turnos da noite, SA
quarta-feira, janeiro 11, 2006
Escreve-se no Diário Digital:
"A evolução da qualidade e eficiência dos 31 hospitais com gestão empresarial foi superior à das unidades que mantiveram o estatuto do sector público administrativo, revela um estudo que é hoje apresentado."
Ontem, pouco depois da 1 hora da manhã, um pai e uma mãe, dirigem-se ao serviço de urgência de um Hospital SA, dos tais referenciados no estudo, como sendo de qualidade e eficiência comprovadas.
O motivo era de urgência por causa de uma filha de menoridade que se queixava de fortes dores abdominais, contínuas, sem outros sintomas visíveis e sem causa aparente. Como não parecia uma vulgar dor de barriga, os pais acharam por bem levá-la ao único sítio onde poderiam diagnosticar a causa do mal e tratá-lo, se preciso fosse.
Os serviços de urgência do Hospital SA em causa, estavam sem grande movimento àquela hora da manhã, de frio intenso. Duas ou três pessoas, acompanhadas de familiares aguardavam a vez, à espera numa sala fria, sem o mínimo conforto para além de umas cadeiras plásticas, dispostas num anfiteatro imaginário, virado para a porta de entrada dos "serviços". Aquecimento, numa noite fria como aquela? -O do ambiente natural, nomeadamente o da porta de entrada, a bascular verticalmente sempre que alguém entra. Problema? Não há problema! Estamos num serviço que é de urgência, para atender doentes em trânsito acelerado e por isso, o desenrasca português assume o seu perfil mais perfeito. Aliás, os gabinetes da Administração do SA, ficam no lado oposto, mais virado a sul e resguardados do frio...
Assim, vamos à rotina de procedimentos regulamentados. Primeiro, é preciso fazer a ficha. Num guichet mais ou menos improvisado, com um vidro a toda o pano, pode ver-se a azáfama dos "administrativos" que atendem. Fazem-no com o profissionalismo de quem está habituado a ver sofrimentos físicos permanentes e urgentes e o frio é parecido com o que entra pela porta que fica atrás.
"Tem o cartão de utente?" - isso, mesmo depois de saberem que o terminal informático à frente dos olhos responderá imediatamente à questão. Os terminais já contam com a tecnologia mais recente dos cristais líquidos, embora a carrada de papéis que lhes associam e infestam as mesas, seja do mais puro âmbito do "deixa andar", SA.
A rotina de atendimento passa depois, pela espera, nas cadeiras, se houver lugar; ou a pé no meio de outros doentes, com as maleitas mais visíveis ou as mais escondidas e insidiosas. Há quem diga que muitas infecções se apanham por esta via de contacto directo com a realidade das urgências.
Numa sala em frente ao "anfiteatro", uma porta anuncia uma estranha operação de "triagem" referindo-se a um conceito introduzido ainda há pouco, vindo dos lados de Machester.
Dentro da sala, depois da chamada pelo nome da doente, via amplificação sonora do tempo do cinema mudo e com triques e traques da electricidade estática, visiona-se um profissional de bata. Aparentemente, médico. Só pode ser! Para uma triagem inicial que equivale a uma classificação que se pauta em breves minutos ou longas esperas na sala, só pode ser. Mas não é, naquele Hospital SA! É um enfermeiro, parece. E atende individualmente os "utentes". Sendo menor, só um dos pais! Quem manda?! A pessoa mais importante do serviço de urgência, antes de nele se ter entrado sequer: o porteiro!
O porteiro dos serviços de urgência é geralmente um uniformizado cuja preparação para o atendimento e sensibilidade ao estado em que as pessoas aparecem se avizinha quase do zero absoluto para a função. Aliás, nem precisa de grande preparação, para além do uniforme informe em tom de azul que esconde o sujo do uso.
O que aparentemente se torna necessário, num Hospital SA, é apenas fazer cumprir um regulamente interno que só é conhecido dos que administram. Os utentes botam-se a adivinhar a razão pela qual só é admitido na triagem inicial, uma pessoa a acompanhar, mesmo tratando-se dos pais. Assim, a questão imediata é : " "vais tu?" E o outro espera cá fora...e escreve no livro de reclamações a sua perplexidade e incompreensão pelo tratamento discriminatório.
