Crónicas que nunca existiram
quarta-feira, julho 05, 2006
"Num mero jogo de futebol é tudo aquilo que somos sem saber que o somos que toma voz e fica, literalmente falando, fora de si. Um fora de si que é ao mesmo tempo paranóia redentora e alienação absoluta."
Esta frase é de Eduardo Lourenço, escrita no Público de hoje, a propósito do jogo de futebol de logo, mais à tardinha.
Eduardo Lourenço escreve assim, habitualmente. E continua a sua prosa:
" Num livro clássico, Roger Caillois relembrava uma ideia de Huitzinga, o autor de Homo Ludens: a oposição entre o sagrado e o lúdico. O sagrado é o domínio do "tremendo", do que não pode ser encarado de frente ou pisado sem punição."
Ontem, na RTP1, o comentador-professor catedrático de Direito, Marcelo Rebelo de Sousa, a propósito do jogo de hoje, lamentava não poder estar presente lá fora, a apoiar a selecção, de boné e cachecol. A razão, prosaica e de fundo, tem a ver com a circunstância de ter de estar numa homenagem promovida pelos pares de Direito, ao professor André Gonçalves Pereira que segundo o colega, "merece".
O comentário de MRS a propósito do contratempo, merece também uma referência porque denota uma verdade muito poucas vezes expressa de modo tão singelo e espontâneo: os "colegas" dos lentes que marcaram a homenagem para aquela hora próxima do jogo, vivem, segundo Marcelo, "fora deste mundo"!
E o ensaísta Eduardo Lourenço, em que mundo viverá?
No da poesia das palavras? No mundo intelectualizado das conceptualizações? Há pessoas, com destaque para certos "intelectuais" , incapazes de raciocinar de modo linear em assuntos de compreensão básica e instintiva. E procuram dimensões metafísicas na poeira e na espuma. Que as haverá certamente e para isso lá estão os intelectuais, para as catar e mostrar. A desejável simplicidade da linguagem explicativa, assume nesses casos, roupagens insuspeitas e contornos improváveis e inesperados. Quem se lembraria de citar "o sagrado", um "Moloch identitário", escrever que " a ilusão típica do Ocidente, é a da identificação virtual do ser humano ao indivíduo" ou ainda " o todo ou tudo lhe preexistem porque é sobre o fundo do que o precede e antecede que a individualidade emerge sem jamais se alcançar plenamente", acrescentado logo a seguir referências à leitura do L´Équipe e do Figaro, a propósito do jogo de futebol de logo? Eduardo Lourenço, certamente. Mas podia ser pior...bastaria que um outro Eduardo...PC, se lembrasse de arriscar elocubrações do género. Aí, seria mesmo de fugir da crónica.
Assim, seja e que o artigo do Público não passe de crónica humorística, rebuscada de circunstâncias e de palavras cruzadas que deixa uma reflexão "fora do mundo".
Para reflexões profundas sobre futebol, não é preciso lourençadas. Basta ver as capas dos diários desportivos e folhear as páginas do suplemento diário do Público sobre futebol: 10 páginas, só hoje!
Amanhã, em caso de vitória, serão certamente mais...mas que venham elas, então! Não me queixarei, prometo.
Publicado por josé 09:43:00
É sempre penoso ver o talento desperdiçado. E o de MEC, era um grande talento, ocasionalmente.
Há crónicas pontuais, até no Pastilhas, que são antológicas.
MEC perdeu-se?
Pois é verdade, dá ideia que se esgotou. Não imagino como se pode perder o talento. Lembro-me do Chico Buarque dizer que temia que isso lhe acontecesse...
Nas obras artísticas ligadas às letras e música, parece que corrente contínua dura um tempo curto e depois passa a alternada quando passa. Muitas vezes extingue-se mesmo de todo.
Nas artes pictóricas, a reprodução do próprio estilo não cansa tanto e até se torna um asset. Picasso pintou até ao fim, já nos noventa, sem inovar, mas reproduzindo o estilo.
Na música, Mozart compôs tudo o que importa, ainda muito jovem.
Na música popular, uma boa parte dos compositores, como Dylan por exemplo, esgotou-se nos trintas.
