A bitola valente

O habitual Pulido Valente escreve hoje no Público ( aproveitar a ligação enquanto é tempo…) uma crónica excruciantemente pascal.

Sob o pretexto circunstancial da sucessão da liderança no PSD, expõe uma paisagem de gólgota, no panorama das elites políticas com imagem pública e apetência de mando em Portugal.

Vai ao fundo do cálice e bebe a última gota, ao sintetizar numa “indigência mental devastadora e lúgubre”, a nossa inteligentzsia com vocação de poder. Encerra num saco de plástico a imitar a linhagem antiga, um António Borges, uma Leonor Belza, um Rui Rio, um Aguiar Branco e outros, incluindo um tal Jorge Bleck que diz não saber quem é, mas seria bom conhecer para melhor entender o nosso panorama económico-político-social… e como cobertura caramelizada em bolo de supermercado, fora de prazo, o próprio Cavaco!

Argumento base...

Cavaco inaugurou a estirpe dos políticos que não conheciam Portugal: a história, a sociedade, a cultura. Estes de agora só vão até ontem. Antes de Cavaco o país não existia e hoje só existe como abstracção estatística.

E para o retrato ficar mais nítido, acrescenta-lhe os tons sombreados do relevo:
De onde vêm eles? Que tradições representam? Quem os recomenda e apoia fora do pequeno mundo em que circulam? Ninguém sabe. Aconteceu o mesmo com o Compromisso Portugal e o Portugal Positivo. Um certo sucesso, uma certa competência e muita "modernidade" saloia chegaram para convencer personagens dolorosamente modestas da sua importância e lucidez.

Percebe-se o intelectual Pulido: antes dos Cavacos e dos Borges, já o Vasco Valente escrevia livros, crónicas e antes até participava em mesas-redondas patrocinadas pelo Expresso e pelas revistas da modernidade nascente, perorando inteligentemente sobre as idiossincrasias da pátria.

Os seus livros rezam alguma história do séc. XIX, sobre personagens obscuros e tiragens insignificantes.

Há um compêndio de crónicas Às Avessas da Assírio & Alvim de 1990 e que se lêem de um fôlego, de tão leves que são. Há um artigo, em 25 páginas, assim a modos de ensaio, publicado no nº 2 da revista K, de Novembro de 1990, sobre Marcelo Caetano e que começa assim: “ Já do Brasil, Marcello Caetano escreveu a Veríssimo Serrão que “não tinha nascido em berço de ouro como Álvaro Cunhal”, “filho de um advogado com nome e dinheiro” nem tinha sido um “menino rico” como Soares, cujo pai “se incumbia” de trabalhar por ele.

As suas crónicas na revista Grande Reportagem, (dirigida por J. M. Barata Feyo), de meados dos anos oitenta, são um compêndio abreviado de história da cultura literária e portuguesa, de bolso, e até dos políticos que fomos tendo.

Para exemplo proveitoso, ficam aqui excertos escolhidos de uma crónica scannerizada dessa Grande Reportagem de 29 de Março a 4 de Abril de 1985, intitulada "Os políticos e a história"...

Nos últimos anos, como toda a gente, perdi horas sem fim a discutir as miudezas de carácter, de temperamento, de educação e de estilo dos grandes e pequenos príncipes que nos pastorearam. Discuti, evidentemente, Eanes, Sá Carneiro, Soares; o que, com alguma bondade, talvez se desculpe. Mas devo comessar que não fiquei por aí. Movido por uma estranha perversidade, cheguei a preocupar-me com personagens tão intimamente insignificantes como Balsemão ou Lucas Pires, Eurico de Mello ou Helena Roseta.

Atribuo em parte esta aberração ao facto de os conhecer e à circunstância infeliz de se me ter metido na cabeça, por razões inteiramente misteriosas, que me competia salvar a Pátria com as minhas mais do que duvidosas luzes, o que me obrigou durante uns meses a observar os colegas de ofício. Gostaria, no entanto, de alegar uma atenuante. Sendo profissionalmente um historiador da política, senti a seguir ao 25 de Abril uma irresistível tentação de ir ver e escarafunchar (em espírito, claro) esses curiosos animais que me ocupava a estudar, com o consentimento de instituições respeitáveis como universidades e institutos de investigação científica. Admito que não se trata de uma reacção natural. Privo com altos académicos que produzem tratados sobre anarquistas e operários vidreiros e que nunca cometeram o excesso de os atrair à sua intimidade. Desgraçadamente, a reserva não é o meu forte.

Com estratagemas que, por pura modéstia, me coíbo de qualificar, introduzi-me na presença do meu objecto de estudo, cheio de nervosismo e de palpitações. Como seriam eles em carne e osso? Que heroicidades ou malvadezas se praticariam por trás daquelas portas guardadas por polícias, contínuos e secretárias aterrorizantes? De que é que eles falavam? Suponho que há excêntricos americanos que se precipitam com a mesma voracidade sobre os papuas e zoólogos que ambicionam coabitar com orangotangos. O amor da ciência conduz a tudo.

