O ar do tempo

MMLM do blog causa nossa, ficou indignada ao saber que no regulamento de um determinado condomínio de Houston, Texas, USA, se proibiam expressamente crianças menores de 16 anos, de aí residirem. A proibição abrangeria os nascituros, sendo os respectivos pais, nesse caso, obrigados a abandonar o local.

O celerado regulamento, ainda por cima, enquanto proibia crianças, permitia ao mesmo tempo, a permanência de pequenos animais domésticos nas habitações:

- «Children under the age of sixteen years are not permitted to reside at the Cambridge Glen Condominium on a full time basis. (...). Any owner who subsequent to purchase of a condominium unit has a child born to her, must vacate her condominium prior to the child's second birthday» (art. VII, n. 8. al. p).- «Two small dogs, cats or other usual small household pets may be kept in any unit» (art. VII, n. 8. al. e).

João Miranda, o valoroso blogger do Blasfémias, argumentou em defesa da mais ampla liberdade e pela legitimidade de tal cláusula regulamentar e escreveu...
Liberdade é também a liberdade de constituir condomínios onde não podem viver crianças. Ninguém é obrigado a viver lá. Quem compra já sabe quais são as regras. Quem não gosta pode ir morar para outro sítio. Qual é o problema?

Vital Moreira, outro notável blogger do causa nossa, acha que há problema – e dos grandes, dos constitucionais!

E na resposta à reivindicação da mais ampla liberdade de João Miranda, podou a pretensão e alvitrou razões para cercear essa liberdade, escrevendo...
Quem acha perfeitamente normal um regulamento de um condomínio nos Estados Unidos que exclui crianças até aos 16 anos e que obriga as mulheres que tenham filhos a abandonar o condomínio no prazo de um ano, também deverá achar obviamente que nada haveria de anormal se um regulamento excluísse condóminos ou inquilinos negros ou judeus, ou gays ou divorciados, ou deficientes, etc. Total liberdade contratual, não é mesmo? Total prevalência do direito de propriedade, por que não? Que importam os direitos fundamentais estabelecidos na Constituição e a sua "eficácia horizontal" nas relações entre privados, com as inerentes limitações à liberdade negocial e ao direito de propriedade?Os adeptos do ultraliberalismo ainda não se deram conta de que os Estados Unidos e a Europa constituem duas civilizações distintas no que respeita ao respeito dos direitos humanos nas relações entre privados e à proibição de discriminações arbitrárias ou contrárias aos direitos fundamentais ou à dignidade humana. Um tal regulamento seria intolerável do lado de cá do Atlântico."


Será esta a questão? Poderemos nós estabelecer um paralelismo fracturante entre as concepções de ampla liberdade contratual, supostamente à solta nos USA e a maior restrição a essa liberdade existente na Europa, por vinculação estrita ao maior respeito dos direitos humanos ?!

Estaremos perante mais uma questão que opõe o liberalismo à social-democracia que muitos querem encostar á esquerda? Numa palavra: a questão será... ideológica?!

O nosso Código Civil, no artº 280 comina com a nulidade os negócios jurídicos contrário à lei, à ordem pública e aos bons costumes, abrindo a porta à intervenção dos tribunais, mormente o Constitucional, para a definição do conceito de "bons costumes". Galvão Teles, conhecido teórico destas coisas, escreveu que " A ordem pública é representada pelos superiores interesses da comunidade e os bons costumes pelas exigências da moral."

Estamos entendidos!

Quais serão os "superiores interesses da comunidade" neste caso? Permitir a cláusula ou proibi-la, cerceando ao mesmo tempo a mais ampla liberdade contratual? E quanto à tal moral, quem a define agora?

Torna-se evidente que a dilucidação do assunto concreto do tal regulamento de condomínio, só poderá atinar-se, eventualmente, com argumentação que não caberá no espaço de um postal de blog.

Porém, sempre se poderá dizer que a colagem imediata que Vital Moreira e outros fazem, assimilando essa proibição a outras consensualmente julgadas inadmissíveis, como seja o caso de proibição de negros, judeus, deficientes, gays, etc. leva a uma adesão a essa argumentação. Ninguém admitirá que actualmente se discrimine em função da raça e será do "superior interesse da comunidade" impedir normas como essa de vigorarem, mesmo em regulamentos de condomínios privados.

