Abordagem de senso comum

O simples facto de se admitir que uma lei penal – a que criminaliza a interrupção voluntária da gravidez (IGV) – pode ser alterada por referendo, é mais do que razão para considerar que essa lei não tem a dignidade penal que o código lhe atribui. Ora, o direito penal visa proteger um conjunto de bens considerados fundamentais num quadro civilizacional e se, acerca desses Bens, se aceita, como acontece, a discussão pública e a sua relatividade, posso concluir que os mesmos não merecem que lhes seja conferida essa dignidade, pois se efectivamente fossem fundamentais para a sociedade estariam, quanto muito, a ser discutidos num quadro semelhante ao de guerra civil. Entendo pois que se estão a ferir os grandes princípios do Direito ao se estabelecer uma pena de prisão para uma prática acerca da qual não há unanimidade dentro da sociedade, bem pelo contrário. A este propósito, recordo-me que nos tribunais de Júri dos EUA as sentenças condenatórias só são efectivas se votadas por todos os seus membros, não havendo qualquer margem de manobra para dúvidas.

Neste quadro, mais do que esperar pelo legislador ou pela decisão popular, não se poderá (???) perguntar às magistraturas se não poderiam, eventualmente, fazer uma interpretação ab-rogante da actual norma, tendo em consideração os limites do que está em discussão pública, declarando que a mesma não se aplica, contribuindo assim para a dignidade do ramo do direito que aplicam, já que, no que respeita à IVG em debate, há muito que a perdeu, fazendo com que, neste particular, a Justiça que se aplica não o seja verdadeiramente, mas cada vez mais um ritual de forma, com cada vez com menos aceitação colectiva.

Com isto, entendo que de forma alguma se esgotaria a discussão em torno da IVG, faltando ainda aquela sobre se o Serviço Nacional de Saúde a deve pagar, atendendo: em que este se debate com a escassez de meios; a que a gravidez não é uma patologia, que na grande maioria dos casos resulta de acto sexual consentido; também à panóplia de métodos anticoncepcionais gratuitos que já estão, e bem, preventivamente ao dispor da população.
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Publicado por contra-baixo 14:55:00  

17 Comments:

  1. zazie said...
    Não se trata de alterar nenhuma lei. A lei mantinha-se. O que mudava era apenas as condições - neste caso o nº de semanas e o facto de não depender apenas de violação ou doença já catalogada. A partir daqui há condenação e prisão na mesma.

    E suponho que isto não é claro pelos motivos que tu avanças. Na verdade, o dito debate nunca foi apresentado como uma questão de prazo mas como um direito a conquistar
    Anónimo said...
    Como?!...
    zazie said...
    esse como é para mim ou para p Contrabaixo?

    eheheh também não percebi a ponta de um corno deste poste ":O)))

    então lá porque não se sabe depois do último referendo se os tugas são a favor ou contra não ir preso quem aborta até prazo legal quer dizer que a lei não é válida??!?!

    assim como assim também não se saberia se o único detalhe era o bébé estar cá fora ":O.
    contra-baixo said...
    Zazie:

    A posta não está assim tão mal escrita. Faz um pequeno esforço e verás que chegas lá.
    zazie said...
    Contrabaixo, não me referi ao estilo que eu às vezes até escrevo com os pés. Mas ao assunto. Simplificando, não percebi o que é que querias dizer.

    Estive a esforçar-me um bocadinho agora mesmo e continuo tosca...

    Então vá lá:

    1- a lei não tem dignidade pública porque se admite que às consequências da sua infracção se altere alguns detalhes (motivo e prazo).

    2- Comparas esta alteração com a defesa de bens- suponho vida- e daí saltas para a guerra civil. Esta passagem é demagógica e só seria válida se a mudança de lei implicasse a admissão do infanticídio. E ainda aí a guerra civil continuava a não fazer sentido.

    3- Avanças novamente com esta ideia
    “ Entendo pois que se estão a ferir os grandes princípios do Direito ao se estabelecer uma pena de prisão para uma prática acerca da qual não há unanimidade”

    para comparares com EUA e condenações de tribunal numa associação disparatada porque:

    a) repetindo- aquilo acerca do que não há unanimidade não é a prática em absoluto mas a despenalização relativa e com limite traçado por lei. A partir desse prazo a lei mantem-se- prisão.

    b) A decisão de um juiz não está subordinada ao imaginário colectivo de uma sociedade. Ele cumpre a lei e não precisa de aprovação em tribunal do resto da população. Por isso é tão válida como o dito exemplo que deste.

    c) Não imagino como poderiam os juristas mudar a lei sem ela ser mudada. È simples. Se dizes que a sociedade não é unânime e te baseias em abstracto na totalidade da população, então nenhuma lei era válida e não havia tribunais e muito menos legislação- havia julgamento popular.

