A justiça mediatizada é um espectáculo!
segunda-feira, fevereiro 12, 2007
Logo, a RTP1, no Prós e Contras, vai apresentar o programa sob a égide de uma temática interessante: "Justiça sob suspeita-a relação entre Justiça, sociedade e liberdade".
Vamos a ver. Como já por aqui se escreveu, não é possível, num programa de tv como o show do Prós e Contras, apresentar, debater e mostrar os lados das questões relacionadas com a temática em causa, de modo a informar devidamente uma audiência de todo o género e para todo o público. Nem sequer uma quadratura do círculo se conseguiria, quanto mais um debate com a seriedade minimamente exigível! Debater todos os prós e contras, em assuntos deste teor, leva tempo, precisa de muita leitura e quem o saberia fazer, não aceita participar em shows de tv, onde o essencial se escapa muitas vezes nuns àpartes da própria apresentadora...
Assim, como aperitivo ou mesmo digestivo, fica aqui um pequeno excerto de um pequeno texto de José Souto de Moura, publicado na Revista do Ministério Público, nº 70, de Abril-Junho 1997:
«Media» e justiça - a ambivalência de uma relação
Que os tribunais exercem um controlo sobre o legislativo e o executivo não parece oferecer dúvidas, e por isso é que segundo o art. 208º da Constituição as decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras entidades. Outra questão é a de se saber se, pela morosidade própria da máquina judiciária, aquele controlo é eficaz.
O mesmo se poderia dizer quanto ao controlo sobre outro poder, desta feita informal, que é protagonizado pelos meios de informação. A questão assume especial relevo em relação com a dignidade das pessoas, no processo penal, mas não só. A própria Constituição, no seu art. 209.4, depois de consagrar a publicidade das audiências em geral como regra, admite o contrário, entre outras razões, «para salvaguarda da dignidade das pessoas». O Código de Processo Penal também prevê o secretismo de todos os actos que em princípio deveriam ser públicos quando «factos ou circunstâncias concretas façam presumir que a publicidade causaria grave dano à dignidade das pessoas» (art. 87º). No tocante à acção dos meios de comunicação social, especificamente, é o art. 88º que regulamenta a respectiva intervenção, exigindo-se, por exemplo, que a tomada de som ou a captação de imagens tenha que ser autorizada, sempre, previamente, pela autoridade judiciária.
Mas a protecção da dignidade das pessoas exige bem mais do que aquilo que os Códigos podem dar, e releva fundamentalmente da deontologia de ambas as partes envolvidas. Relação complexa, ambivalente, que ora é de complementaridade ou cumplicidade, ora é de concorrência senão de hostilidade. O problema surge com acuidade especial com a televisão, porque a transmissão sincopada de actos judiciais destrói o ritual simbólico necessário à feitura da justiça. As decisões dos tribunais formam uma jurisprudência, não uma jurisciência. Administrar justiça é uma tentativa de solução dum problema, cujo método essencial não é a aplicação de conhecimentos científicos, como se costuma ver com problemas de saúde, económicos ou técnicos. O juiz dispõe das vidas das pessoas afirmando-se como autoridade.
Ora a distância é funcional quando se trata do exercício da autoridade, e os «media» anulam as três distâncias que rodeiam o funcionamento da justiça: «a delimitação dum espaço protegido, o tempo diferido do processo e a qualidade oficial dos actores desse drama social. Eles deslocalizam o espaço judiciário, paralisam o tempo e desqualificam a autoridade» (Antoine Garapon). Nessa medida desautorizam a justiça. Mas para além deste efeito de ordem geral, a dignidade das pessoas sofre, ou fica em risco, quando os «media» não se limitam a reportagem, ou, no domínio do jornalismo de opinião, a apreciar o funcionamento da justiça, o que não é necessariamente o mesmo que apreciar as decisões da justiça. Há mesmo a tentação de os «media se substituírem à justiça penal: investigando, ao mesmo tempo ou até antes de a polícia o fazer, julgando, ou induzindo a opinião pública ao julgamento. Ora, este procedimento de substituição não só pode prejudicar a isenção e independência dos juízes no seu trabalho, como sobretudo assenta na ilusão de que existe acesso à verdade e portanto à justiça, prescindindo de toda a mediação processual. Não há acesso à verdade sem contraditório e não há justiça sem distanciamento emocional. O tribunal da opinião pública, tal como aliás os tribunais populares, são pouco propensos a assegurarem aquelas condições. A isto acresce que tantas vezes, a liberdade de informar é escrava duma lógica de mercado.
Publicado por josé 20:19:00