Processo penal: o modelo do presidente do STJ

Investigação devia caber aos juízes de instrução criminal”.

Imagine-se que esta frase era proferida pelo presidente da República; ou pelo primeiro-ministro; ou até mesmo pelo presidente da Assembleia da República.

Que diriam os noticiários, no momento seguinte a ser proferida, por uma dessas três figuras do Estado português? É fácil de compreender que seria frase de abertura de telejornais e de notíciários de rádio.

Porém, foi proferida e vem escrita no Público de hoje, pelo...presidente do Supremo Tribunal de Justiça, quarta figura do Estado. E assim ficou, porque ninguém ligou ao que Noronha Nascimento disse. E disse mais coisas, extraordinárias para um presidente do STJ.

Disse que “O sistema judicial está á margem da investigação criminal, porque esta situa-se antes de se pedir aos tribunais que julguem. O que sempre defendi foi que a investigação estivesse dentro do sistema judicial. Ou seja, que fosse feita por juízes de instrução criminal, como sucede em Espanha e França. É um sistema onde a investigação é, toda ela, feita por juízes sujeitos ao contraditório do Ministério Público e do arguido. No fim, quem decide se há arquivamento ou julgamento é o próprio juiz, podendo as partes recorrer.

Este sistema dá mais garantias e é mais jurisdicionalizado. E com ele talvez os problemas de relacionamento fossem bem menores.

Mas ainda que assim não seja, ainda que o inquérito criminal caiba ao Ministério Público ( como entre nós), deve-se copiar o que se faz em Itália: o arquivamento do inquérito só ocorre por despacho do juiz de isntrução.

Em Portugal, não é isso que acontece, com excepção apenas das infracções fiscais não aduaneiras, por imposição correcta da lei Catroga. Tudo o resto fica inadmissívelmente de fora.

(...) O nosso país tem, apesar de tudo, um modelo equilibrado de investigação criminal, assente em três pilares: o juiz de instrução, agora com poderes mais alargados sobre direitos fundamentais, o MP que dirige o inquérito e a PJ que investiga e depende organicamente e em exclusivo do Governo.

O equilíbrio do modelo resulta da autonomia recíproca dos três pilares. Se um deles tenta controlar o outro, o equilíbrio desfaz-se eo modelo entra em panne.

Então, se quem controla o Inquérito vier ou quiser controlar a polícia, cairemos num sistema que nem o célebre Decreto 35007 permitiu. E o 35007 foi promulgado pelo Governo de Oliveira Salazar, em 1945, há mais de 60 anos, quando a Europa poucas democracias tinha.

Comentários:

Antes do mais, a opinião expressa de Noronha Nascimento, é eminentemente interessante, para quem o for, mas a título pessoal. A opinião do presidente do STJ, no entanto, já será institucional. E esta, é contrária ao sistema que temos, de processo penal e de organização do poder de investigação criminal.

É uma evidência que requisita a interrogação de saber como é que alguém, com estas opiniões tão contrárias ao sistema penal que temos, tem o cargo que tem. Com uma opinião tão subversiva, sobre este assunto fundamental.

Depois: a investigação criminal, a caber a juízes de instrução, já foi tentado como solução e como modelo, em Portugal. Até 1988, assim foi. A experiência não foi positiva. O melhor exemplo, será o processo das FP25. Seria interessantíssimo rever à luz dos direitos, liberdades e garantias, o que se fez e como se fez, nesses processos, com o juiz de instrução a mandar. Seria interesante comparar com a garantia que o presidente do STJ dá de o sistema que defende ser o melhor para o efeito...

O resultado do falhanço dessa experiência de alguns anos ( pelo menos dez), foi a mudança que se operou, defendida por Figueiredo Dias, uma Comissão de Revisão, uma Assembleia da República, uma Constituição até, como sendo a melhor de todas as ponderadas como possíveis, incluindo as europeias, citadas por Noronha Nascimento.

Figueiredo Dias, que teoricamente detém uma autoridade um pouco diversa da do actual presidente do STJ, dizia há uns anos atrás: " não existe outro modelo de ministério público que sobreleve em vantagens ou sequer iguale, o adoptado pelo processo penal português".

Em 1999, numa entrevista ao O Diabo, dizia: Do meu ponto de vista, o modelo de repartição de competências entre os magistrados judiciais e o ministério público é o melhor que se pode ter , é o que eu defendo. Como é o modelo do relacionamento entre o MP e as polícias.”

Em tempos, escrevi por aqui, o seguinte, sobre o assunto:

O regresso ao sistema de JIC´s como havia antes de 1987?!