    4 O último ponto é uma derivação que nada tem a ver com a aplicação da lei.



    E pronto. Esforcei-me um bocadinho. Se quiseres fazer o mesmo e mostrar-me em que pontos estou errada também agradecia.
    “;O)
    contra-baixo said...
    Zazie:

    Começando pelo fim:

    O último parágrafo é de facto uma derivação, puxei do assunto para exemplificar que o tema da IVG não se esgota na sua descriminalização.

    Sobre a questão de fundo, entendi (e entendo) que as normas de direito penal só fazem sentido para proteger/defender bens consensuais/fundamentais dentro de uma sociedade. E para isso não é preciso adoptar nenhum princípio de criminologia radical.

    A questão da IVG até às 10 semanas não é consensual. Pior (ou melhor) a sociedade permite-se a discuti-la, a votá-la, aceitando, por isso mesmo, qualquer decisão. Assim sendo, entendo que umas lei penal desta natureza acaba por ser violenta e, se não te importares com a minha opção, contra natura e devia ser considerada não escrita.

    Esclarecendo:

    "A guerra civil" é somente para reforçar que há coisas e valores que não são referendáveis, o infanticídio, para mim, nunca o seria. Tão pouco por acção democrática. Dizendo de outra forma, teriam de me o impor pelas armas, por muito legítima que fosse a maioria.

    A referência à decisões de Júri foi apenas para reforçar a ideia de "pena" em abstracto ou medida da pena em concreto tem que ser unanimemente consensual, caso contrário não há decisão. Não vejo o que é que este ponto de vista tem de disparatado. Quanto muito poderá ser ousado por estender a ideia aos princípios e não apenas aos factos.

    Sobre os juristas que mudam a lei sem ela ser mudada.

    Aprende quem anda pelas FD que mesmo para quem afirmava (estou a citar de cor e sem dicionário ao lado):

    Le pouvoir judiciaire c'est un pouvoir de tout façon nulle. Le messieur le juge c'est seulement la bouche qui que prononce les paroles de la loi,

    - A lei pode e deve ser objecto de interpretação.
    - Não fui eu quem inventou a "interpretação ab-rogante"(googla as palavras e descobrirás um artigo do prof. Oliveira Ascensão que a explica muito bem).
    - Interpretação é o pão nosso de cada dia nos nossos tribunais.

    Esclarecida?

    Espero é que na próxima digas que não concordas em vez de dizeres que não percebes.
    contra-baixo said...
    ...se reparaste disse que a IVG não é consensual.
    Se calhar a nossa diferença é que quanto algo não é consensual para mim não deve ser imposto e muito menos com a ameaça de cadeia.
    E na discussão da IVG quem está a querer impor alguma coisa a alguém são os PRO VIDA que querem impor uma pena de cadeia para quem aborta. Do lado dos PRO LIFE ainda não vi ninguém a querer impor o aborto a quem não quer abortar.
    zazie said...
    Contrabaixo,

    Começando pelo fim. Disse que não percebi porque não tinha percebido grande parte. Se tivesse percebido tudo tinha discordado. Ainda continuo a não perceber grande parte e por isso insisto que o que dizes não me parece ser coerente.

    Nem sei bem em que é que podia ou não podia concordar neste aspecto...

    Voltando à questão da lei e do consenso social.
    1- o que dizes não me parece fazer sentido porque invertes os termos entre direito natural e direito positivo. È como se não fosse a Antígona que se recusasse a cumprir a nova lei de Creonte seguindo os valores superiores da sociedade mas o Creonte que decidisse não seguir a velha em lei em nome de outros princípios fora da lei natural.

    Por outras palavras: a lei escrita também acaba por se inserir na tradição. Não há lei fora dela. Aliás, existe apenas um único momento em que isso é possível acontecer- em momentos de revolução quando temporariamente a lei é suspensa.
    Passada essa suspensão e voltando a instalar-se nova ordem, ainda que de cariz inverso ao anterior é logo necessário criarem-se novas leis.
    Por isso, neste caso, o teu argumento do desajustamento só pode ser sancionado por alteração legal e nunca por efeito da sua suspensão.
    Quanto à interpretação também tem limites e os limites são isso mesmo- locais de paragem para lá dos quais se fica fora do enquadramento legal. Neste caso é o que acontece. Sempre que “se fecha os olhos” suspende-se a lei, e com isso não se pode criar nova ordem nem sequer traduzir em nova prática.

    Agora o segundo ponto que afinal não passa de uma continuação deste que tu não explicas:

    Os pró-vida. Ou pró c****** não contam. Como não conta em termos legal nenhum lobby ou grupo social porque não traduz nada. Nem lei positiva nem direito natural.

