Corrupção
vade mecum
domingo, outubro 09, 2005
O dinheiro que os autarcas levam para os partidos políticos tem como contrapartidas, do poder central, leis que não mordem e investigações que ficam pelo caminho, acusa o politólogo Luís de Sousa. Segundo ele, o que se passou na campanha para as autárquicas é também revelador da "pequenez" da magistratura portuguesa.
A frase epigrafada, retira-se da Pública de hoje, de uma entrevista conduzida por Clara Viana a um politólogo, Luís de Sousa, investigador do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE.
O politólogo, nesta campanha autárquica, dirigiu no terreno uma equipa de investigadores para um estudo por conta da Entidade de Contas e FInanciamento Políticos. Segundo o jornal, tal estudo, destina-se a apurar "evidências sobre práticas de financiamento político". O jornal diz que os resultados serão publicados em breve.
Segue a entrevista, interessante qb...
P -Nunca houve tantos candidatos que estivessem a braços com a justiça como nestas eleições. Isto significa o quê? Que existem menos garantias de impunidade, uma vez que se encontram sob investigação, ou que eles só puderam ser candidatos porque algo falhou ?
LS - É uma situação que vai criar problemas bastante graves. Para já cria precedentes, o que é gravoso. Espero que na sequência do que aconteceu se pondere bem e se proceda, por exemplo, a uma revisão constitucional que possibilite a retirada de direitos políticos de modo a impedir candidaturas nestas circunstâncias.
Faz sentido que exista imunidade, que aliás surgiu no Reino Unido precisamente para defender os parlamentares de um poder absoluto do rei, e também em contextos de transição democrática para defender os eleitos e candidatos de abusos de poder. Agora essa definição de imunidade não pode ser desvirtuada em função de impositivismos da lei. Estes assuntos não podem ser tratados com esta pequenez, à letra, à vírgula, como tantas vezes acontece na magistratura portuguesa. Uma situação a que, aliás, não será alheia alguma socialização entre magistrados e actores políticos, que também os inibe de actuar.
P - A nível das autarquias?
LS - São situações muito conhecidas as das relações entre juízes da comarca e autarcas. Mas não é só isso. É preciso ver que alguns destes políticos decidiram ficar-se pelo nível autárquico porque a fonte de rendimentos ilícitos é bem maior aí, sobretudo nas áreas suburbanas da grandes cidades que estão em desenvolvimento, do que num qualquer lugar no parlamento. E estes são indivíduos com peso no partido, porque levam para lá muito financiamento, e que têm os seus mecanismos a nível do poder central para fazer bloquear as coisas. São os processos que desaparecem, as fiscalizações que não se fazem, as nomeações de certos juízes...
P - Quer dizer que os partidos políticos, em termos de financiamento, estão muito dependentes dos seus autarcas, das suas autarquias?
LS - Os bastiões, sim. E até foi difícil, se calhar, para o PSD agora ter de abdicar de alguns deles, porque são fontes de financiamento para o partido.
P -É provável que hoje sejam eleitos esses candidatos que estão a braços com a justiça. Existe um divórcio entre a justiça e o estado da opinião?
LS - É a velha questão da eficácia/legalidade. Podemos ter um autarca que é muito corrupto e deixou obra. E as pessoas, que estão ainda numa fase desenvolvimentista, são capazes de optar por ele. Como se pensassem - está bem, ele fez ali umas trafulhices, mas tem embelezado a cidade, tem trazido indústria, empresas, etc. Mas o que os eleitores têm que vir a perceber é que existem custos de oportunidade em tudo isto. Por exemplo, o autarca trouxe um centro comercial, mas colocou-o em cima de terrenos que integravam a Reserva Ecológica.
O que é que isso significa? Que amanhã, quando o eleitor quiser ir passear com o filho ou neto, vai ter que ir passear com o carrinho à volta do centro comercial. Que por cada elemento que o autarca colocou devido à cor partidária ou a laços familiares, houve 20 com mais competências que ficaram de fora e que isso tem custos. E acumula uma série de injustiças que não faz bem sequer para a própria comunidade. Vê-se a curto prazo, sem se aperceber que se alimenta assim certos cancros da democracia local a longevidade no poder, a concentração de poderes, que podem levar aos abusos de poder.
P - Quem é que financia as campanhas destes candidatos que se apresentam fora dos partidos?
LS - As fontes de financiamento para um candidato apresentado por um partido ou independente são quase as mesmas. O dinheiro vem muito de contribuições agora individuais, porque as das empresas passaram a estar proibidas. Mas estão proibidas no papel, o que não significa que empresas não continuem a financiar. Existem vários meios para o fazer. Hoje as operações financeiras fazem-se com um clic em casa, com a internet ligada. Mas também ainda há muito financiamento dentro do saco de plástico, sobretudo a nível autárquico, ainda se faz muito em numerário.
P - Em troca de favores futuros?
LS - Os empresários procuram por vezes um favor de uma coisa que lhe é de direito. É o caso de um empreiteiro que esteja a realizar várias obras no concelho e que se encontra nunca situação financeira de ruptura. O Estado paga mal e paga tarde. As autarquias também. E isso pode colocar o empreiteiro numa situação muito difícil. Neste cenário a sua contribuição pode ser, por exemplo, para garantir que o primeiro pagamento, quando chegarem as verbas, seja feito para ele. É uma questão de posicionamento na lista de prioridades. Mas existem muitos outros favores que não são de direito. É o que se passa quando um empresário financia uma campanha para garantir vantagens futuras. Por exemplo, uma alteração ao Plano Director Municipal que viabilize uma determinada urbanização. A maior parte destes favores dos autarcas está ligada ao sector imobiliário, mas existem também em relações a outros segmentos que são fundamentais para as cidades como é o caso da recolha e tratamento de lixo.