Então, parece que a questão se coloca no "ar do tempo"!

Para um certo liberalismo de amplas liberdades contratuais, não há qualquer problema de direito público e de "superior interesse da comunidade", na proibição de menores de 16 anos, mesmo filhos, de fazerem parte de agregados familiares de um condomínio.

Para a concepção mais tradicional e de restrição de liberdades contratuais em função de valores que se entendem como constitucionalmente garantidos, já existe esse problema que como se disse, é maior.
Em que ficamos?! Seguimos o caminho neo-liberal ou assentamos arraiais na tradição que temos de consenso constitucional restritivo?

Haverá algures um vício de raciocínio, ou esta é mesmo uma (outra) questão fracturante?

Publicado por josé 13:35:00  

10 Comments:

  1. Anónimo said...
    Umas perguntas que não posso fazer directamente no Causa Nossa:

    Se o regulamento for contestado em tribunal e subir ao Supremo Tribunal dos EUA, que decisão haverá?
    E so o regulamento proibisse 'negros ou judeus, ou gays ou divorciados, ou deficientes, etc'?
    Estará Vital Moreira, à falta de assunto, a fazer uma tempestade num copo de agua?
    zazie said...
    Eu creio que estas questões não devem ser vistas por decalque da cartilha. O JM tende a agarrar-se a princípios e esquece (ou desconhece a prática). Já quando foi da questão do fumo nos restaurantes caiu no mesmo excesso.
    Tanto quanto sei já existem mil e uma maneiras de colocar entraves ao aluguer de apartamentos por toda a Europa. Começam logo por exigência de valor de vencimento e comprovativos bancários que por cá desconhecemos. Depois, as regras de civismo em zonas que não sejam marginais também têm tantas condicionantes que até entendo que cheguem ao ponto de não quererem crianças. A título de exemplo, em Oxford, estive em apartamentos destinados a estudantes com família, onde nem era permitido que as crianças andassem de skate no corredor das traseiras junto ao jardim do condomínio!
    O nosso amigo do Memória Inventada também deu o exemplo de um cientista que não consegui habitação em determinada zona de NY por ter ordenado inferior ao homem do lixo “:O)))

