Cunhal revisitado e novo desafio a Vitorino

Estive fora do país uns dias largos, mas não resisto a comentar dois temas que marcaram a actualidade durante a minha ausência:

1. A morte de Álvaro Cunhal relançou a discussão sobre que herança histórica e política ele terá deixado. A admiração intelectual que cheguei a nutrir pela figura não esconde aquilo que há de mais importante a destacar: Cunhal lutou, durante mais de meio século, por uma ideia errada. Profunda e provadamente errada.

E uma coisa é certa: se é verdade que ele era um homem superiormente culto e inteligente, conhecedor da história e actor directo em grandes acontecimentos políticos; se é verdade que conhecia por dentro, e com ligações estreitas, a realidade do Bloco de Leste; então não vale a pena estar com rodeios: Cunhal foi cúmplice dos crimes de Estaline e, por ele, Gorbachov nunca teria aberto o caminho para a Perestroika e a Glasnost.

Por ele, ainda hoje Berlim era uma cidade dividida por um muro criminoso; ainda hoje milhões de seres humanos continuariam oprimidos nos seus direitos; por ele, o século ainda não teria mudado.

Politicamente, coloco-me numa área que se poderia definir hoje como de centro-esquerda. Sou um moderado, acredito na democracia parlamentar e representativa e tenho muitas reservas quando me apresentam soluções radicais. Irrita-me a cegueira da análise social que os comunistas continuam a apresentar e irrita-me, sobretudo, a sua pretensão de que são eles os representantes «do povo». Se assim fosse, por que raio, afinal, nunca o PCP passou dos 16 por cento numa eleição livre em Portugal?

O culpado da não renovação do PCP chamava-se, obviamente, Álvaro Cunhal. Por arrastamento, ao não permitir a modernização de um partido que poderia ter o seu espaço próprio no tablado tão peculiar como é o nosso, criou uma situação de vazio à esquerda do PS. Entre o anacronismo do PCP e os zigue-zagues do PS, alguns caíram na demagogia chique do Bloco de Esquerda, outro mantiveram-se, embora com reservas de cinismo, no Partido Socialista, mas muitos outros vão caindo na abstenção pontual e, mais grave do que isso, no desinteresse e na desilusão.

E, depois, há o lado empírico: quanto mais leio e, sobretudo, quanto mais viajo a países que experimentaram o domínio comunista, pior ideia tenho do projecto, do ideal e de quem os tentou pôr em prática.

A história, de facto, nunca dará razão a Cunhal. Felizmente, ele não ganhou. Felizmente, Portugal, entre Abril de 1974 e Novembro de 1975, viu-se livre de duas ditaduras de sinal contrário. Se a história tivesse sido diferente, Portugal seria hoje, certamente, um país pior.

2. Enquanto isso, a Esquerda, e mais concretamente o PS, continuam totalmente às aranhas em relação às Presidenciais. Já desafiei aqui, nesta Loja, por duas vezes, António Vitorino a avançar. Na altura, expus as razões pelas quais entendia que Vitorino é a única solução aceitável, no actual cenário, para a Esquerda. Desde aí, essas razões saíram reforçadas, com a escolha de António Guterres para o ACNUR.

Vitorino já disse e redisse que não está disponível. Muito bem. Ninguém o pode obrigar. Mas começa a ser altura de o PS -- o PS de Sócrates, Coelho e Vitorino --, perceber que tem, no mínimo, de disfarçar a ideia de que a coabitação com Cavaco até seria um mal menor. Porque isso é contribuir ainda mais para o descrédito em que está a cair a classe política.

Sampaio foi, na globalidade, um bom Presidente. Mas ganhou legitimidade depois da disputa acesa que teve com Cavaco em 1996. Como seria uma Presidência Sampaio com duas eleições sem opositor à altura? O duelo Soares-Freitas ainda hoje é recordado. Já foi há 20 anos. Soares ganhou de forma inesperada e deixou uma marca tão forte em Belém que, a partir daí, será difícil não lhe seguir o exemplo de «Presidente de todos os portugueses», capaz de ouvir as pessoas e de fazer «Presidências Abertas».

Cavaco tem qualidades indiscutíveis como professor de Finanças, mesmo como ex-primeiro-ministro (embora tenha beneficiado de condições muito favoráveis para a governação). Mas insisto: não tem a cultura, nem a dimensão internacional para ser um Presidente à altura de Soares ou Sampaio.

Arrisca-se a ter um belo passeio até Belém se António Vitorino não mudar de ideias. Manuel Alegre não roubaria um único voto ao centro político, muito menos à Direita. O mesmo se aplicaria a Ferro Rodrigues ou Almeida Santos.

António Vitorino, perante um cenário bipolarizado de uma luta com Cavaco, faria o pleno da Esquerda, ganharia alguns votos na Direita que não gosta de Cavaco e o eleitorado que iria decidir a eleição seria os cerca de um milhão e muitos milhares de eleitores que, nas últimas eleições, mudaram o seu sentido de voto do PSD para o PS e da abstenção para o PS.

Se fosse hoje, Cavaco talvez ganhasse por uns 55-45. Mas uma eleição presidencial tem factores que só na altura se revelam. Vitorino é brilhante do ponto de vista intelectual. Tem um currículo pessoal invejável e um dom oratório quase imbatível. Tem, de facto, um problema de imagem de estadista, por duas razões: uma é física (a sua baixíssima estatura não se coaduna com a imagem que os portugueses têm de um Presidente), embora esse factor não costume ser decisivo em eleições em Portugal; a outra, bem mais substancial, tem a ver com o facto de nunca ter sido líder partidário ou primeiro-ministro.