P - Este financiamento em troca de favores é entendido como corrupção?
LS - Não creio que haja uma posição única da opinião pública sobre esta matéria. O financiamento, as contribuições de privados, podem constituir uma estrutura de oportunidade para a corrupção. Se alguém viola as suas obrigações para favorecer este ou aquele. Até mesmo o desenvolvimento de uma determinada política, feita dentro da lei, pode vir a favorecer um determinado jogador e aí é difícil julgar onde começa, onde acaba, essa corrupção. Mas a definição legal que temos de corrupção não inclui as contrapartidas que possam existir derivadas de financiamento ilícito. Isso é matéria que é tratada dentro do regime de financiamento dos partidos políticos. O financiamento por parte das empresas está proibido, se de facto se verificar teoricamente será punido, e agora até dá cadeia.
P - Então o que se entende por corrupção?
LS - É óbvio que a definição de corrupção vai além daquela que temos no Código Penal. As próprias leis não são monolitos, evoluem. Nós não tínhamos um crime de tráfico de influências até 1995 e passámos a ter. Porquê? Porque houve uma reacção da opinião pública em relação a esse tipo de práticas que puxou o legislador a criar uma penalização. Existe uma definição penal, legal, e depois uma definição mais ampla que vai sendo dada pela opinião pública conforme vão surgindo as ocorrências, certos factos. Há coisas que eram perfeitamente toleradas há oito, dez anos, e que hoje já não o são. Por exemplo, as questões ligadas ao financiamento político. Ninguém debatia esta questão nos finais de 70, anos 80, era uma coisa que passava ao lado.
P - Não se discutia porque essas questões não eram encaradas como um problema ou porque existiam menos casos do que agora?
LS - A maior parte dos problemas que hoje estamos a viver derivam desse período. São práticas que se foram consolidando, cristalizando e que se tornaram num "modus operandi” para os partidos, como se fossem normais. Mas as coisas mudam, às vezes também por via de exemplos que chegam de outros países. E a verdade é que, nos finais de 80, começámos a ser bombardeados com os escândalos de Mitterrand. Depois, e sobretudo, no início dos anos 90, começa a operação "mãos limpas" em Itália, que foi o pontapé de saída de toda esta reacção em relação à corrupção a nível europeu. Por outro lado também houve actores internos que tiveram um papel fundamental. É o caso do jornal "0 Independente", que tinha como propósito esse tipo de jornalismo de exposição de casos de corrupção que estivessem ligados a personalidades, altos funcionários políticos. E aí avançou-se um bocado com a investigação. Mas havia coisas que já eram conhecidas de longa data - as malas de dinheiro para os partidos, as ligações com Macau, as ligações com os empresários locais. O que não faltavam eram exemplos, mas passava-se ao lado.
P - Hoje há menos tolerância?
LS - Sim, mas também há muita hipocrisia.
P - A corrupção é um mal Inevitável das democracias?
LS -A corrupção existe, continuará a existir, está connosco. A questão é saber como controlar o fenómeno, de modo a contê-lo em patamares que não criem grandes disfuncionalidades, e insatisfação e desencanto com a democracia, como se tem verificado nos últimos anos. Tomemos um caso - o esbanjamento de dinheiro nesta campanha autárquica. O dinheiro tem de vir de algum lado e como geralmente a maior parte das pessoas pouco ou nada contribui, lá voltamos à mesma tecla : há-de vir de quem tem expectativas de contrapartidas futuras. Por muita monitorização que possa fazer uma entidade de contas, a solução do problema está, por um lado, nos partidos - é uma questão de auto-limitação; e, por outro, nas pessoas, condenando por exemplo estas campanhas festivas, demasiado dispendiosas.
P - A eficácia das medidas de controlo da corrupção não exige então mais alterações legislativas?
LS - No que respeita ao que a OCDE chama de infra-estrutura de ética, Portugal não anda longe do que têm os outros Estados membros da União Europeia. Em alguns aspectos até os ultrapassa. O problema é que a maior parte dessas medidas ou não é implementada como deve ser ou o modo como são desenhadas faz com que já venham minadas desde o princípio. Por exemplo, quando foi debatida a questão do tráfico de influências saiu uma versão bem mais limitada do que aquilo que deveria ser ou quando da adopção do último regime de financiamento, em 2003. No fundo a grande alteração foi subir os limites de despesa e introduzir um sanção que nunca nos nosso dias vamos ver ser aplicada, Ver alguém ser preso por financiamento ilegal em Portugal? Quando até as multas não são cobradas. O legislador já foi autarca ou tem amigos que já o foram ou ainda são. Estamos a falar da classe que tem poder, da classe política, que adopta medidas defensivas e, por vezes, por causa disso, as leis são publicitadas com muito alarido, mas saem já sem dentes. Foi o que se passou com a decisão de colocar sob a alçada do Tribunal Constitucional a nova entidade das Contas e Financiamento Políticos. Foi uma escolha tampão. Por outro lado, as próprias entidades com competências nesta matéria também se deviam pronunciar sobre os problemas que surgem. A Comissão Nacional de Eleições raramente se pronuncia, tem uma jurisprudências das mais medíocres que conheço. E não por falta de queixas. Pergunto-me porque é que não se cria uma grande CNE, um corpo administrativo com pessoas competentes e que não tenha por lá, na direcção, os meninos com crachá.
Publicado por josé 15:45:00
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