    Um referendo, por exemplo, não é o produto do somatório dos pró-lobbye A contra pró lobby B porque a população não se divide em lobbys (graças a Deus).
    Portanto para um juiz, para um tribunal, para um governo ou para um país tanto faz que existam como não existam. Em termos de lei contam zero.

    Ou melhor, deveriam contar em termos absolutos e até em relação à dita tradição ou representação de “pensamento colectivo”.
    O azar é que a democracia contem uma série de buracos e escapatórias que de certo modo até anulam o seu sentido.

    Tu não deverias precisar de recorrer ao exemplo do lobby mas se recorreste por alguam razão foi. E foi porque tanto tu como eu sabemos que o tal “pensamento colectivo” da sociedade cada vez começa a ficar mais espartilhado em “traduções” de lobbys que depois se traduzem em agendas partidárias e que daí a entrarem em mudanças sociais por via de alteração de partidos de poder vai um passo.

    E é este o aspecto que me parece cada vez mais perverso nestas ditas questões “fracturantes”. Até porque contêm uma enorme falácia. Não existem para resolver problemas sociais mas para se alimentarem partidariamente deles. No dia em que um deste problemas for resolvido é mais uma causa que se perde.


    Porque nem os pró-vida querem ou podem impor o que já está imposto por tradição de lei, nem os contra podem tirar o que já está imposto pela mesma razãO.
    Uns apenas poderão levantar em abstracto e em absoluto um papão que é relativo e os outros apenas poderão continuar a acenar com um direito que inverso sem prazo e sem limites que também nunca poderá ser traduzido em medida legal
    Por isso se alimentam reciprocamente. Em torno do mesmo nevoeiro, em torno das mesmas mensagens vagas e dos mesmos apelos ou condenações abstractas.

    E é por isto que o bacano do Memória Inventada dizia no outro dia que a esquerda ainda perde esta batalha.
    E perde. Porque para a ganhar tinha de aceitar a lei e os termos legais que já estão instituídos e apenas lhe diminuir tempo ou alterar condições.
    A menos que fizesse uma revolução.V
    Como o não pode fazer aposto que esta história vai continuar a servir de cavalo de batalha para engrossar fileiras de agit prop.

    P.S.
    quanto à minha posição sobre o assunto já a exprimi noutros locais. Aqui mandei umas indirectas ao Nino que creio que chegam para se perceber o que penso desta história.
    zazie said...
    Sorry que escrevi isto de jacto e ficou cheio de gralhas
    zazie said...
    O post do Memória é este: http://memoria-inventada.weblog.com.pt/arquivo/2005_04.html#189844

    Extremamente inteligente e cínico q.b com aquela pequena subtileza do “Se a resposta é afirmativa, temos sido ligeiramente estúpidos” que até eu deixei passar.

    Vale a pena ler o primeiro texto dele. Quanto a mim até agora nada de melhor foi escrito sobre o assunto. O tema teve desenvolvimento mais científico no Conta Natura.
    zazie said...
    Olhar, fui agora ao Timshel e por coincidência encontrei lá um texto que se aplica que nem uma luva a esta problemática:



    há sessenta anos atrás (http://timoteoshel.blogspot.com/)
    contra-baixo said...
    Zazie:

    Perde 5 minutinhos a ler este artigo que depois falamos:

    http://www.faculdademarista.com.br/argumentum/volume1/Ascensao.htm
    zazie said...
    Mazuquéquisto tem a ver com o caso???

    Direito alternativo para alternar neste caso com o quê?

    Mas isto agora é assim? Vai-se buscar umas tiradas genéricas e depois julga-se que o blá.blá serve para dizer nim?

    Vamos lá a ser claros. O Contrabaixo disse que são os anormais dos pró-vida ( a responsabilidade do termo anormal é minha) que estão a querer impor uma lei!

    E isso é falso porque a lei existe há muito ainda os anormais não tinham nascido.

    Depois alega que uma lei não deve ser cumprida porque a sociedade tem opiniões diferentes ou porque não há consenso acerca dela.
    Isto é disparate porque o que a sociedade pensa não conta para suspender lei a não ser por mudança da mesma e mesmo que contasse a única coisa legal que se sabe vem do último referendo que deu maioria ao não.