Nunca foi só porque não quis. Por três vezes, disse não aos apelos do PS para ascender à liderança. Na última recusa, permitiu a candidatura de José Sócrates (que, entretanto, reconheceu que se Vitorino tivesse avançado o apoiaria no segundo a seguir).

Portanto, Vitorino só não é hoje primeiro-ministro porque não quis. Como não é ministro dos Negócios Estrangeiros porque não quis. Como não foi presidente da Comissão Europeia porque não conseguiu (aí, tentou e não foi pouco). A história política de António Vitorino está cheia de ‘nãos’. Está na altura de dizer ‘sim’. É, volto a dizê-lo, a hora da verdade no percurso do mais brilhante político português da geração que está agora no poder.

Portugal já perdeu demasiadas primeiras linhas nos últimos anos. Não estamos em condições de perder mais. Nem que seja para garantir um duelo presidencial condigno fazendo assim um serviço ao país — é imperioso, não vejo outro termo, que António Vitorino seja candidato à Presidência da República.

Se o não fizer… repito a frase com que terminei um post aqui há alguns meses: se o não fizer, ficará lembrado como o político mais brilhante, mas também o mais cobarde da sua geração.

Publicado por André 05:08:00  

10 Comments:

  1. Olindo Iglesias said...
    André,

    O artigo até estava a ir bem, mas estragou tudo quando disse que "de uma forma geral o Sampaio foi um bom Presidente". Isto, obviamente, só pode ter sido um lamentável erro ou uma piada de péssimo gosto.

    Depois vem esta parte que achei deliciosa que são as comparações entre Cavaco e Vitornio onde se percebe perfeitamente que o caríssimo André é faccioso, já decidiu o seu sentido de voto e tenta decidir o nosso. Por outras palavras, não foi uma análise equilibrada e justa entre os dois "candidatos".
    Anónimo said...
    Bolas! O Vitorino desafiado aqui por duas vezes, mesmo assim não aceitou?!
    Que coisa estranha!

    Vasco
    Anónimo said...
    "O artigo até estava a ir bem, mas estragou tudo quando disse que "de uma forma geral o Sampaio foi um bom Presidente". Isto, obviamente, só pode ter sido um lamentável erro ou uma piada de péssimo gosto."

    Faço minhas estas palavras.

    A cultura dos líderes é algo sobrevalorizado, por exemplo Mussolini seria provávelmente o mais culto de todos na Segunda Guerra Mundial, sabia 4 linguas , director do "Avante" e de outras publicações antes de formar o Partido Fascista, escreveu, criticou e também foi o mais desastrado e incompetente de todos eles.

    lucklucky
    Anónimo said...
    Para todos:

    Jorge Sampaio anunciou, solenemente, que em Janeiro de 2006 se vai deslocalizar do Palácio de Belém.

    Curiosamente, descobri uma coincidência: em Madrid existe o Palácio do Pardo e em Lisboa existe o Palácio do parvo.

    Também é o único PR da EU que inaugura centros comerciais (Colombo) depois de como P da Câmara o ter embargado anos...
    O Belo Azedo é que sabe...
    Anónimo said...
    Não deixe que a Verdade estrague uma boa história.

    É o subtítulo que Vexa usa.
    Fernando Martins said...
    A que ponto chegou a III República e as candidaturas à Presidência: das direitas um arremedo de Salazar, mas sem a cultura do anterior, e das Esquerdas os candidatos do Folklore do costume (um do PCP-ML, outro do MRPP e outro do Berloque), para além do D. Sebastião do PS, que nunca mais vê o nevoeiro...
    Será que se nos abstivermos (e os recebermos com m... às mão-cheias, parafraseando o morto da semana) voltamos à Monarquia...?


    Real, real, por El-Rei de Portugal!
    Anónimo said...
    Não revela, grande inteligencia, dizer que Sampaio, fez coisas certas! foi o presidente mais bronco da temporada, aliaz,como politico, anteriormente, foi um nojo...........
    Quanto ao Vitorino chinoca, que negociava em terrenoscom o Saleiro,
    não passa de um imbecil, que veio à televisão desvalorizar a borrada do Victor Constancio, no relatorio que pomposamente apresemtou........
    Vitorino, só è a esperança do PS, porque com voz tão forta, não existe por ali.
    A idiotice do Vitorino, mede-se pelas entrevistas que dá à judite, que parece que está a dar as ordens à sopeira! isto è que è um grande politico?
    Anónimo said...
    O dr. António Victorino devia sabê-lo foi (é?) um peão de brega do dr. Almeida Santos.
    Só por isso tem imensos problemas que a conhecerem-se ....
    Anónimo said...
    Mesmo depois de morto o fantasma de Álvaro Cunhal continua a assombrar muita. Por isso têm que estar sempre a exorcizá-lo.
    José manuel
    Anónimo said...
    Caro André
    Confundir um homem integro ( Cavaco ) com um corruptor ( Mário Soares ) e um «banana» ( Sampaio) é preciso ser muito sectário ou não perceber nada da política após o 25 Abril !

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