De noite, todos os gatos são pardos


Uns certos gatos pardacentos da nossa putativa renovação literário-intelectual-politica, entendem que a Constituição que temos está bem assim e nada é preciso alterar. Citam um velho defensor da sua dama antiga, Paulo Mota Pinto, também da nova geração putativamente renovadora, para dizerem que este tipo de propostas de rupturas institucionais é eminentemente terceiro-mundista e, de carrinho, contestam a necessidade de revisões de um texto que está muito bem assim, dando razão aos reaccionários que se opõem a qualquer mudança.

Ora , há quem entenda precisamente o contrário e que a CRP pode e deve ser revista, porque como por aqui se diz, “ a actual é programática, socialista, intervencionista, contraditória e desrespeitadora dos direitos individuais.”
É certo que ali, não se justificam as afirmações, tornadas assim apodícticas, como é norma corrente de quem se acha dispensado de fundamentar o que escreve.

Mas o problema proposto, transcende a ideia conformista do gato pardo.
A questão fundamental com a revisão constitucional, não é apenas a da sua inocuidade, como factor impeditivo de desenvolvimento. É mais o do exemplo e do paradigma que deve estruturar uma trave mestra da construção do edifício legislativo de um país.
Não é preciso ser especialista em constitucionalismo, como alguns que para aí andam, para entender que uma lei fundamental tem que servir de referência às demais, ordenando e balizando as grandes ordinárias e as mais singelas, com os regulamentos que as pormenorizam.

Uma lei fundamental que não se respeita a si mesma, não pode infundir respeito às demais e aos que as devem cumprir.
Como é possível respeitar uma lei fundamental que afirma que ainda vamos a caminho de um lado que todos sabem ser infrequentável? Nem à força de um idealismo serôdio lá se chega, porque na verdade nunca se encetou caminho por essa via- a maioria sempre o rejeitou. Mas a lei fundamental continua a dizer que sim, é por aí, para nenhures, que temos de ir.
Como é possível respeitar uma lei fundamental que continua a programar um leque muito alargado de direitos sociais, como por exemplo o de garantir aos trabalhadores o direito ao trabalho e a segurança no emprego, estabelecendo um catálogo de obrigações do Estado , ao mesmo tempo que este Estado, uma vez no Governo, se liberta progressiva e liberalmente dessa incumbência, entregando a tarefa a uma economia de pendor liberal e até ultra liberal, patrocinada por um poder executivo socialista?

Como é possível respeitar uma lei fundamental que consagra uma generosa segurança social e ao mesmo tempo se vai sabendo que um em cada cinco portugueses é pobre de mais, ridicularizando de passagem essa proclamação solene e constitucional?

Como é possível finalmente, afirmar peremptória e fudamentalmente que há uma subordinação do poder económico ao poder político democrático, quando é precisamente o contrário que vemos na governação de todos os dias?

Em suma, que adianta uma Constituição proclamadora de direitos e orientações políticas gerais, que se denegam na prática política diária?
Adianta e vale pouco. E todos sabem disso mesmo, porque ninguém liga ao valor de troca que foi aplicado no texto constitucional.
É exactamente por isso, por valer pouco e nada influenciar, que os do gato pardo, acolitados pelos defensores da excelsa dama que garante um emprego e ocupação aos prosélitos, entendem que não vale a pena mudar nada.
Afinal, como dizia o outro que já saiu da função de garante dessa mesma constituição, as leis em Portugal são, muitas vezes, meras sugestões.
Quando o primeiro magistrado do país, garante das instituições e defensor dos vínculos constitucionais, afirma publicamente uma coisa deste teor, com a seriedade que o cargo empresta, ficamos todos cientes que tudo vale e tudo é relativo, no domínio das leis.
Quando uma lei fundamental se torna meramente sugestiva de tendências, aproximada ao virtual e meramente indicativa de um regime, sem seriedade suficiente para se impor com a coercividade natural das normas, as demais ordinárias podem muito bem ser constitucionalmente conformes à anomia reinante.
Por isso, se tornam meras sugestões, como a lei de financiamento partidário, a de incompatibilidades e as do código da Estrada, para não falar das que combatem a corrupção. A anomia geral tem que vir de algum lado e os gatos pardos, como se vê, pouco vislumbram desta temática e preferem o conformismo atávico, associados aos teórico-praticos do sistema que os sustenta.
E a prova, são as decisões dos defensores da dama que lhes deu o emprego e que se chama poder. Uma puta que vai com quem a agarrar e lhe pagar mais.
Um gattopardo, de noite, a querer ir às putas? Curioso.

Publicado por josé 10:14:00  

4 Comments:

  1. JSC said...
    A ideia de uma nova constituição é uma ideia peregrina, própria de quem tem pouco a propor ou a dar ao país.
    Aquilo que me espanta é que alguém possa, com seriedade, afirmar que os problemas de desenvolvimento económico e social do país derivam da tal Constituição programática e coisa e tal.
    Claro que não me espanta que um político diga isso e que até faça disso uma bandeira. É que os políticos, nos dias que correm, raramente apresentam bandeiras credíveis. A técnica que usam é a dos fogachos. Depois esperam que alguém os agarre e lhe dê conteúdo.
    Creio que foi Belmiro de Azevedo que um vez disse que a Constituição nunca o impediu de investir e de fazer crescer o seu grupo. Muitos outros empresários (grandes e pequenos) poderiam dizer o mesmo.
    Contudo, por mim, podem alterar a Constituição. É que esta ou outra pouco interessa e pouco comando exerce sobre a economia e os mercados financeiros.
    josé said...
    JSC:

    V.leu o que escrevi?

    Não tem de ler, mas como comentou, aí vai:

    Que vale uma Constituição que não se respeita a si mesma?

    Por acaso alguma vez andamos no caminho do socialismo?

    Por acaso, os direitos dos trabalhadores na parte social, foram respeitados como manda a Constituição?

    Por acaso, valerá alguma coisa ter um texto programático cheio de intenções vazias e sentido e propósito?

    Para que serve então? Para dizermos e continuarmos a afirmar que somos de Esquerda?

    ora bolas.
    JSC said...
    Claro que li o que escreveu e até admito responder no mesmo sentido às interrogações que agora coloca. O que eu quis dizer é que não foi nem é a Constituição programática que impediu ou impede a progressão da pobreza e a concentração da riqueza em níveis que o Sr. Presidente da República hoje classificou de Vergonha nacional.

    Ontem ouvi Caetano Veloso dizer que nos tempos actuais “falar de esquerda e de direita é demasiado pretensioso, o que existe é governo e oposição”.

    Talvez seja aqui que está a nuance para a leitura e entendimento da política que nos tem governado e para o estado de pobreza, a diferentes níveis, em que se vive. A responsabilidade não é da Constituição, do mesmo que não era por a Constituição de outrora consagrar as liberdades e direitos fundamentais, que existiam liberdades e direitos fundamentais.
    josé said...
    JSC:

    Concordo com o que escreve no sentido de a Constituição não ser impeditiva. Aliás, é isso mesmo que digo. A Constituição não é impeditiva de coisa nenhuma porque não se liga ao que a Constituição diz e por isso, é uma lei fundamental meramente sugestiva, como disse o Sampaio presidente.

    O que eu digo é que assim, é melhor mudar o texto, tornando-o mais consentâneo com a realidade actual.
    Aliás, essa mudança não implica mais nada do que os deputados quererem fazê-lo. Não custa mais dinheiro ao Orçamento de Estado.

    O que custa, é ver leis que são inconstitucionais e decisões manhosas de inconstitucionalidade devido a interpretações especiosas.

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