquela profusão de togas e saberes tivesse sido capaz de investigar o nebuloso processo que levou à construção do tribunal- o tal que ameaça ruína apesar de nem contar 30 anos- é preciso ter uma noção muito autista do que é a justiça e nunca ter ouvido a palavra dever para achar que perante um caso de agressão a juízes, a melhor solução é suspender o funcionamento do tribunal.”

Comentemos, pois.

O brio e sentido de dever dos “operadores judiciários” ( noção operativa engendrada pelo actual poder político, para designar os elementos que compõem o poder judicial e ainda aqueles que lhes estão próximos nas funções que exercem), mede-se pela capacidade de resistência às adversidades, segundo se deixa adivinhar.

Portanto, esses operadores distintos e representados pelos juízes, titulares do poder soberano de aplicação da Justiça, devem aguentar todos os reveses pessoais, profissionais, logísticos, organizacionais, institucionais e o mais que se possa imaginar, em nome da sacrossanta ideia de “justiça e segurança”. Ideia platónica, de subida evanescência, e que encontra o elemento catalizador, sempre que é operativo arremessá-la, aos relapsos e preguiçosos da função.

A acusação nem é original. Já vem do discurso de tomada de posse deste Governo, pelo menos. E tem sido seguida religiosamente, pelos acólitos deste poder que oficia em paralelo, para o bem comum.
Assim, um juiz, não é apenas titular de um órgão de soberania do Estado, inteiramente dependente desse Estado, para todas as condições ao exercício logístico da sua função.

É também e sobretudo, para certos articulistas, um oficiante, quiçá sacerdote, da deusa Justitiae, vinda da antiguidade clássica das sombras cavernosas.
Logo, todo o esforço lhe será exigido, nenhum sacrifício lhe será perdoado e nenhuma debilidade lhe será aceite. Os juízes são escravos da Justitiae, logo os seus direitos estão severamente diminuídos.
As condições de trabalho, mínimas que sejam, essas importam nada, perante a noção de dever oficiante, para os que os fustigam.

A dignificação e garantia de independência, para os mesmos, decorre do abstracto do dever e do concreto devir.

Julgar ao ar-livre, numa estrebaria, tasca ou num salão nobre, comunga da mesma obrigação que abstrai do ritual e da composição ambiente: estar presente e aguentar o sítio, o cheiro, o barulho, a balbúrdia, a turba-multa em fúria ou em apoteose, é sempre o dever que se impõe, ao julgador.

Tal como aos bombeiros, soldados da paz, também aos juízes se exige o esforço do impossível e a exigência do imponderável.
Aos bombeiros, equipados a rigor, exige-se-lhes a obrigação de apagar as chamas. Aos juízes, de beca vestida, o dever de julgarem os estragos e responsabilizarem os autores. Debaixo do mesmo fogo.
Ai, Helena, Helena...

Publicado por josé 15:21:00  

2 Comments:

  1. Dr. Assur said...
    Totalmente de acordo quanto à dignidade.

    Mas isso implica a desculpabilização dos agressores como aconteceu?
    Carlos Medina Ribeiro said...
    CONTA-SE que, em tempos que já lá vão, um arquitecto pouco experiente foi encarregado, pelo papa, de projectar um edifício para altos dignitários eclesiásticos.
    Esmerou-se o mais que pôde, entregou o seu trabalho com o nervosismo que se imagina, e esperou a apreciação de tão ilustre cliente.

    Ora, para seu espanto, a resposta chegou sob a forma de uma pergunta, tão simples quanto enigmática. Numa nota manuscrita, podia ler-se, apenas:

    «São anjos?»

    Embaraçado por ver o seu trabalho rejeitado (e, mais ainda, por não perceber porquê), o pobre homem deu voltas à cabeça, tentando adivinhar o que o sumo-pontífice quereria dizer. Por fim, alguém lhe explicou: é que, no seu projecto, esquecera-se de prever retretes!

    Ora, da mesma forma que tão ilustres cavalheiros, apesar de viverem quase de-braço-dado com a Divindade, continuavam a ter necessidades terrenas, também os nossos juízes, por muito "órgãos de soberania" que sejam, são seres humanos que precisam de protecção física - para já não falar de condições mínimas de dignidade para exercer as funções que o Estado lhes atribui.

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