Mas ainda ontem ouvi uma musiquinha de Gal Costa, de 2003 que é uma pequena maravilha.
Há coisas assim.
Já ninguém se lembra do Caillois e bem que eu gostava de reencontrar o Au coeur du fantastique...
":O)
É uma grande crueldade.
E que tal, mais correcta e portuguesmente, "... e bem gostava eu de reencontrar...", etc.
Malditas reformas do eduquês nestes últimos 50 anos!
Eu diria que depois de Desire ou Blonde on Blonde de Bob Dylan, tudo o que viesse era bónus. Excepto aqueles três albuns religiosos e feios que fez quando estava atacado de religiosidade mal escolhida. Mas até esses eu ouvi para poder conhecer.
E como ele muitos mais. Tantos. Quase todos. Imaginem que depois de "O que diz Molero", Machado Dinis tivesse escrito 2 ou 3 livros menores. Qual era o problema? Já nos tinha dado um dos grandes livros do séc. XX.
É terrível castigarem assim quem faz.
Ditado árabe:
Quem faz corre sempre o risco de errar. Quem não faz pode sempre criticar.
Já agora, como se deu ao trabalho de entrar na conversa, sabe do livro?
Se souber agradecia. O Instituto Franco Português tinha um mais roubaram-no.
(se tiver gralhas emende-as, sff)
eu não castiguei ninguém. Se leu com atenção até reparou que chamei crueldade a essa espécie de "lei" ou destino que leva a que muitos filões se esgotem.
Constatei-o, como o constatam os próprios e dei o exemplo do Chico Buarque porque me lembro que fazia parte dos seus pesadelos.
No caso do MEC é uma realidade de tal forma decadente e rápida que só quem não o lia mesmo em pequenos postes e brincadeiras do Pastilhas não se dá conta.
E não é "lei" obrigatória, há quem escape e até quem atinja o esplendor numa velhice "faustosa".
Estava apenas a conversar e a pensar alto com o José.
De certa forma nega a ideia que a criação é apenas esforço e trabalho e que nada tem de inato.
É injusto. Se não souber pintar não pode apreciar pintura. Se não souber escrever, está privada da capacidade de gosto e crítica literária. E por aí fora.
Só acredito nisso em parte. No caso da música, por exemplo. Creio que quem não tem ouvido musical fica sempre aquém.
Mas não acredito que assim suceda em todas as manifestações artísticas.
Provavelmente terá alguma razão. Mas por outros motivos.
O que escrevi foi sobre a criatividade aliada ao talento, para dizer que infelizmente não tem duração ilimitada em certas áreas artísticas.
Não é bem uma crítica, mas apenas uma verificação prática.
Bob Dylan, na música popular, será talvez dos mais prolíficos autores que jamais existiram. Segundo leio por aí, o acervo de músicas com letras que compôs, atingirá várias centenas.
Porém, obras marcantes, como um todo e que influenciaram gerações, tem poucas. Ou muitas se relativizarmos e compararmos com outros génios semelhantes, como Brian Wilson, Paul MCartney, Leiber & Stoller ou até Tin Pan Alley.
Para mim, Like a Rolling Stone, há só uma. Mas depois há Ballad of a thin man ou Desolation Row. Ouvir esta música a fechar a apresentação do filme musical Woodstock, obriga-me sempre a mais uma audição, no disco, pelo prazer que me dá.
Há uma composição de Dylan, desgarrada de álbuns e que aparece no Greatest Hits nº2, salvo erro. Chama-se Tomorrow is a long time e foi já cantada por vários artistas populares como Rod Stewart e Sandy Denny no primeiro álbum a solo dessa cantora.
A versão de Sandy é definitiva e impressionante de beleza.
O talento é um dom. Se alguém o perde, e outro alguém o aponta, “não está a fazer uma crítica, mas só um lamento e por isso…" diz o Sérgio Godinho que poderíamos mudar de assunto...
mas só para dizer que também o Sérgio Godinho foi apanhado da engrenagem da secura das fontes.
Não é uma questão de ser contra a crítica. E se calhar compreendi-a mal. Seguem-se desculpas. Há más obras e maus obreiros. Mas também há más obras de bons obreiros, ou bons obreiros que se perdem. O que me aborrece, não em nenhum dos caros Zazie e José, é esta dicotomia do "bestial hoje, besta amanhã".