    Por isso, creio que não me parece aconselhável legislação específica em nome da total liberdade, quando o que está em causa é mais a manutenção da tranquilidade e bom ambiente de determinadas zonas residenciais. E isso não deve ser pretexto para racismos encapotados que nem se integram no espírito da questão.
    zazie said...
    Mas sempre lhes digo: só quem nunca apanhou com vizinhos trogloditas e total impotência para lhes fazer frente é que se queixa das medidas que existem lá fora...
    Seria mais útil que a MMLM fizesse uma investigação junto da Câmara Municipal de Lisboa do teor de queixas e pedidos de vistoria que por lá existem para se dar conta que por cá não há que temer medidas segregacionistas: por cá ainda vivemos na barbárie, com a graça de Deus...
    josé said...
    A questão colocada tem mais uma carga simbólica do que outra coisa e destinava-se a trazer à liça da discussão, a natureza "ideológica" de certas opções.
    Vital Moreira eriçou-se logo por ver na proibição uma violação flagrante de direitos humanos- meste caso plasmada em abominável cláusula de um qualquer regulamento saído de uma manifestação da liberdade contratual. A palavra liberdade, não mereceria qualquer discussão; mas associada a contrato liberal, já tresanda a algo que ainda custa a engolir, ideologicamente. Preferiria regulação, limitação e não discriminação que é o termo politicamente correcto por excelência!
    Porém, como de costume, a Zazie, pôe a questão no sítio certo e que é o do bom senso mais comezinho e que acaba por se manifestar na determinação do que está correcto ou não.
    Parece-me óbvio que muitas limitações à liberdade individual, decorrentes de regras de iniciativa privada como é o regulamento de um condomínio, podem afectar princípios e conceitos que julgamos assentes e indiscutíveis.
    O melhor exemplo disso, actualmente, parece-me a proibição de acesso de fumadores, a determinados locais. Toda a gente( quem não fuma...) aceita a proibição porque há a alternativa e a proibição se limita a "não fumar" e não implica a discriminação da pessoa em si, do fumador.
    Mas pode implicar! Se a proibição se estender a todos os espaços públicos, parece-me que já não haverá dúvidas disso.
    Assim, muitas outras proibições e limitações à liberdade individual, seja no domínio da liberdade contratual ou noutros, são patentes em todo o lado, de modo disfarçado e hipócrita.
    E nunca ninguém se lembrou de colocar em causa a respectiva constitucionalidade.
    Daí, ter falado em "ar do tempo", porque só mesmo esse conceito indefinido pode explicar muitas coisas contraditórias.
    zazie said...
    Quando se fala neste tipo de restrições, tal como no tabaco nos restaurantes ou medidas congéneres o que está em causa não é o uso arbitrário da liberdade individual que se deve sobrepor à colectiva, de forma gratuita e quase que a título de capricho como o JM tende a defender.
    Numa e noutra questão, ainda que de modo menos razoável no caso dos jovens com menos de 16 anos, há uma intenção de bem público: o sossego e tranquilidade dos habitantes de determinado condomínio. Por isso mesmo parece-me gratuito vir-se logo com o papão da xenofobia e quejandos medos do politicamente correcto quando o valor da conta bancária e o status do inquilino é que estão em causa.
    Em relação às crianças pode ser exagero, e eu até falo assim porque desde que apanhei com os rebentos dos trogloditas do andar superior ando um tanto anti-criancinha.... A verdade é que já existe legislação lá fora que obriga a isolamento da casa para evitar problemas. Se alguém ocupa um andar onde havia calafetagem do chão e das paredes não o pode remover! É obrigado a manter o dito isolamento. Por cá até está na moda fazer-se afagamento de chão de madeira em velhas construções de tabique! Só no dia em que abaterem todos no piso térreo é que se vai pensar na legislação... e ainda sim...

    Mesmo assim os problemas de incómodos não ficam resolvidos com esse tipo de isolamento e eu entendo que a polícia também já deixou de ser uma medida coactiva. Os polícias, hoje em dia, para nosso bem, tornaram-se uma espécie de relações públicas. Vão lá, dialogam muito mas não intimidam nada. Essa é que é essa. Até conheço um que teve o mesmo problema de inundação em casa e foi obrigado a mudar de apartamento porque os vizinhos estavam tanto nas tintas por ele ser polícia como velhinha indefesa “:O)))
    Anónimo said...
    Na verdade não se está a fazer mais que a preparar o caminho para que, em uma unidade de tempo razoável, algumas pessoas tenham um patamar por onde iniciar uma batalha pelo direito a viver num condomínio sem negros, ciganos, portugueses ou outras geografias menos... completas. Mas, se isso já se pode fazer, difícil é evitar que estes, os tais originários das latitudes menos ... completas, se entranhem posteriormente no protegido universo branco. Ora, oi que se pretende é garantir que vai ser possível impedir a chegada dos ... outros!
    O que me deixa mais sossegado é eu ter a certeza que esta gente está a milhas de perceber a diferença entre a teoria da relatividade restrita e a generalizada.
    primo Sousa
    Ampop said...
    Sem dúvida uma sociedade intolerante, serão permitidas pessoas com deficiências físicas, pessoas feias, e quem ressona?
    zazie said...
    primo de Sousa:
    está enganado. Isso de bastar ser branco para ser elite já era ":O)))

    Alexandre Mota: já há clínicas para tratamento do ressonar. Não é a sociedade que se chateia, são elas ":O)))