    De resto o direito alternativo aqui não se pode aplicar porque para isso era preciso que apenas existisse um leve cambiante nos casos passíveis de serem despenalizados (como em Espanha) e tal não invalida os prazos da dita permissão.
    Por último disse aí algo que é muito mais perigoso e que não passa de uma falácia: “ a lei permite muitas interpretações”. Se permite é porque é uma má lei. Uma boa lei deve ser simples e clara e não que valha para o que diz e para o seu contrário.
    contra-baixo said...
    Zazie:

    - Os PRO VIDA não querem impor uma lei. Os PRO VIDA querem é impor uma pena para a qual não existe consenso na sociedade. As leis são feitas por homens que erram, não são verdades absolutas, ao intérprete cabe-lhe, TAMBÉM, medir a sua justeza. Pergunto-te tb porque é que os PRO VIDA não chamam criminosos aos defensores da IGV até às 10 semanas ou os acusam de estar a defender um crime hediondo. Em minha opinião é porque os próprios não acham que seja tão crime assim, caso contrário, e desculpa a vulgaridade, defenderiam a sua ideia com armas e não com votos. A tal guerra civil, do you understand?

    .- Fui buscar o artigo do Ascensão, para que percebesses o que é a interpretação ab-rogante e porque é que ela existe.
    zazie said...
    Contrabaixo,

    Não respondeste a grande parte das questões que deixei mas obrigada que isto até Sá trabalho e ninguém nos paga “:O))

    Se quiseres voltar ao que eu disse ok, se queres passar à frente é igual.

    Eu respondo de novo porque me parece que não consigo fazer-me entender:

    1- Os pró raio que os parta querem o que querem mas não podem querer impor nada que não esteja já imposto por lei! O raio da prisão para as mulheres que abortam (com desculpa para os gajos que dão à sola e as deixam à sua sorte- e este é o caso mais forte que para mim chega para votar num sim se alguém mo facultar).
    2- A lei existe. Para não ser assim tem de se mudar. Não há suspensão de lei fora de revoluções. O poder dos pró nesta matéria e do ponto de vista legal vale tanto com os outros- como BEs e variantes do sim ou do “na minha barriga mando eu”. Não conta! Só conta psicologicamente em quem segue estes tribalismos de lobbies (uma minoria da população diga-se).
    3- O que importa tudo isso?!? porque raio insistes em confundir a luta tribal desses c******s todos com a decisão judicial?

    Eu também não curto anormalidades BEs mas se for preciso até sou capaz de votar numa proposta deles por muita demagogia que contenha. Como sou capaz de apoiar um gajo para a câmara apesar deles também o recomendarem (ainda não sei e tenho de ver isso melhor- o principal aval vem do meu querido Ribeiro Telles)

    Também sou capaz de pensar que em termos gerais tudo isto pode implicar mais uma perca de valores e mais um empurrão para essa terra de ninguém para onde o mundo caminha. Mas penso por mim e ponho na balança as coisas. E o fiel vai sempre para o lado das rapariguinhas abandonadas pelos bons dos gajos que nem sabiam que elas estavam grávidas, nem sabiam que abortaram, nem viram, nem quiseram ver, nem as famílias contribuíram para o facto mas quando toca à consciência são capazes de se lembrar de Auswitz. E nunca vão de cana pelo crime. Porque se for crime eles não entram mas se for para julgar têm todo o direito.

    É isto que penso. Mas sei que o que penso não se traduz em lei! E se ela não mudar não deve ser suspensa à custa do que me vai na alma. Porque vivemos num estado de direito. E um estado de direito não suspende a lei por pressões de lobbies.

    Entendido?

    P.S.

    Não há guerra civil sem duas trincheiras. A trincheira do politicamente correcto não é mais limpa. Apenas tem mais jeito para fazer render o peixe.
    O que me inquieta é que as pessoas politizadas já conseguem pensar em nada para além dos lobbies, dos combates tribais, da partidarite dos julgamentos de intenção, etc, etc, etc... basta ir ali a cima ao poste do Ivo Ferreira para se ver como anda sempre tanta suspeição ao barulho...
    contra-baixo said...
    Zazie:

    Esta conversa está a ficar cheia de entulho tipo BEs Pros,Contras, lobbies etc etc.
    O que eu tinha a dizer sobre o assunto, está dito na posta, mais do que isto é repetir-me.
    Provavelmente não estamos no mesmo comprimento de onda. Como diziam os RAF(s) não se explica o certo às pessoas erradas (válido para qualquer um de nós).
    Aproveito é para te agradecer o esforço de atenção.
    bjos.
    zazie said...
    Então bjs pra ti também que afinal a coisa está mesmo muito confusa e tens de admitir que a culpa não é só minha.

    Quem falou em pró vida e argumenta que a lei deve ser suspensa porque estes querem que seja cumprida foste tu.

    Eu digo apenas isto:
    1- ou fazem novo referendo
    2- ou mudam a lei sem referendo

    O que não se pode é ficar no nem sim nem sopas e contar com o jeitinho da praxe à espera que ela vá mudando sem ser mudada.

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