Em relação ao ditado árabe, não é redutor, não senhor: Ninguém proíbe quem não faz de fazer. A chatice é que quem faz, forçosamente comete erros. E como fez e cometeu erros, leva muitas vezes mais pelos erros (muitas vezes ínfimos) que cometeu do que pela obra que fez.
Na minha inocência eu acho que o talento raramente se perde, pode-se modificar, pode ser menos inspirador, mas perder-se, penso que não.
A vida é descontinuada. Tem momentos. Não acredito que o S. Godinho tenha perdido o talento. Estará por ventura à procura de outras quimeras. Ou anda feliz, que a felicidade normalmente inibe a inspiração. seja como for, o Sérgio já me deu muito mais do que eu lhe dei a ele, que só lhe comprei os CDs e bilhetes de concerto.
Mas, na verdade, há talentos que definham tanto na inspiração que mirram até desaparecerem do campo visual ou auditivo.
Curiosamente, muitos deles, mirram na juventude. Outros,mais tarde um pouco.
O talento estará lá, estará. Mas como não se vê, ouve ou lê, é como se não estivesse...
O Sérgio Godinho mirrou logo por alturas do Canto da boca, em 81.
"Há muito muito tempo, era eu uma criança..."
Mas o que ficou chega e sobra para justificar uma vida, isso é verdade.
E quem pode dizer o mesmo?
Mas a ideia era essa. Por vezes até considero uma facilidade insultuosa o modo como se classifica um autor apenas por uma ou outra obra menos conseguida.
Acontece-me muito no cinema. Defendo sempre que é preciso conhecer-se tudo para se ter o direito a pronunciar e pela minha parte é raro falar do que não gosto. Ou tenho ódios de estimação ou grandes paixões. Se for ao Cocanha vai ver que nunca perco tempo com o que não me envolve muito. Só se for na brincadeira.
Como disse estávamos aqui a falar da tal possibilidade da fonte secar e essa é uma ideia que contraria o tal pragmatismo do esforço e do trabalho.
O José falou em talento e hoje em dia é difícil fazer passar esta ideia.
Mas a criatividade deve ser um processo muito mais complexo para se resumir ao ciclo da vida. Agora que existem fluxos e refluxos e que as próprias pessoas vão perdendo uma série de características em troca de outras é verdade.
Penso muito nisso por causa do sentido de humor. É tão difícil e tão raro; implica tanta coisa como inteligência e anarquia, que quase me parece um milagre haver quem o conserve a vida toda.
Ainda guardo a memória do 1º espectáculo no Coliseu
Não leve a mal a observação sobre a construção da frase; a verdade é que qualquer língua escrita usada num suporte como este é um jardim público; sugeri apenas para cuidar melhor do seu canteiro, extraindo uma daninha; aliás, ingénua e pateticamente pergunto: não será esta uma obrigação cívica de todos os actores (bloggers, comentadores, comentadores de comentadores, estrelas cibernéticas e anónimos) - cuidar do único bem comum aqui, a língua? Veja-se como quadro de um serviço público "alternativo" (e gratuito) num país de funcionários públicos, teóricos do eduquês e de dicionários da língua que são tidos como propriedade do Estado desde a I República...
Quanto ao Caillois, não li: ia a sugerir que passasse pela BN, ali ao Campo Grande, mas, depois, achei má ideia: se é frequentadora, não precisa de mais detalhes; se não é - também não precisa de explicações, além de que ainda ficava traumatizada com o tratamento dos funcionários e a atmosfera sorumbática; procure no velho Lácio (mesmo ali ao lado na esquina da rua do "Marocas") - é uma das últimas livrarias vieux style de Lisboa e o dono é uma espécie de reincarnação do Borges.. é só puxar-lhe um pouco pela língua...
Claro que tenho a possibilidade dos empréstimos da BN mas a ideia era ter o livro.
