"A posse e o perfil..."

e mais outro postal de Olho Crítico...


... ou o perfil e a posse.

Para se ocupar um lugar, um cargo ou um tacho, há virtudes que se devem ter. São traços de carácter, qualidades próprias que distinguem o escolhido de todos os outros concorrentes ao tacho, ao cargo ou ao lugar.

A questão é que, não se prescindindo do "perfil", não poucas vezes ninguém vê onde estão os tais traços que separam o ocupante do cargo ou lugar de dezenas de milhares de outros com perfil, ou qualidades para os mesmos. Inquirimo-nos das razões e, não as encontrando, confabulamos e somos profundamente injustos com os escolhidos, pois que, se o foram, mais virtudes têm que todos os outros. Quem escolhe é que sabe e nós temos de crer no perfil de quem escolhe e manda. Sempre foi assim e não há razão para deixar de o ser.

Já se não fala de "tachos" porque isso é terminologia culinária e não exige perfil, antes padrinhos de baptismo ou casamento, seja ele de que instituição for, laica, ou religiosa.

De modo que, quando o sociólogo António Barreto falava1 de "...Os mais baixos exercícios que os homens conhecem..." dos que "...se punham nas pontas dos pés. Os que lambiam as botas. Os que dobravam a espinha. Os que davam graxa...", estava, lamentavelmente, a esquecer que o perfil é para ser ajuizado por quem manda, por quem tem o poder vindo de Deus e que, na conjuntura, a avaliação do perfil não é para ser discutida. Exerce-se e pronto. Quem não é escolhido não tem perfil. Se o quer ter, que dê graxa, que se curve, que lamba botas. Fica na lista.

O grande equívoco de António Barreto provém do facto de não ser jurista. Ignora, o que não é perdoável, o Código Civil, onde o legislador, sempre inspirado e com toda a razão, define o que é a "posse". Ter "posse" é ser proprietário, é ser dono de algo, de uma vivenda no Estoril, ou de uma courela seca em Bragnça, ou de um cargo, ou de um lugar. Quem toma posse disso ou de qualquer outra coisa, passa a ser dono. Faz o que quer. Assim, o primeiro ministro é dono do governo, do país, o director geral da direcçao-geral, o empresário da empresa e por aí fora até aos confins de tudo quanto pode ser possuído. Depois da posse, a gente faz o que quer.

Não presta contas.

António Barreto
escrevia por despeito. Queria algo que não lhe deram, ultrapassaram-no. Tem de vergar a espinha, dar graxa, lamber botas. O que, convenha-se, não diz bem com a sua natureza de intelectual de valia.

(1) Público, 13/03/05

Olho Crítico
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Publicado por josé 12:18:00  

4 Comments:

  1. Anónimo said...
    Grande chapelada, de luva branca. Tomaram, colega, alguns dos seus críticos saberem escrever, e pensar, assim. Não lhes ligue, é só dor de co... tovelo.

    --
    Neco Pedreira

    "Vote Num Homem Sério e Ganhe o Seu Cemitério"
    josé said...
    neco pedreira...já tentei comentar lá no blog do bem amado e não pude, por falta de ligação.
    Comento aqui.
    Parabéns pelo alter-ego. Tongue in cheek qb, é para mim, o tom chique dos b...logs.
    Humor e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém e só perde quem não vê.
    A inteligência da irrisão, muitas vezes, apela ao mais profundo da razão ao traduzir o absurdo das situações.
    Welcome! Se há caminho a percorrer,nas aventuras bloguísticas, esse é um deles, e provavelmente o mais agradável.
    Anónimo said...
    Artigo 1251 do Código Civil Português:


    “Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”

    Posse e propriedade são coisas diferentes. Qualquer primeiranista de Direito (já para não falar de um cidadão minimamente ilustrado) sabe fazer essa distinção.

    O grande equívoco do Olho Crítico provém do facto de pensar que é o único Olho Crítico. O simples uso de argumentos de autoridade não chega. É preciso tê-la.
    rita
    josé said...
    Ah, caríssimo prof.Orlando de Carvalho! Espero que não se incomode, lá, nesse assente etéreo onde estará!
    Falta-nos agora o "corpus" da sua presença física, mas temos o "animus" dos seus escritos e a saudade das suas aulas extraordinárias!
    Que jeito faria, agora, para explicar à estimada rita, a sua noção de "posse" que ensinava como ninguém, nas aulas de direitos reais, em Coimbra nos anos setenta.

    "Posse" era para ele, um poder de facto sobre uma coisa, exercido em termos do direito real correspondente.
    O prof. Orlando para explicar a sua concepção de "coisa", perdia-se nos labirintos da erudição e era isso que me apetecia ouvir.
    A "res", para ele, era coisa complexa e de definição precisa que implicava muita hora de estudo.
    Outra coisa que o saudoso prof. tinha, era um sentido de humor rarificado, imprevisível, mas cortante como lâminas de toledo.

    Os juristas, aparentemente, têm dificuldades nesse sentido de humor capturado e por isso talvez custe a entender a noção de provisioridade de um direito real.
    O sentido de humor torna provisório o que aparentemente +e absoluto.
    Porém, nada é absoluto, daí que a noção jurídica de "posse",s eja a melhor metáfora para a vida.

    O que é que temos de nosso, de modo absoluto?!
    O pensamento- que dura uma vida e por isso é provisoriamente definitivo.

    Rita: sentido de humor, precisa-se!

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