Do lado de cá, a espera é breve, para ver de que cor é a pulseira plástica que a criança traz no pulso. Amarela, no caso. O significado das várias cores possíveis está afixado num cartaz, perto do televisor de afixo perto do tecto, que passa na altura um episódio das Marés Vivas! Amarela significa que a espera pode ir até 60 minutos. Uma hora de espera para se poder saber o que significa a dor contínua e permanente que afecta uma filha que não para de chorar e de se queixar das dores! Triagem de Manchester oblige...
Depois de espera demorada e a passar a meia hora, já depois das 2h e meia da manhã, com observação dos circunstantes, também contrafeitos pela demora, o pai dirige-se ao "guichet": " O atendimento ainda demora?" " É que não vejo ninguém a entrar ou a sair..." Resposta da administrativa burocraticamente composta nos óculos atentos aos afazeres dos papéis: " Tem que aguardar..."
Mais uns minutos a "aguardar" e nova pergunta: " Quem é que está a dirigir o serviço de urgência, neste momento?" Resposta algo perplexa e incomodada: " Não sei, tenho que ir ver à escala..." Na escala vem um nome que não se encontra presente para explicar qualquer demora. " Então onde é que está a médica que é suposto estar a dirigir o serviço nesta altura?" Resposta evasiva e já mais incomodada, num fugidio e seco "não sei"...
Mais uns largos minutos de espera, e a miúda começa a melhorar, por si. A esperança e o alívio de que não passe de uma simples cólica abdominal, sem causa grave, começa a afastar a indignação de se ter de esperar mais de uma hora por um atendimento médico num serviço de urgência do Estado, pago por todos e com regras bem precisas sobre as prestação dos serviços médicos.
Começam a apagar-se os desejos de indagar por que motivos se fazem daquelas triagens: por que motivos se manda esperar uma doente, criança de pouca idade, mais de uma hora, para sera tendida por uma médica que não está presente, notoriamente, e deveria estar. Começa a desvanecer-se a tentação de chamar à responsabilidade quem obviamente prefere ficar a dormir quando tem obrigações estritas de atender doentes numa urgência.
O pai dirige-se ao guichet e diz à administrativa impassível que não sabe onde se encontram os médicos que seria suposto estarem mesmo ali: " Vamos embora! Pode telefonar à médica para dizer que já não faz falta..."
Os outros utentes, com a demora a que ficaram também sujeitos, permanecem com a indignação estampada no rosto. Mas isso são os acompanhantes, porque os utentes doentes, esses sofrem...enquanto outros que os deveriam tratar, dormem, tudo o leva a crer, descansados.
É este o retrato de um dos Hospitais SA deste país, em noite fria de urgência, madrugada fora.
Quem conhece Portugal e os portugueses, percebe instantaneamente porque é que isto sucede.
Mas resigna-se.
Mas o que dói, ainda por cima , é que se gabem de uma eficiência e qualidade que comparam como invejáveis, mesmo sabendo que estas situações ocorrem e não devem ser tão raras quanto isso!
Por mim, podem limpar as mãos à parede...dos consultórios.
Publicado por josé 14:31:00
Se quem faz as leis estivesse sujeito a elas, muitos do erros e negligências a que assistimos impotentes não se verificariam.
(PS: há algum tempo, o primeiro-ministro sueco, socialista, depois de criticar a privatização da gestão dos hospitais públicos na Suécia, foi apanhado a ir ao um hospital privado. O caso deu para o escândalo porque o homem não só não se submetera aos processos normais, como não utilizara sequer os serviços que ele própria andava a dizer que defendia para a população).
Acabei de lá colocar este comentário, ao comentário do "anti-comuna" que me questionava se acredito mais no serviço público dos SA´s ou no privado- privado:
"Caro anti-comuna:
Na Saúde nem sei em quem acreditar.
O sitema estatizado, desresponsabiliza e ajuda a criar "direitos adquiridos". Sempre e cada vez mais adquiridos. Um deles, é o de comparecer ao serviço só quando é mesmo preciso. E mesmo aí, se houver uma urgência privada, há sempre um colega que espera pela vez de poder ser útil, em retribuição recíproca.
Quando há problemas no serviço, leia-se erros graves em intervenções médicas ou de enfermagem, quem é vítima pode ter a certeza deuma coisa: dificilmente um médico ou um enfermeiro pôem abertamente em causa o comportamento do colega. Dificilmente se arranca uma declaração a acusar positivamente as faltas ou asneiras profissionais, mesmo que sejam aparentes. Há sempre desculpas, nesses casos.
