"Um caso nojento"


O contraste não podia ser mais chocante: de um lado, o interesse das grandes empresas, defendido pelos maiores escritórios de advogados; do outro, uma réstia de brilho no olhar de uma mulher simples, representada por dois advogados aguerridos.

Nove anos, cinco meses e dezanove dias depois da morte de duas crianças, durante as obras da Ponte Vasco da Gama, os responsáveis da Lusoponte e da Novaponte, que se sentaram no banco dos réus, no Tribunal da Boa Hora, conseguiram sorrir.

Uns passos atrás, a mãe de Conceição e Gregória Semedo, sentada ao lado de Fernando Ká, presidente da Associação Guineense de Solidariedade, não conseguiu esconder um esgar de revolta.

A última audiência começou com o atraso de mais de uma hora de Ana Peres, a juíza que presidiu ao colectivo. Foram precisas ainda mais de duas horas para se saber que um antigo administrador da Lusoponte, um director de projecto, cinco engenheiros, um director de segurança e um técnico de construção civil tinham sido absolvidos de terem ignorado as mais elementares regras de segurança e de prudência.

Poucos minutos depois, ficou-se a saber, também, que a indemnização à mãe das vítimas tinha sido fixada em 350 mil euros. Terminava, assim, um dos mais longos processos judiciais de todos os tempos, cujo acórdão deveria passar a ser um case study em todas as Universidades de Direito.

O tribunal absolveu todos os arguidos, mas considerou que foram ignorados os perigos relativos à presença de um estaleiro montado paredes meias com um bairro com centenas de imigrantes africanos.

Com base num depoimento em audiência, de um dos três elementos da comissão de inquérito independente, cujas conclusões arrasam o consórcio Lusoponte/Novaponte, Ana Peres fundamentou uma decisão, que, felizmente, deverá ser reavaliada em sede própria, no Tribunal da Relação de Lisboa. Mas este caso não pode ficar por aqui.

Um julgamento que começou sete anos e quatro meses depois de duas mortes e que se arrastou durante 770 dias tem de ser investigado. Certamente, não é por acaso que Gracinda Barreiros, a advogada que representou a mãe das vítimas, recordou que o «tempo mata muita coisa».

O processo relativo à morte de duas crianças, durante as obras da Ponte Vasco da Gama, vai ficar nos anais da história como um exemplo da vergonha a que chegou o sistema judicial.

Rui Costa Pinto

Publicado por Manuel 19:27:00  

2 Comments:

  1. josé said...
    Isto só é chocante porque o processo foi mediatizado qb e as pessoas lembram-se bem do assunto e os media estão presentes para dar as novas.

    O que espanta, é o espanto dos media perante estes atrasos endémicos do sistema judicial.

    COnviria, conforme sugere o articulista da Visão, ver o processo com olhos de ver e reparar na "marcha do processo".
    De certeza que está lá tudo o que funciona mal na justiça portuguesa em termos estritamente processuais.
    Mas falta algo muito mais importante e que não transparece em qualquer processo: a audiência e a dinâmica que se estabelece entre quem acusa; quem defende e quem decide.
    Esta dinâmica, estou em crer que é muito mal entendida pelo público em geral e não devia.

    Lembram-se do caso da ponde de Entre-os-Rios?!
    Aí está outro assunto que daqui a meses ( ou anos...) vai dar que falar precisamente pelos mesmo motivos.
    Para os juizes que julgam em tribunais portugueses, há muita dificuldade em conseguirem conjugar a lei penal substantiva, com a processual e articular ambas com a produção da prova e finalmente com a decisão de mérito sobre o assunto e a realidade material das coisas, a chamada Verdade material.

    Este assunto é que se torna dramático e como tem variantes de alguma forma complexas, tende a ser fonte das maiores perplexidades, como esta que agora foi tornada pública.
    O descrédito da justiça passa mais por estas coisas que por outros motivos e dá a impressão que os tribunais são, em certos casos, perfeitamente inúteis, tão grande é a previsibilidade das suas decisões- seja na primeira ou na última instância.
    Os tribunais, é triste dizê-lo, são cada vez mais fortes com os fracos e fracos com os fortes. O motivo porque isto acontece, é complexo e traz à colação tudo o que está mal no sistema de justiça:desde as leis penais até à formação dos magistrados e ás condições de trabalho. Tudo deveria ser posto em causa, mas fala-se apenas nas férias...e este ministro da Justiça obviamente, não é o ministro que o povo português precisa, nem a Justiça, aliás. Inverteu-se por isso o que aconteceu no passado: agora pode dizer-se que este não é um ministro para a Justiça.
    Anónimo said...
    Ó zé,

    disseram-me que os advogados dos areeiros de Entre - os - rios são da sociedade do Judice...

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