O anonimato sindical ou o medo do Medo
domingo, novembro 19, 2006
Em 2006, em Portugal, com um governo democraticamente eleito e com uma constituição e leis que asseguram na sua letra, uma ampla margem para a liberdade de expressão dos indivíduos, fará algum sentido uma imagem desta? Quatro sindicalistas da PSP, a comunicar à opinião pública as suas preocupações e reivindicações profissionais, como se fossem membros de uma eta num país de repressão política e policial a actividades subversivas? A actividade sindical na PSP será mesmo uma actividade subversiva do estado de direito que temos?
Bem...fará todo o sentido, se afinal, os encapuçados o forem por necessidade e não motivados por qualquer maluqueira de imitação improvável de uma referência revolucionária de tempos revolvidos mas nem sequer muito distantes.
Essa necessidade deriva do medo. Medo de aparecer de cara descoberta, enquanto membros de uma corporação policial cuja hierarquia lhes impõem, expressa ou tacitamente, um silêncio sobre matérias e assuntos incómodos que interessando aos membros da corporação, se reflectem depois na comunidade em geral.
A imposição estrita de reserva e silêncio, em casos de reivindicação de direitos e atenção a condições de trabalho, não deriva de leis. Deriva apenas do simples reflexo de defesa de quem se pode sentir atacado numa autoridade que lhe advém dessa mesma lei e posto em causa por não cumprir os deveres associados. Deriva também, por isso, de um reflexo de um autoritarismo de inspiração proto-fascista, exactamente e com propriedade, neste caso. Reflexo esse que é de Medo também. Medo que quem questiona certezas ou dúvidas; de quem pode apontar a nudez dos reizinhos dos pequenos e grandes poderes; de quem não tendo poder efectivo para executar em nome de todos, poder criticar o poder de quem o tem.
É nesse exercício de um direito de crítica que as democracias se distinguem: umas concedem-no amplamente e sem muitas reservas. Outras, reservam esses direitos, apontando limites sempre com base em conceitos e ideias muito bem estruturados e lógicos. Não é fácil argumentar contra quem usa a lei para proibir o direito de questionar a própria lei, o costume ou as pessoas que deles se servem. Portugal, aparentemente, não entrou ainda no clube das "amplas liberdades".
Há um medo do Medo, portanto.
A lei, como é próprio, admitindo interpretações variadas e díspares, abre o caminho do medo. O reflexo do medo, está contido na própria lei e nas consequências que a mesma prevê para quem a violar. Em direito criminal, podem designar-se esses efeitos inefáveis , como o de “prevenção especial” e o de “prevenção geral” que significam uma repressão individual e um aviso geral.
Quem tem o poder de a interpretar e aplicar em procedimentos disciplinares ou mesmo penais, tem um dever também: não abusar desse grande poder.
Ao alargar o campo do medo inerente ao funcionamento da própria lei, para o âmbito pantanoso da discricionariedade interpretativa, consoante os poderes e sensibilidades políticos do momento, usando a vontade de perseguir indivíduos ou grupos, para reprimir atitudes e gestos incómodas ou calar vozes de contestação, desmente-se, na prática e nessas atitudes, a essência da própria democracia apregoada.
Por muito que se apregoe a disciplina e o respeito hierárquico,como valores fulcrais numa corporação, se forem caladas as vozes discordantes e reivindicativas mais sensíveis à injustiça e indignidade individual e social, mais tarde ou mais cedo surgirá a revolta.
Foi assim, aliás, que surgiu o movimento das Forças Armadas que se mostrou a todos, em 25 de Abril de 1974. Os seus herdeiros, estão a esquecê-lo. E no entando, são os que mais reivindicaram essa liberdade que agora parecem querer negar. Sinais dos tempos ou simplesmente sinal inequívoco de que o poder corrompe?
Nota: foto copiada do Expresso desta semana.
Publicado por josé 11:53:00
Nunca é de mais destacar o seguinte segmento:
"Quem tem o poder de a interpretar e aplicar em procedimentos disciplinares ou mesmo penais, tem um dever também: não abusar desse grande poder."
Não me cabe a mim defender este postal, mas, em minha opinião, o seu comentário acerta ao lado.
O cerne do postal está no MEDO e nos segmentos "É nesse exercício de um direito de crítica que as democracias se distinguem: umas concedem-no amplamente e sem muitas reservas. Outras, reservam esses direitos, apontando limites sempre com base em conceitos e ideias muito bem estruturados e lógicos. (...)Portugal, aparentemente, não entrou ainda no clube das "amplas liberdades".
E não me venham com a história requentada do Salazarismo que está na base disto tudo, como até Vasco Pulido Valente embarca, hoje no Público.
"Isto", de certeza que é muito mais antigo...
Para provar o meu ponto de vista, chamo em minha defesa o exemplo italiano.
Tiveram um fascismo a sério e agora tem muito maior liberdade de expressão do que nós por cá.
Durante anos a fio, concedeu-se aos jornais, mormento o La Repubblica, o direito de caricaturar e chamar a Andreotti, "Belzebbu".
Seria possível por cá, chamar a um Cavaco ou a um Soares, um nome ou epíteto equivalente, sem que viessem os zelotas clamar contra o "abuso" da liberdade de expressão?
Já seria menos severo, no que respeita à afirmação de que, particularmente no campo da liberdade de expressão, Portugal não tenha entrado ainda no “clube das amplas liberdades”. Percebi o contexto em que o José o afirmou e estou certo de que, neste tópico há ainda longo caminho a percorrer. No entanto, de um certo ponto de vista, parece-me que a nossa posição é ainda relativamente confortável e que, apesar de tudo, somos menos fustigados do que muitos outras sociedades europeias ocidentais por certas formas subtis – mas nem por isso menos virulentas e eficazes – de cerceamento da liberdade de expressão, de que o pensamento politicamente correcto, nas suas diversas capilaridades, é disso bem demonstrativo. Penso, por exemplo, só para focar o caso talvez mais notório, na febre negacionista por aí corre e que já nos bate à porta. É preciso estar vigilante, muito vigilante.
Mas não consigo compreender o que lhe subjaz.
Ou as instituições que podem e devem actuar em caso de excessos de um de outro lado estão assim tão descredibilizadas? Ou já estamos em barricadas?
Ou de facto, sob um ponto de vista mais radical, o que aconteceu foi que esta força civil, que dantes era para-militar e agora já não se sabe o que é, ela própria ainda não adquiriu consciência do que pode e não pode fazer em termos de exercício de direitos?
(Em boa verdade, para que servem actualmente os sindicatos?
E que tal um sindicato para os militares, outro para o governo, outro para a AR e outro exclusivo do PR, todos instrumentalizados pelos partidos políticos?)
De resto os próprios colegas de corporação entenderam este acto como um acto de cobardia...
Porém, já será mais difícil perceber as razões pelas quais os sindicalistas da PSP optaram pela passagem à clandestinidade, a lembrar os antidos operacionais das FP25.
Não creio que o tenham feito apenas por show off, embora perceba que tenha existido a tentação.
Creio mais que o terá sido por genuino medo do Medo.
É preciso ver o que aconteceu aos dois últimos dirigentes sindicais da PSP por terem expresso opiniões acerca do estado da sua actividade profissional e usando termos considerados ofensivos da tutela do MAI.
E será preciso ver o que acontece a outros profissionais que assumam essa qualidade e escrevam, digam em público e no fundo exprimam o que sentem acerca das hierarquias.
O silêncio sempre foi a principal arma dos...corajosos!