Gastei, assim, esforços, energia, zelo e ternura, em quantidades extravagantes, a examinar os políticos. Ao contrário das noções correntes - e até das minhas em momentos de especial irritação - achei-os geralmente honestos, cumpridores e um pouco patéticos. É que invejados, exaltados, vilificados, gloriosos ou abjectos, eles sofrem sempre de uma aflição ignorada, irremediável e horrivelmente dolorosa: só existem enquanto são e só existem por ser.

(...)a biografia não pertence à tradição portuguesa. Garanto aos incrédulos que não encontrei de 1974 para cá nenhum político que conhecesse o nome e, muito menos o papel histórico, de dez primeiros-ministros do século XIX. Para minha surpresa, esta simpática ignorância não os inquietava. Da gente que conheciam, aliás, tinham as opiniões da historiografia jacobina ou de Oliveira Martins. D. João VI, um dos mais subtis e pertinazes diplomatas do seu mundo, era um imbecil. D. Pedro IV, que criou o Brasil independente e unido e conduziu uma guerra revolucionária em Portugal, era um carroceiro e um vaidoso. Palmela, que sustentou a causa liberal na sua pior crise e contribuiu para fundar a estabilidade da «Regeneração», um habilidoso e um agente inglês. Passos Manuel, que, lacrimejando, jamais percebeu o que queria, um democrata e um patriota. Costa Cabral, que pôs em pé o Estado liberal, um corrupto e um ditador. Fontes Pereira de Melo um engenheiro obtuso que fazia estradas. E por aí adiante.

O que me intrigava, o que me intriga, nas extraordinárias ideias que precedem não é a incrível perenidade da asneira. É uma coisa bem mais perturbadora: se eles pensam aquilo dos outros, que será que eles pensam que vão pensar deles?

Passaram vinte anos! Vasco Pulido Valente não mudou, aparentemente, um parágrafo do que então escrevia! Coerência?! Sem dúvida! Mas que raio é que lhe adiantou andar a escrever crónicas, e livros a recolhê-las, se no final de contas, as “elites” não só não mudaram como se abastaram ainda mais, ao ponto de se tornar visível e imponente a “indigência mental” com que lhes afinfa a preceito?

Terá razão VPV?! Ao falar de Borges como um incapaz de distinguir a gestão de um país, da gerência da Goldman Sachs, por ignorância endémica de humanidades e de história pátria do séc. XIX, estará o iconoclasta-mor a ser justo e – mais importante!- saberá ele o que diz?!

Aqui há uns tempos, o historiador, antigo ministro da Educação e adepto confesso do salazarismo, Hermano José Saraiva, dizia que Cavaco tinha sido “um bom gerente”, corrigindo a anterior afirmação de que tinha sido “um pobre diabo”. Percebe-se de algum modo o que o ressabiado Saraiva queria dizer: as elites não são o que eram - e dantes eram melhores! E ele tem saudades desse tempo. Subscrevo, do alto da minha ignorância, tal afirmação, que empiricamente me parece certeira, mas duvido da sua justeza.

Borges, Beleza, Mendes, Aguiares e C.ª são medíocres?! Por qual bitola?

A da competência técnica em lidar com assuntos de contas, números e estatísticas? Aí, não me parece que o VPV tenha razão e antes me parece que lhe falha a ele, essa competência analítica que é muito concreta e essencial.

Faltar-lhes-á, a esses novos pretendentes do poder político, a visão histórica, a cultura humanística e os conhecimento sólido da sociologia ministrada nas salas do Instituto? Pois faltará. Será essa falha, o impedimento fatal para a excelência? Duvido.

É que isso não falta a VPV. Nem falta a António Barreto, por exemplo. Nem a um José Adelino Maltez, um dos poucos que me parecem perceber estas subtilezas da mediocridade ambiente.

Não faltará ainda a outros comentadores de jornal de fim-de-semana. Isso adianta para quê?! Ora! No fim de contas, tudo somado, adianta para escrever crónicas de escárnio e mal dizer. E os visados passam, na caravana, sem sequer se aperceberem do ruído.

No entanto, são preciosas essas crónicas! Porque é essencial, esse ruído! É calibrador do viver democrático e fundamental para a mudança, se se agregarem em massa crítica.

O bom é inimigo do óptimo e, neste caso, ainda nem chegamos ao bom. Parámos, por uns anos, na mediocridade...e há quem nos avise, do alto do farol.
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Publicado por josé 19:25:00  

3 Comments:

  1. zazie said...
    acabo de ler e mandei logo para os radicais. Grande Vasco!

    e excelente post, José ";O)
    zazie said...
    é capaz de lhe faltar essa competência técnica, mas também não creio que é disso que ele fala. O que ele critica é a ideologia salvífica criada à volta destes milagres de algibeira que dispensam a realidade e a história.
    Anónimo said...
    Simplesmente soberbo este post .

    Parabéns ao autor.

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