Leitura para um sábado chuvoso
sábado, outubro 29, 2005
E ele tem o teu rosto, e os teus olhos, e a tua voz, e é irlandês, e tem cinquenta e dois anos.
Ashley sentira frio durante toda a viagem, vestia apenas uma camisola de algodão branca e os jeans, o casaco azul-escuro não era muito quente. Descera numa pequena estação para tomar um café, ao voltar à plataforma metera um pé numa poça de água e a bota ficara molhada, a humidade chegara-lhe aos dedos. Claro que podia ter tirado a mochila da bagageira e vestido duas ou três camisolas, umas peúgas, o compartimento estava vazio, mas sentia-se entorpecida, cansada, e talvez o frio lhe desse um obscuro prazer. Quando entrava no mar e a água estava a uma tem- peratura muito baixa, reunia as suas forças e nadava para longe da costa, e o frio fazia-a sentir-se viva, forte, talvez indestrutível. Acontecia o mesmo quando era miúda e se escapulia do dormitório do colégio de manhã muito cedo, corria pelos campos e ia nadar na piscina entre as rochas.
A estação de Charing Cross tinha um ar festivo, as luzes acesas. Ashley colocou a mochila aos ombros e agarrou no grande saco impermeável onde trazia as telas. Eram seis ou sete, as que a tocavam mais, pensou com amargura que agora pintava como um Monet de segunda ordem que começava também a ficar cego, as paisagens quase indistintas, os pássaros marinhos que eram um único pássaro, as asas que pareciam ondas e as ondas que podiam ser asas; por momentos sentiu vontade de deixar o saco no comboio, de perdê-Io, mas depois apertou a alça com mais força e saltou para a plataforma. Estava em Londres, apercebeu-se de repente, voltara, um impulso muito forte crescera nela nos últimos dias e tivera de voltar. Não sabia para quê, tinha qualquer coisa a ver com os quadros da National Gallery, com as livrarias, com a Marchpane e os livros infantis, tinha qualquer coisa a ver com a neve nas ruas e com a árvore de Natal em Trafalgar Square.
Alguns minutos depois sentou-se num banco e ficou a olhar para a árvore iluminada com um encantamento de criança. Sempre gostara do Natal, mesmo quando o passava no colégio interno; via as colegas partirem com os pais mas não se sentia triste, os livros que Tom lhe enviava dos Estados Unidos tinham acabado de chegar, e com eles mundos estranhos, histórias que a aqueciam por dentro. Os professores não lhe davam ocupações nas férias, e o edifício enorme que conhecia bem ficava um pouco por sua conta, as inúmeras salas vazias onde ninguém entrava, os dormitórios abandonados, o ginásio, a biblioteca; ia de manhã às piscinas naturais, e embora estivesse frio mesmo para ela, era bom estar ali, ler um livro de aventuras, desenhar o mar e as rochas, e as pequenas plantas que cresciam entre as rochas, no seu caderno de esboços.
Desde cedo gostara de estar sozinha, talvez porque não podia estar com ele, e as outras pessoas não lhe interessavam muito. Também passara alguns natais com Miss Winter, em casas de campo rodeadas de neve, no Norte de Inglaterra, mas estar com Miss Winter era como estar sozinha, tinham aquele acordo tácito de partirem de manhã cada uma para o seu lado com o material de desenho ou pintura e encontrarem-se às refeições, falavam pouco mas gostavam uma da outra. Miss Winter ensinara-lhe tudo o que sabia e quando percebera que não tinha mais nada a ensinar deixara-a trabalhar tranquilamente.
A igreja de St. Martin-in-the-Fields, a National Gallery, a Portrait Gallery, uma exposição de
fotografia de Philippe Halsman, Charing Cross Road. Gostava muito das pequenas ruas onde não passavam automóveis e as lojas tinham algo de mágico. Cecil Court: Martin Murray Cigarette Cards, Travis & Emery Music, Mark Sullivan Antiques & Decoratives, The Rae-Smith Gallery Cartoons & Illustrations, as livrarias que conhecia intimamente, Nigel Williams Rare Books, Peter Ellis Bookseller, Marchpane Children's Books, P. J. Hilton Literature, Antiquarian & General Books; deteve-se por instantes junto de Tindley and Chapman, alguns livros que tinha em casa mas que lhe apetecia comprar de novo, The Grass Harp, Wide Sargasso Sea, The Collector, Treasure Island. Uma peça de Tchekhov no Albery Theatre, A Gaivota, os cartazes enormes, e depois a sua rua, enumerou baixinho, como se rezasse, aqueles nomes que conhecia tão bem, James of New Row - Clock and Watch Repairers, Prime Video, Nigel & Crown, Harry Brown Caffee, Scott's Caffee, Waterstone's Bookshop.
Ashley estremeceu ao ver a luz acesa no sótão da casa. Sentiu que o coração batia muito depressa e que o peso da mochila e do saco se tinham tomado insuportáveis, o seu corpo estava fraco e frio, quase teve uma tontura. Mas então lembrou-se, era muito tarde para acreditar em fantasmas, Ed alugara o sótão a um amigo, um professor universitário ou algo do género.
