Os cantos das sereias

José Mário Branco, aos 64 anos, acha que ainda é altura de se mudar de vida.
A mudança, requere-a nas canções que vai criando e recriando, com reflexo nos próprios paradigmas políticos e sociais vigentes. Ao som de tambores e do seus rufos repetidos, José Mário Branco cinzela a sua ideia fixa, desde os anos setenta: “em tudo o que já fomos há um sonho antigo” .
A cantiga antiga de Gilberto Gil, já nos anos setenta da desilusão de Maio de 68, “O sonho acabou”, ainda não soou nos ouvidos de José Mário Branco, nos últimos 30 anos.
Para JMB, “Resistir é vencer” e “A cantiga é uma arma”, - contra a burguesia, sempre. “Fascismo, nunca mais” , “Até à vitória final”.

Qual é o mapa de JMB para “mudar de vida”? Explicitamente, não há. Nunca houve. O mais que houve de tangível para a mudança, foi uma bússola imaginária, com o norte marxista-leninista, nos anos setenta, à sombra da Luar ou dos grupos revolucionários de extrema-esquerda, com apogeu no Verão quente de 75 e o zénite no 25 de Novembro desse ano. O propósito de então, como o de hoje, era claro: apear o fascismo e a burguesia, em nome do povo em geral, mesmo sem o consultar. O fascismo e a burguesia eram todos os partidários à direita do PS, defensores do sistema económico de economia de mercado e com aceitação do sistema bancário, de seguros e de organização económica, dos países europeus desenvolvidos.
Para José Mário Branco, esse sistema, dos burgueses capitalistas, é o que precisa de mudança, para mudarmos de vida. A alternativa, que se lhe apresenta de evidência liminar, encontra-a no colectivismo antigo, repristinado em lado nenhum, a não ser na imaginação fertilizada pelo sonho dos amanhãs que hão-de cantar um dia. Líderes exemplares? Os mesmos de sempre, vindos do século XIX das lutas operárias e camponesas, dos países eslavos. Doutrina? A mesma de sempre, vinda dos filósofos do igualitarismo e do colectivismo. Prática? A mesma de sempre, vinda dos revolucionários que levaram os povos à miséria do século, em todos os lugares por onde passaram. Sem qualquer excepção.
Apesar dessa evidência de embuste, José Mário Branco ainda quer mudar para essa vida, a vida do povo que canta e fá-lo em nome da vida ideal que nunca foi cumprida. O melhor ainda está para vir, mesmo que poucos o queiram. E a razão de fundo, reside no ideal e nas tentativas para o alcançar, à custa de experiências que podem causar males maiores…para os burgueses, às vezes.
José Mário Branco, à semelhança de alguns outros que pegaram nas armas das cantigas, ainda chegou a apoiar as armas sem elas, nas mãos das FP25. A derrota fragorosa, nos anos oitenta, apenas remeteu à penumbra os adeptos de uma revolução contra a burguesia. Mas…resistir é vencer e aí o temos outra vez, disposto ao sacrifício geral, pelo povo particular que afeiçoa e pelas ideias que apregoa em canções sem tempo, sempre a tempo de mudar de vida.
O Público de fim de semana, apresenta como exemplo do melhor da música portuguesa, três cd´s de colectânea que reúnem o canto e a voz da “música de intervenção” dos anos 70, toda ela feita de slogans da esquerda crescente e algumas pequenas maravilhas que encantam quem as ouve, separadas das letras de panfleto. José Mário Branco canta o magnífico Eh Companheiro! e junto às Vozes na Luta do GAC, reivindica que a Cantiga é uma arma. Contra quem? Contra a burguesia. Tudo depende da bala e da pontaria.
E pontaria, tinha José Mário. A bala saiu de borracha e embateu na muralha de aço. Mas a utopia continua.


Em França, a cantiga deixou de ser uma arma há muitos anos. Tantos quantos a revolução que por cá passou. Mas encantou menos que por cá, porque a França tinha tradição democrática arreigada desde os primórdios. Apesar disso, influenciou os cantores de intervenção e acolheu alguns dos seus intérpretes, fugidos à guerra colonial e ao “fascismo”.
A França não teve nunca os seus José Mários, ou José Afonsos ou até os seus Sérgios Godinho ou Faustos. Muito menos o seu Francisco Fanhais.
Teve como exemplar desta fauna do idealismo militante, Serge July e os seus companheiros de caminho, no Libération, jornal fundado em 1973, por Jean Paul Sartre, o filósofo desta esquerda florida ideologicamente e que pretende sempre “mudar de vida”, porque não vive satisfeita.

Para o Serge July de 2007, a luta de classes, acabou e a vida continua. Em entrevista à revista francesa Technikart, de Abril deste ano, Serge July, em resposta à pergunta sobre os herdeiros do esquerdismo, e em particular dos maoistas e trotskistas, disse que o extremismo destes era de natureza diferente do esquerdismo e que era agora o produto de uma degenerescência. E que Maio de 1968 fora um movimento violentamente anti-comunista.Desde então, entramos na decomposição, na digestão e na degenerescência do comunismo. Esta eleição de 2007 ( de Sarkozy, como se confirmou hoje), vai representar o desaparecimento do partido comunista. Um micro acontecimento, mas histórico.
Serge July acha que em França, o esquerdismo acabou em 1973.
Por cá, pelos vistos, continua vivo e com alguma saúde, 30 anos depois…

Imagens: Mundo da Canção nº25 de 20.12.1971 ( pleno marcelismo) e Flama de 17.5.1974. Do lado direito, de barbas, um José "cinco minutos de jazz" Duarte, dá vivas à mudança de vida...

Publicado por josé 22:14:00  

5 Comments:

  1. lusitânea said...
    De mim nunca lucrou nada.No fim não existe mesmo nada só uma marca.Para preservar valor.Que combate!Contradição?Têm que ir ao psicólogo...
    rb said...
    "... o sonho acabou, quem não dormir no sleeping bag nem sequer sonhou ..."

    Não imaginava que esta canção do Gilberto Gil tinha esse sentido.
    josé said...
    Bem...é melhor não deixar que a verdade estrague uma boa história. Ahahahah!

    Na realidade, a frase nem é original e o sentido é muito alargado e pode muito bem conter o significado que lhe dou.

    Antes de Gilberto Gil, na altura exilado em Londres com Caetano Veloso, já John Lennon tinha cantado o mesmo, logo logo no início dos setenta.

    The dream is over é tudo isso e mais alguma coisa que sobrou dos idos de Maio de 1968.

    A noção de que tudo regressou a uma normalidade que o tempo das flores permitiu entrever como possibilidade de sonhar alto.
    Quando se sonha muito alto, o trambolhão é inveitável.
    É exactamente isso que nos tem acontecido de há trinta anos a esta parte, mas parece que alguns continua a sonhar...

    The dream is over, então!
    Camilo said...
    Quando em Angola, os partidários do MPLA gritavam:
    "A luta continua"...
    Havia sempre alguém que dizia:
    -Com o teu pai e a tua mãe!!!
    Guilherme said...
    "do que um homem é capaz..."


    (algum respeito pelos nosso heróis, sim meu menino)

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