Com todos os custos de formação de juizes de instrução que isso implica e depois destes 18 anos de experiências?! Vamos passar outros vinte a experimentar, para chegar depois à conclusão que era melhor deixar estar como está?!

Ou pretende-se a submissão do MP ao Ministro da Justiça, com a perda subsequente da autonomia e a governamentalização dos "parquets" como em França, Espanha ou Alemanha (e sem os contrapesos deste sistema, nestes paises)?

Sobre este mesmo assunto, Cunha Rodrigues, em 9.11.1997, ao Público, dizia o seguinte:

P- O senhor procurador move-se apenas na leitura puramente formal das instâncias de controlo do MP. A realidade pode ser outra...
R- É a realidade e a prática. Todos os dias acontece que o MP arquiva um processo e o assistente não concorda e requer a instrução. O mesmo se passa com o arguido relativamente à acusação. O MP por regra não tem o poder de levar ninguém a julgamento.

P- Isso não se verifica nos crimes sem vítima...
R- Nos crimes sem vítima são o Estado e a sociedade os lesados e é o Ministério Público que deve representá-los.

P- A cultura do país não é propriamente propícia a esse tipo de atitude...
R- Olhem que é. Por exemplo, a figura do assistente é genuinamente portuguesa e tem uma vitalidade que tem surpreendido muitos observadores de outros países.

P- Não seria melhor um juiz sindicar os despachos de arquivamento?
R- Sindicar porquê? Representa o Estado ou a sociedade? Há alguma exigência de terciaridade no caso? O Ministério Público não tem estatuto constitucional de magistratura? Deverão os princípios submeter-se a interesses profissionais? Não deveriam os tribunais ocupar-se mais das questões dos direitos e das liberdades? Sabem os senhores que tem causado perplexidade no estrangeiro a frequência ocm que , em Portugal, O Ministério Público recorre no interesse da defesa, por exemplo, sustentando que seja substituida a medida de prisão preventiva aplicada pelo juiz contra o parecer do Ministério Público?

Comentário final:

Quanto ao modelo italiano, referido pelo presidente do STJ como exemplo, torna-se engraçado, falar no mesmo, quando soubermos que em Itália, há um Conselho Superior da Magistratura único, com permeabilidade entre as magistraturas ( juízes e ministério público) que são um corpo unificado nesse conselho, exercendo funções diversificadas de ministério público e de juízes de instrução.

Por outro lado, o exemplo italiano ainda tem uma particularidade interessante que é de agora, e não foi de certeza beber inspiração ao Decreto de Salazar: a polícia judiciária depende inteiramente do MP e é dirigida por esta entidade que faz parte do CSM.

Será que o presidente do Supremo quer um modelo destes? Ou só lhe interessa o modelo que lhe confere, enquanto juiz, o poder de investigar, acusar e julgar, tudo num mesmo corpo de magistratura?

Sabe onde é que isso existiu? Nos sistemas inquisitoriais.

E no Portugal de Salazar, a PJ tinha até juízes privativos...

Publicado por josé 00:34:00  

8 Comments:

  1. OSCAR ALHINHOS said...
    Enfim... há dias pouco felizes e parece-me que o Dr. Noronha do Nascimento estava num desses dias quando disse aquilo que disse...

    Ou então, já não se recordará do que foram os antigos tribunais de Instrução Criminal e dos pesadíssimos fardos que deixaram e mais, os JIC's eram quase uma figura meramente decorativa...

    Finalmente, e penso que não será esse o caso pq isso seria muito grave, o Dr. Noronha do Nascimento ainda não conseguiu ultrapassar alguns ressabiamentos que teria com o Mº Pº...
    Mas se for esse o caso e eu, repito, penso que não o seja, é muito mau, em especial para uma pessoa que, neste momento é o Presidente do STJ e, em consequência para a justiça portuguesa.
    Na verdade, chegamos a uma altura em que o CEJ, fruto de um momento histórico de falta de quadros, já não terá razão de ser nem de existir e, cada vez mais, em meu modesto entender se deveria pugnar por um modelo onde a magistratura judicial não se fechasse sobre ela própria e, em especial na 1ª instância mas com repercussões nas instâncias superiores - como parece defender o Dr. Noronha e a Ass. Sindical dos Juízes -, e, em vez disso, fosse desempenhada por pessoas com mais traquejo e experiência na vida pessoal e profissional e que houvesse uma troca de experiências...

    Por exemplo, talvez vá sendo tempo de se pensar numa permeabilidade de magistraturas; pelo acesso nas magistraturas de advogados, com todo o enriquecimento e experiência que, certamente, daí adviriam.

    E, em vez de assitirmos a uma guerra de capelinhas, voltada para dentro, estou certo que os resultados práticos seriam vistos a muito curto prazo e a Justiça só teria a ganhar...