As bibliotecas devem ser sorumbáticas. É isso que lhes dá encanto. Faz parte do eduquês imaginar todo o estudo como uma disneylandia, não é assim?
meia dúzia de cliques e o catálogo da BNL -- online -- mostra facilmente onde encontrar numa biblioteca em Lisboa a obra do Caillois que diz querer ler:
"Pesquisar no Catálogo por Autor: Caillois Roger 1913-1978
Cohérences aventureuses : esthétique généralisée: au coeur du fantastique : la dissymétrie. Paris:Gallimard imp. 1976,281 p. -- Univ. Nova Lisboa Fac. Ciên. Sociais Hum, cota: AD 273/A"
Naturalmente, é "fácil" para alguém que realmente conhece e utiliza os (escassos) locais e ferramentas de leitura/pesquisa nesta cidade pobretanas em recursos culturais deste tipo... Aparentar o que quer que seja é ainda mais fácil...
Quanto à sua ironia sobre a atmosfera sorumbática versus Disneylandia (e já que menciona algures o Lycée Français desta parvónia), sem dúvida os turistas culturais adoram, babam mesmo perante o tal "encanto" do sarro cultural "ancient", por exemplo, de uma BN de Paris no velho edifício do Henry Labroust cheio de arquinhos, pilaretes, cúpulas e ferragens à la Eiffel, candeirinhos de latão e corredores sombrios... sem dúvida très chic et authentique... Mas se perguntar aos leitores regulares (ie, aqueles que realmente lêem e investigam) se trocariam eles o conforto funcional, as tecnologias, a atmosfera leve e luminosa da arquitectura da nova BN de Paris pela pátina e pelo chique histórico do velho convento de S. Geneviève talvez ficasse chocada com as opiniões destes iconoclastas da disneylandia...
Já agora: o ambiente sorumbático do casarão estado-novense do Pardal Monteiro (no sentido em que eu referi) decorre do facto de ele estar sempre às moscas numa zona de Lisboa (Cidade Univ.) onde estão todos os dias dezenas de milhar de estudantes (e docentes!) universitários: é um armazém de papel velho a apodrecer, não a Biblioteca Central de uma das mais antigas culturas da Europa, onde milhares de leitores fazem fila para poder usar os seus recursos (tal como noutra qualquer BN da Europa).
Por que razão é que a esmagadora maioria dos tugas que sabem um poucochinho mais além de assinar escorreitamente o próprio nome sente uma necessidade patológica de, permanentemente, a propósito de tudo e de nada, insinuar que sabem ou que são aquilo que não são? Lembra o refrão de uma velha musiquinha do Sérgio Godinho, mencionada algures neste post: "- Pode alguém ser quem não é? trá-lalá..."
":O))))
Para o caso eu conheço o livro e até fotocipiei grande parte dele quando ainda estava no Instituto Franco Português-
Instituto Franco Português- não é Liceu Francês.
E já que fala na BNP e tem a triste ideia de a comparar com a Labrouste, devo dizer-lhe que a Nova Biblioteca François Miterand está na minha lista negra.
O ar condicionado tem uma temperatura de tal modo acolhedora que em pleno Agosto já eu vi muita gente experimentada levar cachecol na mala e colocá-lo mal entra.
E fazem bem. Pela minha parte apanhei lá uma tremenda gripe. Depois, é tão moderna e tão igualmente quadrada que para se ir aos lavabos e voltar ao lugar só com grande sorte não há engano.
Aquilo é uma couraça de armadura medieval. Dos sanitários aos empregados é tudo cinzento, frio, blindado. Por sadismo ainda se deram ao trabalho de colocar um magnífico jardim interior que apenas podemos obervar através de outros tantos vidros fechados.
Meu caro... você veio bater a porta errada se quer dar lições de bibliotecas. Vá ao Cocanha, aos postes do Verão e vai perceber a que me refiro.
Quanto à análise que este seu exercício pretende insinuar, recordo-lhe as suas próprias palavras:
"Por que razão é que a esmagadora maioria dos tugas que sabem um poucochinho mais além de assinar escorreitamente o próprio nome sente uma necessidade patológica de, permanentemente, a propósito de tudo e de nada, insinuar que sabem ou que são aquilo que não são?
É que eu não me quiz armar em nada. Apenas comentei o post do José e veio-me à ideia o Caillois que ando a ver se apanho na Amazon.
Você é que decidiu aproveitar esse facto tão simples para me dar lições.
