memórias dos idos de Março de 75

Águas de Março, Tom Jobim, 1972

É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol
É peroba no campo, é o nó da madeira
Caingá candeia, é o matita-pereira
É madeira de vento, tombo da ribanceira
É o mistério profundo, é o queira ou não queira
É o vento ventando, é o fim da ladeira
É a viga, é o vão, festa da cumeeira
É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira
É o pé, é o chão, é a marcha estradeira
Passarinho na mão, pedra de atiradeira
É uma ave no céu, é uma ave no chão
É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão
É o fundo do poço, é o fim do caminho
No rosto um desgosto, é um pouco sozinho
É um estepe, é um prego, é uma conta, é um conto
É um pingo pingando, é uma conta, é um ponto
É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando
É a luz da manha, é o tijolo chegando
É a lenha, é o dia, é o fim da picada
É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada
É o projeto da casa, é o corpo na cama
É o carro enguiçado, é a lama, é a lama
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um resto de mato na luz da manhã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração
É uma cobra, é um pau, é João, é José
É um espinho na mão, é um corte no pé
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração
É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um belo horizonte, é uma febre terçã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração
É um resto de mato na luz da manhã
A canção de Tom Jobim é de 1972 e a genial interpretação de Elis Regina, também.

Em Março de 1975, já nos meus últimos “teens”, ouvia música, como os “teens” de hoje. E lia. Livros, jornais e revistas - que guardei.

Em dois dias do mês, a 6 e 7, tinham tocado os Genesis, em Cascais, num pavilhão desportivo.

A imprensa da época ligou menos ao assunto do que a de agora, trinta anos passados sobre a efeméride. O Expresso, no seu suplemento (excelente, aliás) Actual, de 5/3/05, dá-lhe quatro páginas, em que César Avó tenta explicar o fenómeno musical e o acontecimento desse mês de há trinta anos, nada parco doutros acontecimentos historicamente marcantes. A crítica musical do Expresso de há trinta anos, num quadradinho de fim de página do segundo caderno do dia 1.3.1975, intitulado Pop Corner, sem assinatura, dizia assim...

“Nas próximas quinta e sexta feiras ( 6 e 7 de Março) o calmo meio musical português vai ser abalado por um grande acontecimento: a actuação de um importante grupo britânico em dois concertos que constituirão porventura os mais altos momentos de “rock” ao vivo no nosso país, depois dos concertos dos Procol Harum há dois anos atrás. O nome desse grupo é Génesis.” E continuava por mais umas linhas a apelar à presença nos concertos, porque “perder os Genesis é seguramente perder uma das raras oportunidades de ver um bom concerto de “rock” em Portugal.

Mesmo ao lado da crónica, Pedro Pyrrait assinava a recensão crítica dos discos de Leonard Cohen, “New Skin for the old ceremony” , um disco single dos ELP (Emerson Lake and Palmer) e o primeiro dos Bad Company que continha “Can´t Get enough”!

Seria de esperar que na semana seguinte, viesse a reportagem com fotos e entrevista…mas quem folhear o número do Expresso de 8/3/1975, lerá muita coisa; porém, sobre música, e sobre o concerto dos Génesis, a melhor metáfora vem no fim da página VIII, sob a forma de um anúncio a um filme de Igmar Bergam - “O Silêncio” . Nem uma linha sobre o concerto que seria um “grande acontecimento”!
Silêncio que se redrobou na semana seguinte, para dar conta de “ O 11 de Março passo a passo” e perguntar Quem armou a mão de Spínola?, cuja resposta, ao fim de umas linhas se adivinha ...“ainda não encontrámos uma resposta cabal”! Contudo, fala-se em “ ambiente de profunda tensão, com rumores de golpes,inclusivé anunciados na imprensa estrangeira” “Nós próprios”, diz o Expresso no artigo não assinado, “ alertámos através do noticiário apresentado, descrevendo as correntes divisionistas no seio das Forças Armadas. E essas divisões eram tais e tantas que conduziram ao que se viu, escreve o Expresso então dirigido por F. Balsemão, Augusto de Carvalho e …Marcelo Rebelo de Sousa !

Quanto à imprensa estrangeira, basta dizer que o L´Express francês capeou a 1ª página da edição de 10 a 16 de Fevereiro desse ano de 75, a vermelho vivo e com uma foto severa e determinada deÁlvaro Cunhal, aureolada pela foice e martelo de um amarelo desbotado, mas luminoso! Só nesse ano essa revista e a Time americana fizeram três capas sobre Portugal e o seu inexorável caminho para o abismo comunista. O L´Express de 24 a 30 de Março desse ano, titulava a primeira página com o título expressivo “L´Offensive communiste”, mostrando um tinteiro vermelho com tinta espalhada sobre o mapa da Europa e salpicada na parte desenhada da Itália e de Portugal! A Time de 11 de Agosto de 1975, em desenho passado a aerógrafo e emoldurado a vermelho e amarelo da foice e do martelo, mostrava as caras de Otelo, Vasco Gonçalves e Costa Gomes e apunha-lhes o título de “A troika de Lisboa-Ameaça vermelha em Portugal”. Assim, sem dúvidas!

O Expresso do dia seguinte ao último concerto dos Genesis, dedicava duas páginas a uma “mesa redonda “ sobre o “Programa Económico” onde, além dos mais, intervinha um tal Vasco Pulido Valente, que sobre os processos revolucionários originais dizia...
Num certo sentido, todos os processos revolucionários são originais. Noutro sentido, muito poucos o foram. Há só três modelos básicos. Portanto, quando se fala em originalidade é preciso saber do que se está a falar.

Pois, o gajo já nessa altura falava assim! E tem mais umas coisas interessantes. Sobre populismo, por exemplo...
Normalmente entende-se por populismo um tipo de política que pretendendo embora alterar as relações de força de classe, o não faz. Isto é, tendo por objectivo demagógico (no sentido próprio da palavra) fortalecer as classes trabalhadoras – não vamos discutir aqui o que são classes trabalhadoras - o não faz. Não me parece que este programa esteja compreendido nesse caso. De facto, há nele, muito claramente, uma vontade de alterar as relações de força existentes neste país.

Neste país”, era , nessa altura, expressão de bordão, para quem se pronunciava publicamente. Neste país, isto; neste país, aquilo. No mesmo número do Expresso, em quatro páginas do 2º caderno, perguntava-se “Que Gulbenkian queremos?” onde se fala de tudo, menos daquilo que a Fundação significou para muitos anónimos frequentadores das carrinhas Citroên que por vilas e aldeias de todo o Portugal, periodicamente, emprestavam livros a quem queria: as bibliotecas itinerantes, verdadeiros e únicos agentes culturais da época e que já por aqui e também por aqui, devida e notavelmente, foi assinalado.

Para continuar a ler a crónica revista e aumentada... procurar neste sítio que é portadaloja.

Publicado por josé 18:30:00  

1 Comment:

  1. zazie said...
    bem recordado ";O)

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