O mesmo acontece com outras profissões, mormente os juízes. Dificilmente um juiz malandro ou maldoso pode ser responsabilizado por um colega mais velho do Conselho Superior, através de uma inspecção. Isto é de uma evidência tão chã que até dói.
Os "colegas" percebem o que se passou, pois geralmente nem são burros de todo. Mas o passo seguinte, nunca é dado. Porquê? Por causa das amizades, conhecimentos, cumplicidades, complacências, razoabilidades postiças, costumes brandos.
No pessoal médico é exactamente a mesma coisa.
É assim nos SA como o é nos públicos, como o é também nos privados.
Quanto a isso estamos entendidos.
Mas quanto à qualidade dos serviços, tenho algumas dúvidas. A vontade de poupar à força, com gestões de contabilistas ou de simples desenhadores de projectos ( há-os, há-os, é verdade...)leva a que se dispense pessoal.
Os médicos ficam então " à chamada". Ficam em casa, à espera do serviço urgente. E acontece o que aconteceu...
Se isto é boa gestão -que aliás me parece generalizada,- vou ali e já venho.
Se a gestão na Saúde passa por isto e deixa ao lado o problema gravíssimo da influência das farmacêuticas no sistema, vou ali e já venho.
Se a gestã na Saúde passa por reduzir pessoal no serviço de urgência porque a maioria dele precisa desse serviço para completar o ordenado, paraficar nos confortáveis mil contitos por mês, vou ali e já venho.
Enfim. O que me parece é que tudo é feito em cima do joelho. E colado a cuspo."
A história que contou pode ser, infelizmente, multiplicada por centenas e representa a imagem que a maioria dos cidadãos têm do sistema de saúde existente em Portugal. Numa maioria de vezes miserável, desorganizado, sem qualquer consideração pelo doente.
Imagine agora que lhe entra aqui pela caixa de comentários alguém qualificado (um médico, por exemplo) que em 10 parágrafos extensos lhe explica o funcionamento de um serviço de urgência, a racionalidade de ter esperado todo aquele tempo que esperou e a sua falta de aptidão para a perceber. Que atenção lhe prestaria?
Estará agora a perceber melhor como será a receptividade às suas (extensas) defesas “à outrance” da porcaria de sistema judicial que temos? É que também existirão centenas de histórias absurdas como a sua, envolvendo tribunais…
Já disse muitas vezes que aqui osu josé. Deixe lá o resto para onde quiser, mas trate-me, por favor por aquilo que sou aqui. E pelo que escrevo.
Quanto á porcaria do sistema judicial que temos, concordo consigo, veja lá! Desconfio, porém, é que não será nos mesmos pontos e nos mesmos assuntos.
Agora, nenhum médico me conseguirá explicar - nem V.- a racionalidade que pode existir em fazer esperar uma criança durante mais de uma hora, sem atendimento relativamente a um problema que poderia ser grave.
COmo não conseguirá explicar a desumanidade que existe em determinados serviços de urgência com porteiros que são autênticos carroceiros, escolhidos a dedo não sei por que contabilista; com médicos que deveriam estar de ser viço e não estão, embora se calhar ganhem como se estivessem; e com esperas programadas por enfermeiros a fazer a triagem de doentes que só por palpite podem acertar no diagnóstico.
Para vergonha estamos conversados.
COmo vê, pela boca morre o peixe.
Tem toda a razão. Peço-lhe apenas que poupe alguma dessa sua estraordinária acutilância que aplicou na qualificação do sistema de saúde para alguns dos próximos absurdos judiciais em que o nosso país é fertil...
Sempre foi bom ler que concorda comigo quanto à qualidade do nosso sistema judicial. É que até somos capazes de ser uma maioria... e de ter razão!
E somos nós que contribuímos para piorar as coisas.
É com o nosso voto que quem piora as coisas, piora a coisa.
Somos nós que pioramos a coisa. Disso não haja qualquer dúvida.
Podem é dizer-me que, hoje, vote-se A ou vote-se B ou C, vai tudo dar ao mesmo; em boa parte é verdade:
com o PS a coisa piora sempre drasticamente - como se vê, aliás - e com o PSD e o CDS, a pioria não sendo rápida e drástica é, contudo, sempre mais vasta.
Venha o diabo e escolha.