Ok. Agradeço-lhe a descoberta num local que conheço e onde imagino que até seja possível tirar o resto das fotocópias que me faltam.
Quanto a gostos bibliotecários passo. É assunto que apenas gosto de partilhar com quem está numa boa e não é pedante armado aos cucos e esse não é o seu caso.
Alguém que não tem espelho em casa, por certo...
Pois nesse caso bem podia esperar sentado que elas nascessem do ar desempoeirado da Miterand
ehhehehe
Como deve ser investigador encartado, por certo está a par da diferença de acesso.
Imagino que até tenha cartão permanente para uso do Warburg e assento permanente na cadeira do Sir Francis Drake na Bodleian...
Estava a ser ingénua. A menos que fosse aquisição recente... Pois se existisse na Nova por que motivo havia eu de ir de propósito à biblioteca do IFP para o consultar? Ora... e a perder agora tempo com esta “aparição-MV” que está-se mesmo a ver de onde veio...
que pena a informação que lhe dei não ser útil para si; quanto ao resto, confesso que me esmagou com tanta justificação, tanta sapiência de lugares chiques da cultura europeia que aparenta conhecer... E tal como os tugas ontem, com o rabinho entre as pernas depois do jogo, me remeto para a minha Disneylandia, deixando-lhe a si toda a cultura tuga mais a respectiva mentalidade para que brilhe sempre entre os seus no justo esplendor
Como o sentido de humor preciso e o contexto descontraído, deixo-lhe aqui um blues de Muddy Waters, para ouvir e voltar:
Baby, please don't go
Baby, please don't go
Baby, please don't go, down to New Orleans
You know I love you so.
Relax, caro mv e fale-nos de bibliotecas que são lugares de culto.
Before I be your dog
Before I be your dog
Before I be your dog
I get you way'd out here, and let you walk alone
Turn your lamp down low
Turn your lamp down low
Turn your lamp down low
I beg you all night long, baby, please don't go
Não sou versado nas filosofias de tomos, mas concordo com o espírito desse dito.
O que se passa com Lourenços e Cª, ao lerem demasiado, é tomarem os textos escritos como reflexos da vida, de modo a que ao olharem para uma flor de malmequer, lembram-se sempre de um poema de Whitman ou ( se tal fora possível ) de Rilke.
Não se extraviam do pensamento encalhado nos livros.
Dantes, tal fenómeno ocorria com o enxurro dos clássicos greco-latinos, base da formação nas filologias românicas ou até germânicas.
Assim, era um regalo fastidioso, ler os críticos/as a citar sempre os Penélopes e os Medeias e Perseus, o Hades e as Cariátides.
Lembro que uma grande especialista desta simbologia era a falecida Natália Correira que recorrria sempre a estes nomes estranhos ao vulgo para impressionar a plateia dos coliseus da Assembleia quando por lá passou e obrigava muita gente a comprar manuais de mitologia.
Há poucos, agora. Julgo que será pena que assim seja, mas será mesmo?
O estudo da mitologia greco-latina será assim tão importante, quando temos todos os filmes e livros que glosaram e palimpsestaram os mesmos temas?
Fica a pergunta ao codex e ao mv.
E a outros, claro, de boa vontade que assim se disponham a escrever palpites ligeiros.
Neste caso do Eduardo Lourenço o José apanhou-lhe muito bem o lado balofo. A questão está toda no tom e no despropósito das citações metidas a martelo. Foi por isso que também me saltou à vista o arcaísmo do Caillois.
Já no que toca à mitologia clássica eu diria que sim, que faz falta e que nada a substitui. Mas é claro que nada disso se compara com aqueles disparates de grande patapouf da Natália Correia.
Esse lado teatral é que cretino e tem sempre ar de novo riquismo. Interessante é o oposto. Quem é capaz de dizer coisas profundas com a linguagem mais corriqueira.
Mas há quem vá pela pose.
O Salazar sabia que era assim. Sempre falou caro para o povo. Quanto menos se entende mais se respeita.