    Talvez assim, não assistissemos a um julgamento demorar quase 4 anos, etc., etc.....
    josé said...
    kilas:

    Essa mentalidade de abertura e razoabilidade, que também partilho, quanto a mim, está mais afastada agora, do que nunca.

    A razão, parece que vem do próprio CEJ, paradoxalmente. Ou não.
    OSCAR ALHINHOS said...
    Caro José:

    Obrigado pela resposta e pode crer que, nesta matéria, comungamos das mesmas ideias, das mesmas preocupações e também das mesmas suspeições para não dizer certezas...

    Mas, e estou certo de que concordará comigo, nunca é demais darmos uns abanões.
    Pode ser que assim haja uns frutos maduros, apodrecidos mesmo, que caiam e deixem outros frutos nascer...
    Monsieur de Voltaire said...
    Pois! Pois!
    Os meninos do Ministério Público e os advogados das grandes sociedades!
    Enquanto não puserem as garrinhas em cima do CEJ e não dominarem a magistratura judicial, a única verdadeira, imparcial e independente, não descansam...
    Mas podem ter a certeza de que vão ter muito para correr!
    Amanhã não será, seguramente, a véspera desse dia. E quando o povo se aperceber finalmente (anda iludido, coitado!) das vossas intenções... haverá uma nova revolução, um novo 25 de Abril, que expurgue os "clientes de interesses", e deixe a Justiça a quem verdadeiramente a serve.
    Porque os frutos podres, sei eu bem quem são... e não sou só eu que sei...
    josé said...
    "a magistratura judicial, a única verdadeira, imparcial e independente, não descansam..."

    Ou seja, no melhor dos mundos, estará uma república de juízes.

    Em vez de garrinhas, alguma desta magistratura, prefere guerrinhas. Em vez de imparcialidade, prefere tomar partido político. Em vez de independência, prefere, agarrar um qualquer cargo político que lhe ofereçam.

    Os exemplos são às dúzias.
    OSCAR ALHINHOS said...
    Às vezes, o Dr. Marinho Pinto até diz coisas acertadas e com senso.
    Só que depois diz outras menos felizes que retiram credibilidade a todo o seu discurso...

    Vem isto a propósito do comentário do Monsieur Voltaire:
    Na verdade, enquanto houver juizes que se fecham no casulo, que acham que são abençoados por uma força divina e que, no dizer do Dr. Marinho Pinto, se consideram autênticas majestades e não magistrados, a nossa justiça não vai londe... ou melhor não sairá donde está e a merecer dos cidadãos o respeito, ou melhor, desrespeito cada vez maior...

    É que com aquela postura majestática, impermeável, os senhores juízes não estão a administrar a justiça em nome do povo, como deviam, estão antes a satisfazer as suas necessidades pessoais de demonstrarem que têm poder...

    Mais, esquecem-se os que assim pensam, que há por aí muito boa gente, sejam eles advogados sejam eles do Mº Pº, com valor igual ou superior. Há advogados com gd. experiência quer pessoal quer profissional que, por opção, não quiseram logo ir para o CEJ e se o tivessem feito poderiam ser hoje veneráveis desembargadores; e há magistrados do Mº Pº que sairam do CEJ muito melhor classificados do que muitos dos senhores juizes e que neste momento têm uma grande experiência pessoal e profissional e, convenhamos, certamente que não estupidificaram por terem feito aquela opção pelo Mº Pº...

    Por isso e desapaixonadamente, continuo a reafirmar que a permeabilidade nas profissões judiciárias só enriquecia as funções nobres de julgar, de acusar e de defender, visando sempre e em primeiro lugar, administrar a justiça em nome do povo...

    Embora saiba que dos grandes problemas com que a justiça se debate hoje em dia são, precisamente, os fundamentalismos e os corporativismos exacerbados, que impedem a evolução natural das coisas...

    Até quando?
    É apenas uma questão de tempo e, acima de tudo, bom senso!
    antonio said...
    De facto é hilariante ler os comentários e o artigo, pois é notório que todos estão preocupados com o seu umbigo.
    josé said...
    antónio:

    Talvez esse umbigo imaginário seja mais o de todos, incluindo o seu, claro está.

    O problema de quem manda na investigação criminal, está relacionado com o problema da eficácia e bom funcionamento da mesma.

    O sitema de JIC`s já provou que não serve e funcionou durante dez anos pelo menos.
    Há vinte que há outro sistema.

    Poderar esse problema é a questão.

    Pelos vistos, há quem se preocupe com a árvore e esqueça a floresta, ou, de modo menos diplomático, quem olhe para o dedo que aponta a lua, sem conseguir vê-la...

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