Invadiu-a um forte sentimento de rejeição, não devia ter concordado, para o diabo com o dinheiro, não queria um velho desconhecido a viver naquela casa que era deles, que continuava a ser a casa deles. Procurou a chave e não a encontrou, era estranha a ideia de tocar à campainha, finalmente descobriu o chaveiro no fundo do bolso do casaco e com a mão trémula abriu a porta e acendeu a luz. Como sempre Tom esperava-a, ele e os seus cães, os três cães que tivera na sua vida, um depois do outro, não haveria mais nenhum, agora era demasiado tarde. Deixou cair a mochila e o saco e viu-se de relance no espelho do vestíbulo, o rosto fechado, a pele um pouco queimada pelo sol, o cabelo comprido e mal tratado. Estava feia, magra, os lábios gretados, os olhos muito azuis tinham um brilho frio, de pedras geladas. Sempre se achara parecida com ele, eram ambos altos e magros, o cabelo cor de palha, mesmo cor de palha, os olhos muito azuis, a pele clara bronzeada pelo sol, passavam muito tempo ao ar livre. Ele tinha uma pequena cicatriz numa face, e um sorriso que ela muitas vezes tentara imitar. Meu amor, estou aqui, disse baixinho, meu amor, agora estamos os dois aqui.
Abriu a porta da sala e sorriu sem se dar conta, aquele espaço que tinham criado os dois, os livros e as pedras, as rosas secas, a caixinha russa pintada à mão, as duas paisagens de que ele gostava muito, uma ruazinha de Londres coberta de neve, o Tamisa gelado e os barcos, os seus filmes, aprendera com ele a amar os filmes a preto e branco, ela que tinha a paixão da cor, a neve num filme a preto e branco. Pegou num livro e folheou-o devagar, The Golden Bowl, aproximou-o do rosto para sentir o seu cheiro; Charlotte Stant num museu, durante a noite...
Entrou na cozinha e percebeu que estava cheia de fome. Esquecia-se de comer durante dias inteiros, sempre fora assim, e a fome chegava inesperadamente; tomara o pequeno-almoço na cidadezinha perto da casa de praia e depois não comera mais nada, só bebera uma chávena de café. A mesa tinha uma das suas toalhas aos quadrados vermelhos e brancos, não muito limpa; com migalhas. Se havia migalhas devia haver pão, abriu a lata de estanho que estava em cima de um armário e viu um pão escuro cortado em fatias; no frigorífico encontrou queijo cheddar, maçãs Cox's Orange Pippin, peras William e tangerinas.
Ashley não celebrava o Natal. Às vezes comprava uma garrafa de champanhe e morangos, mas uma sandes de queijo e uma tangerina serviam muito bem. Comeu devagar e bebeu um copo de água da torneira. Depois afastou a cortina da janela e ficou a olhar para o jardim cheio de neve, suavemente iluminado pela luz da cozinha e as do prédio em frente. Tenho de ir ao jardim e entrar no estúdio, tem de ser agora, depois não sou capaz. Ashley apertou a gola do casaco azul-escuro e saiu para o jardim. A neve estava intacta, os arbustos, as pequenas árvores e o telhado do pavilhão tinham uma camada branca por cima. Deu alguns passos e deteve-se, sem forças para continuar. Era como se o cansaço e a tristeza tivessem chegado, o que sentira durante a viagem não era nada comparado com aquilo, o peso nos ombros, o rosto tão frio que quase não conseguia mover os músculos, as pernas entorpecidas, as botas enterradas na neve. Uma figura de gelo, pensou, um anjo de gelo esquecido num jardim. Um anjo de gelo que não sobrevive ao primeiro dia de sol. E de repente teve a sensação de que no interior da casa alguém a observava.
Mas não se voltou. Os seus olhos estavam fixos em frente, e o pavilhão coberto de neve era a única realidade, um espaço quase sagrado, fora do mundo. O lugar onde ele trabalhava, de dia e de noite. A imagem era muito forte, Tom sentado à secretária, inclinado sobre um livro ou um caderno de apontamentos; ao lado um candeeiro aceso, um copo de água, uma cigarreira castanha e um cinzeiro. O seu cabelo cor de palha, mesmo cor de palha, o rosto seco queimado pelo sol, os olhos azuis, a cicatriz, as mãos de dedos compridos e ágeis, o corpo imóvel. Encontrou a chave, abriu a porta do pavilhão e acendeu a luz. O compartimento estava tão frio como o exterior. As duas janelas, as cortinas que tinham sido azul-escuras, a secretária na qual se misturavam cadernos e desenhos soltos, a estante cheia de livros, os cavaletes, as telas encostadas às paredes, as setas de papel no chão, o velho sofá onde, em alturas diferentes, ambos se tinham deitado a fumar e a ouvir Bach ou Mozart, A Criação de Haydn. Porque nós vivemos juntos, sempre vivemos juntos, separados pelo tempo. Sozinhos.
E então lembrou-se do homem que entrara no mundo deles. Aproximou-se da janela e olhou para a sombra familiar da casa, a luz acesa do sótão. Um vulto na janela. Recuou um pouco, para que ele não a visse, e naquele instante começou a nevar, os flocos caíam lentamente, tomando o silêncio mais profundo, e ela sorriu, estou viva, pensou, de alguma forma estamos vivos, e o mundo ainda não acabou, não chegou o fim dos tempos e os anjos não dobraram os céus. Meu Deus, está a nevar
in «Se nos encontrarmos de novo», Ana Teresa Pereira
Publicado por André 16:19:00
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