Os novos índios da Meia Praia
sexta-feira, agosto 19, 2005
«Aldeia da Meia Praia
Ali mesmo ao pé de Lagos
Vou fazer-te uma cantiga
Da melhor que sei e faço
De Monte Gordo vieram
Alguns por seu próprio pé
Um chegou de bicicleta
Outro foi de marcha à ré
Quando os teus olhos tropeçam
No voo de uma gaivota
Em vez de peixe vê peças de oiro
Caindo na lota
Quem aqui vier morar
Não traga mesa nem cama
Com sete palmos de terra
Se constrói uma cabana
Tu trabalhas todo o ano
Na lota deixam-te nudo
Chupam-te até ao tutano
Levam-te o couro cabeludo
Quem dera que a gente tenha
De Agostinho a valentia
Para alimentar a sanha
De esganar a burguesia
Adeus disse a Monte Gordo
Nada o prende ao mal passado
Mas nada o prende ao presente
Se só ele é o enganado
Oito mil horas contadas
Laboraram a preceito
Até que veio o primeiro
Documento autenticado
Eram mulheres e crianças
Cada um com o seu tijolo
Isto aqui era uma orquestra
quem diz o contrario é tolo
E se a má língua não cessa
Eu daqui vivo não saia
Pois nada apaga a nobreza
Dos índios da Meia-Praia
Foi sempre tua figura
Tubarão de mil aparas
Deixas tudo à dependura
Quando na presa reparas
Das eleições acabadas
Do resultado previsto
Saiu o que tendes visto
Muitas obras embargadas
Mas não por vontade própria
Porque a luta continua
Pois é dele a sua história
E o povo saiu à rua
Mandadores de alta finança
Fazem tudo andar para trás
Dizem que o mundo só anda
Tendo à frente um capataz
Eram mulheres e crianças
Cada um com o seu tijolo
Isto aqui era uma orquestra
Que diz o contrário é tolo
E toca de papelada
No vaivém dos ministérios
Mas hão-de fugir aos berros
Inda a banda vai na estrada»
OS ÍNDIOS DA MEIA-PRAIA, José Afonso
Décadas depois de uma gente pobre e corajosa ter servido de inspiração para Zeca Afonso, que os rotulou elogiosamente de «Índios da Meia-Praia» na linda canção que acima recordamos, os novos índios da mais bela praia do Algarve são de um cariz completamente diferente: são poderosos, não sabem respeitar o privilégio que a Natureza reservou para aquele espaço virado para Lagos, e preparam-se para destruir, por completo, o que resta do encanto e da magia de um dos locais que povoaram a minha infância.
Conheço a Meia Praia praticamente desde que me conheço. Foi lá que passei os melhores dias de Verão da minha vida. Foi lá que aprendi a apreciar a beleza de um pôr-do-sol algarvio no início de Setembro, já sem o calor agressivo de Agosto e com aquele extensíssimo areal bem mais livre dos turistas do mês crítico. Foi lá que fiz corridas intermináveis com o meu pai, que joguei futebol durante horas seguidas, aproveitando a amplitude de uma praia larga e que parecia interminável. Foi lá que me habituei a associar o som do comboio a uma ida à minha praia favorita (quem conhece a Meia Praia, sabe bem porquê). Foi lá que apreciei a mais bela vista sobre o casario branco que cobre a cidade de Lagos.
No crescimento desmesurado e irracional que afectou o Algarve nos últimos 20 anos, a zona entre Lagos e Sagres foi das poucas que foi resistindo. É certo que já há alguns anos que não é bem assim. Desde o final da década de 90, alguns «projectos turísticos de qualidade» (a maioria deles, sem qualidade nenhuma) transformaram a face da Meia Praia, bem como de outros pontos desse arco de 30/35 quilómetros que referi acima, mas, mesmo assim, quem quiser fugir da confusão de Albufeira, Portimão, Quarteira, ou Armação de Pêra, quem não procura, no Verão Algarvio, uma repetição de caras, hábitos e problemas de Lisboa e Porto do resto do ano, sabe que ainda tem algumas alternativas nessa zona mais ocidental do Barlavento.
Os sinais de alarme, é certo, já tinham sido dados. Desde 1998, ou 2000, por aí, que vinha a reparar que cada visita minha à Meia Praia era negativamente marcada por novos edifícios em construção. Bastavam uns meses, quatro ou cinco, sem ir lá p+ara notar a diferença – e sempre para pior, claro.
Há 20 anos, só havia o Hotel da Meia Praia -- então a conhecer um início de uma fase descendente, só travado pela compra de Belmiro de Azevedo à Torralta --, mais dois outros pequenos complexos, perfeitamente integrados na paisagem. E casas locais, para além, claro, das tais barracas e pré-fabricados dos «Índios» descritos pelo Zeca, mesmo ao lado da «Gaivota», um dos bares mais antigos da Meia Praia, a par do inesquecível «Bar Berlim» (que julgo que, entretanto, já desapareceu).
Mas nos últimos cinco/sete anos, foi-se anunciando o princípio do fim: primeiro foi a construção (aos soluços e sem uma correcta integração) da Marina de Lagos. Com excepção de uns apartamentos de qualidade feitos mesmo em frente à estação de comboios e à escola, tudo o resto foi trágico: prédios feios, com um enquadramento extremamente duvidoso, alguns deles com obras embargadas, por acabar. A estrada foi desviada da linha de praia, a partir de certo ponto há que fazer uma curva absurda. Ainda assim, mantive uma ligeira esperança que o bom senso imperasse e que a Meia Praia resistisse mais umas décadas com alguma réstia da qualidade dos meus tempos de infância.
Mas a tal Lei de Murphy, segundo a qual uma coisa correrá certamente mal se houver a possibilidade de vir a correr mal, vai mesmo ser aplicada para a Meia Praia. Pensando bem, se quase tudo corre mal neste país, por que haveria isto de ser excepção?
A manchete desta quinta-feira do DN diz tudo: em dez anos, a população da Meia Praia será duplicada. Estão previstos seis novos hotéis de quatro estrelas e mais o diabo a quatro que não me lembro de cor porque não tenho o jornal à frente. Mas nem interessam os pormenores, porque o essencial é isto: vão dar cabo daquilo na próxima década, pronto.
Mais uma vez, a ânsia pelo negócio e pelo dinheiro fez com que construtores, autarcas e restantes poderes envolvidos pudessem arrasar um dos poucos paraísos que restavam. Tudo em nome do «desenvolvimento local» e da «qualidade urbanística», claro.
As palavras, citadas no DN, do presidente da Câmara de Lagos, Júlio Barroso, tiram todas as dúvidas e ilusões a esse respeito: «Não podemos comprometer o desenvolvimento local com fundamentalismos ambientais». Foi mais ou menos isto. Dá para perceber no que vai dar, não dá?
Publicado por André 04:23:00
3 Comments:
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Rui Carmo
Desviei-me do assunto da Meia Praia, mas espero que não seja tão mau como pensa. E também que a população da zona saiba dar aos autarcas o que merecem nas urnas (qualquer que seja a cor política deles)
Manuel
Desviei-me do assunto da Meia Praia, mas espero que não seja tão mau como pensa. E também que a população da zona saiba dar aos autarcas o que merecem nas urnas (qualquer que seja a cor política deles)
Manuel