    E se deixassem de parte as ideologias e as cartilhas e pegassem nos casos concretos também era uma boa ideia. Por cá os problemas são de ordem inversa e há casos perfeitamente kafkianos. Até penso que é assunto que se devia pegar na blogosfera já que os jornais e tv nem ligam. É ir aos tribunais e às câmaras e ler o tipo de denúnicas e os meses ou anos em que desgraçados vivem com as casas inundadas até por dejectos sem que ninguém resolva nada... Eu li e falei com técnicas da Câmara que me contaram histórias de arrepiar.
    E também tive uma... e tenho... e qualquer dia a coisa vai ter de ser resolvida com caçadeira, ai vai, vai...
    isot no caso do decapante em cima do Alfa Romeo dos trogloditas não servir para nada...
    ";O))
    Anónimo said...
    Eu também concordo com as Ludovinas sobre os preços das margarinas. Com tantas manteigas limianas muito mais rançosas para criticar nos EUA, é uma dor de alma ver tanto desperdício de palavras. Ao que chegaste, Portugal das Queijadas do Verbo Lusitano!
    Gomez said...
    Chego atrasado ao debate (como vem sendo habitual) e deixo apenas um apontamento.
    O aguerrido blogger Vital Moreira e o insigne constitucionalista Vital Moreira fazem lembrar por vezes o clássico The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde. São a mesma pessoa, mas aparentam nada ter em comum.
    A questão começou a ser discutida num plano claramente ideológico (como questiona este post) e com argumentos algo panfletários, diria eu. Dizer, sem mais, que está em causa a aplicação directa dos direitos fundamentais nas relações entre privados e a proibição de discriminações arbitrárias ou contrárias aos direitos fundamentais ou à dignidade humana, bastará à defesa da ideologia do blogger, mas parece muito “curto” saído da pena do constitucionalista. Aquela aplicação não se discute. Mas a discriminação em causa, não integrando o elenco das discriminações manifestamente arbitrárias (fundadas exclusivamente na raça, sexo, religião, ...), carece de ver a sua arbitrariedade comprovada, tendo presentes todos os direitos constitucionalmente tutelados atendíveis e a concordância prática a estabelecer no caso concreto. A liminar condenação geo-jurídica com que o regulamento foi fulminado, aceita-se a Mr. Hyde, mas não parece digna do Dr. Jeckyl.
    Posteriormente, VM veio densificar o seu raciocínio: “o tal regulamento restringe pelo menos os seguintes direitos dos condóminos: a sua liberdade de ter (ou adoptar) filhos (sob pena de terem de mudar de residência), o seu direito de propriedade (forçando-os a alienar ou a deixar de fruir a sua habitação se tiverem filhos) e a liberdade de escolha de residência (impedindo-os de viver onde querem com os filhos). Isto para não falar dos direitos das próprias crianças”. Independentemente de alguns dos argumentos parecerem forçados (como o da liberdade de escolha da residência), dizer isto não basta. Não sendo tais direitos absolutos – e não sendo posto em causa, s.m.o., o seu núcleo essencial - importa saber se por interferência de outros direitos, a restrição não será admissível. Poderá haver, em tese, razões objectivas atendíveis e que tutelem outros direitos – por exemplo de personalidade, de saúde, ... - que no caso legitimem a compressão desses direitos, por via da autonomia privada, sem violação de direitos fundamentais, da ordem pública ou da moral... A menos que se entenda que a dignidade da pessoa humana é irremediavelmente posta em causa se as crianças não tiverem o “direito” a residir em todo e qualquer condomínio que esteja ao alcance da bolsa dos respectivos progenitores.
    A análise do caso concreto não cabe num post, menos ainda num comentário - e não a vou fazer (até porque os elementos disponíveis não são a meu ver suficientes). Mas continuo a pensar que o tema só é fracturante, se continuar a ser analisado com apriorismos ideológicos ou geo-políticos.
    Já agora, sugiro que VM - e todos os que se preocuparam com o assunto - não descurem a “vigilância democrática” relativamente a esta questão. A julgar por algum fundamentalismo que vai perpassando pela jurisprudência dominante em matéria de tutela de direitos de personalidade nas relações de vizinhança, muitas vezes assente em raciocínios essencialmente jus-civilísticos de predominância de uns direitos sobre outros, (chegando por vezes a valorar e a fazer prevalecer “a especial sensibilidade” dos reclamantes sobre outros direitos constitucionalmente tutelados, anteriormente adquiridos e exercidos no pleno cumprimento pelos limites decorrentes das normais legais ou regulamentares aplicáveis), um destes dias teremos no nosso país criancinhas judicialmente excluídas de condomínios - ou pais pesadamente sancionados - mesmo no silêncio do regulamento do condomínio.
    Admirador do constitucionalista me subscrevo,

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