";O)
Ao meter o bedelho neste tópico temo que acabe por me bandear, a contragosto, para o lado de Mme Zazie de Pompadour: subscrevo as palavras de Musaranho quando diz "no que toca à mitologia clássica eu diria que sim, que faz falta e que nada a substitui...", até porque creio não ser uma questão de escolha - Gregos e Romanos, tal como as outras camadas do "cebolo" cultural de que é feito a visão do presente, estão por todo o lado, fazem parte do líquido, por vezes turvo, outras vezes cristalino, onde nadamos como peixes. É claro que há peixes de muita "calidade" como dizia o A. Vieira que gostava de lhes falar e uns conseguem descer às camadas profundas, enquanto outros só sabem deslizar pela superfície; mas mesmo à tona, e olhando apenas muitas das imagens materializadas em referências perfeitamente anódinas do quotidiano banal de qualquer um, digamos Lisboa, não é difícil perceber que Gregos e Troianos nos espreitam em qualquer esquina:
será possível, hoje, reconhecer o largo da D. Estefânia sem o mostrengo empunhando o tridente (Neptuno/Poseídon); podemos imaginar o quadrado pombalino, desembocando numa Praça do Comércio, que não misture no seu desenho a estrutura racionalista (pretensamente) "moderna" com as referências da velha pólis grega e suas divindades - a Atenas (Deusa da Guerra e do Comércio) e sem os arcos triunfais e as ruas Augustas e das idades da Prata e do Ouro de que fala o romano Ovídio? E aquelas criaturinhas em poses apetecíveis com seios em mármore rosa do cabotino do Cutileiro num dos laguinhos da Expo (só para lembrar um outro exemplo insupeitadamente contemporâneo) - as Tágides da antiguidade inventadas pelo Camões? O próprio nome do burgo lisbonense não remete para a periferia longínqua da civilização, o culus mundi visitado pelo herói do 1º thriller de aventuras europeu? Esforçando-nos um pouquinho, seria possível encher páginas com exemplos...
Mas isto não retira interesse à questão colocada - a do sentido, ie (se percebi bem o que questionam os posts anteriores): para quê insistir na tralha erudita dos clássicos antigos, atafulhando assim com bibelots anacrónicos o design funcionalista e minimal dos nossos cérebros contemporâneos que processam melhor os bites, perdão, os neurónios da cultura visual e metáforas cinematográficas)?
Recorro a alguma retórica, reformulando a questão em termos práticos: será que um qualquer teenager (mesmo aquele que existe em nós!), depois de chantagear os papás a pagarem uma pequena fortuna por um par de ténis Nike, ganha alguma coisa se souber que os naike que leva nos pés escondem os poderes vitoriosos da antiga Nikê grega? E os "neo-tugas" embevecidos com a redescoberta da sua bandeira nacional deixariam de ser ... aquilo que são, se soubessem ler a mensagem imperialista e megalómana codificada nas armas daquela (e que remete para os Judeus da Antiguidade e de Roma)? Quem quiser ocupar-se da utilidade social da cultura que responda; por mim, prefiro ver as coisas como uma questão de água benta - cada toma a que quer... E qualquer que seja a quantidade bebida isso tem apenas o sentido de uma escolha ou preferência individual que não faz de ninguém mais inteligente ou mais decente. Justamente, troquei neste blogue algumas flores com a referida Mme (ou Mam'selle?) Zazie por reagir a uma curiosa (e irritante) visão anacrónica acerca do papel da cultura "erudita" (antiga ou não) muito entranhada entre os lusitanos: a de se ver a cultura, não numa perspectiva simplesmente funcional ou individual, antes como um sensível atributo ostensivo do status social (e sua promoção) ambicionado; daí, em parte, o furor "anti-intelectual" e também, simetricamente, a obsessão ridícula em alardear explícita ou subrepticiamente toneladas de sapiência erudita.
Apenas mais uma coisinha: esta discussão sobre o valor da "mitologia clássica" nos dias de hoje mostra, surpreendentemente, que a famosa polémica entre Antigos e Modernos, que fez correr rios de tinta ao longo de todas as épocas culturais da Europa desde praticamente a Antiguidade Grega e Romana, e que aparentemente tinha sido liquidada definitivamente pelos teóricos do Modernismo do séc. XX, tal como a Fénix (oops, desculpem lá...), regressa à superfície em plena época pós-modernista -- com ou sem a consciência dos autores do post que a colocaram...