O melros e as carriças

No Expresso de hoje, em página recuada do suplemento Guia, a seguir à "agenda", pode ler-se esta crónica...


Miguel na terra dos novos santos populares

A voz, ainda impúbere, pairava acima do feminino e do masculino. As palavras eram simples, ingénuas, retiradas da espuma de que são feitas as canções. O timbre podia definir-se como angelical, mas sem a limpidez casta que se encontra no canto coral - talvez por causa da adstringência do gueto e pela vibração do Gospel nas igrejas Baptistas.

Ouvi-a pela primeira vez no “Página Um”, o programa do José Manuel Nunes. Parecia cantarolar na imensa soleira da infância, "I´ll be there", "I´ll be there", mas era já a voz dos Jackson Five, uma das muitas bandas negras geradas na Tamla Motown, essa editora de brancos que forjou a música Soul, que, dizem os entendidos, é apenas o Gospel erotizado.
Michaell Jackson não esfolou os joelhos na infância a andar de bicicleta ou a jogar basquetebol.

Passou-a em estúdios, à frente de microfones pasmados com o seu canto, em motéis, em lúgubres cafés na berma da estrada comendo «donuts», em palcos, aviões, autocarros com beliches, vigiado pelos pais, pelos irmãos, pelos «road-managers».

Foi amestrado para o sucesso, amanhado como um negócio futuro, discutido entre "managers", executivos, advogados, guardado em estufa numa Disneylândia privada, apartado do mundo para não se contaminar com a vida real, com os sonhos comuns, espécie de canário virtuoso que só pode comer painço real e alpista refinada. A sua missão era só uma: arrebatar «grammys» e discos de platina.

Os vídeos mostravam-no como um Fred Astaire negro, andrógi¬no, desarticulado de forma harmoniosa, à volta de quem se cons¬truíam lendas, como essa de so¬frer de descoloração natural da pe¬le, um caminho dec1inante do es¬curo para o claro por via duma doença estranha e exótica.

No auge da fama, a sua «entourage» adquiriu o catálogo de canções dos Beatles; e fê-lo com a naturalidade de uma poderosa multinacional de cosméticos que lança uma OPA sobre uma empresa de «batôns» que, numa certa época, protegeu a alma do mundo contra o cieiro.

Na mais pura tradição pagã, a cultura pop ergue os seus ídolos e põe-nos no lugar dos santos cristão arcaicos, tal como estes tomaram um dia o lugar dos deuses gregos romanos. Actores de cinema, cantores, guitarristas, atletas, corredores de Fórmula Um, são santcs descartáveis que num dia se cumulam de ouro, com sessenta mil círios acesos em santuários, estádios, rockódromos, e, no dia seguinte são lapidados com uma volúpia quase medieval.

As tendas do circo estão montadas para Michal Jackson. Os advogados pronunciam os seus “statements” à porta do tribunal. Os jornalistas inundam as televisões com imagens só para provar que na América ninguém está acima da lei, principalmente quando está em causa o decoro.

Ao mesmo, tempo que os marines patrulham Bagdade, a CNN serve um "zombie" de óculos escuros à massas que o adoraram e que agora agitam a gasolina para inflamar a fogueira sacrificial em que o vão incinerar. É um palhaço caído em desgraça a chegar ao tribunal em chinelos, calças de pijama às flores, com o juiz prestes a emitir com uma mão o mandado de captura pelo atraso, enquanto que com a outra, lavra um parecer a garantir a liberdade de Jay Leno poder contar piadas sobre o julgamento no seu “talk-show”.

Para não ficar atrás, o “site” do artista põe à disposicão dos membros do clube de fãs a transcrição das actas de cada sessão do tribunal, por uma quantia mensal módica e justa.
Algures num canto da memória, ouço ainda aquela voz de anjo negro a cantar “I'll be there”, “I´ll be there”. Onde?

Esta crónica de Carlos Tê é um exemplo de que a geração dos quase cinquentões que testemunharam os tempos áureos da explosão do Rock, e a imposição gradual da cultura popular no gosto comum, alimentaram o espírito com algo mais do que donuts e mac´s, servidos em doses reforçadas, em estabelecimnentos televisivos e cozinhados em escolas de facilidade.

Talvez por isso, saibam bem apreciar o sabor de um texto cozinhado à portuguesa, “com todos”, incluindo os ingredientes meta-linguísticos de luxo, raríssimos nos dias correntes e que são manifestamente desconhecidos para os RAP´s e outros Fedorentos que apesar de inegável qualidade, usam do meta-linguarejar mais rasteirinho e handicapam-se na subtileza que se aprende na prática das dificuldades e carências. Não será pior, mas é certamente diferente e diferenciável.

Carlos Tê
, é um dos autores mais importantes da língua portuguesa actual e popular. Que me desculpe o MEC ( Miguel Esteves Cardoso), mas no concurso para um mundo ideal da escrita em temas populares, de canções ou de jornal, CTê ( Carlos Alberto Gomes Monteiro) vai à frente, uns passos largos .

Escreveu todas a letras importantes dos discos de Rui Veloso e escreveu um livro a que deu o título de O Voo Melancólico do Melro, publicaco na Assírio & Alvim, no início de 2000.

No dito do autor, ao DN de 9.1.2000, “ escrevi sobre algo que conhecia: uma certa atmosfera de paróquia, de clausura cultural.” É um livro sobre o silêncio dos tempos da ditadura. Um silêncio difuso e constante que até afectava os putos. Mas que preeenchia um parte da vidas das pessoas que hoje em dia se concentram no consumo de bens correntes como objectivo meritório.

A certo ponto, Carlos Tê/ Vladimiro, escreve: “A profissão que eu gostaria de exercer, se existisse, era a de inspector-geral de musgos, vadiar pelos bosques no Inverno a medir a espessura dos musgos, a campânula dos cogumelos, a voragem dos fungos por um raio de sol.”

São também desta estirpe, as letras que escreveu para as canções de Rui Veloso e é pena que as colunas dos jornais de referência tenham vindo a ser tomadas por quem não sabe distinguir uma rola de uma pomba, em detrimento daqueles que no seu tempo sabiam de cor a côr dos ovos dos melros, por os verem nos ninhos.
Aliás, agora nem precisam: vêem-nos na televisão e em anúncios, plastificados pelo Photoshop ou cromados a airbrush!
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Publicado por josé 15:53:00  

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