Na senda da cepa torta


O procurador-geral da República, José Souto Moura, teceu ontem duras críticas à forma como foi conduzido o processo Casa Pia, dizendo que algumas decisões só foram tomadas porque o caso envolve figuras conhecidas.

Começa assim, a notícia de hoje, no Público sobre as declarações de Souto Moura em Badajoz.

É esse o lead - "duras críticas" do PGR, "à forma como foi conduzido o processo Casa Pia"!!

Vejamos...

Acompanhando o desenvolvimento da notícia, segundo os cânones do jornalismo, a seguir viria a especificação dessas críticas. Que lemos nós?! Que o PGR ainda declarou...

Se este caso acontecesse em França, os miúdos tinham sido ouvidos para memória futura, obrigatoriamente. Se acontecesse em Espanha, em princípio seriam ouvidos em declarações para memória futura. Há aqui alguma hesitação no que diz respeito à protecção das vítimas da Casa Pia, que acho que não pode existir e que só existe, evidentemente, pela importância das pessoas que são acusadas." Souto Moura acrescentou ainda: "Nos Açores, e porque prender o senhor Farfalha não é a mesma coisa que prender o senhor Carlos Cruz, e porque prender o sr. dr. Arruda não é o mesmo que prender o dr. Paulo Pedroso, houve declarações para memória futura e não houve o mínimo comentário contra, tudo correu às mil maravilhas. Em Lisboa, o que fizeram? Recusaram o juiz ."

Não adianta ler mais, porque não há mais críticas duras. Estão todas aqui, nestes dois singelos parágrafos.

Na verdade, trata-se apenas de uma crítica: no processo Casa Pia não foi respeitado o princípio constitucional da igualdade de todos os cidadãos perante a lei! Por quem? Por quem conduziu o processo?

Saberá a jornalista que assina a notícia quem conduz os processos e o que isso verdadeiramente significa?

Não deve saber muito bem e é por isso que assina o lead enganador e o logro se instala logo que prossegue na escrita.

Quem conduziu o Inquérito, neste caso concreto, e naquela fase foi o MP. Depois e incidentalmente, o Juiz de Instrução.

Quanto ao problema das declarações para memória futura, a PGR, no seu site, tem um arquivo de memórias. Lá se escreveu em 29 de Dezembro de 2003, numa nota sem assinatura, o seguinte...

(...) A 11 de Julho de 2003, o Ministério Público requereu a marcação de declarações para memória futura de 32 testemunhas. O despacho do Juiz de Instrução Criminal, de 29 de Agosto, deferiria a realização de tal diligência com utilização da videoconferência. Sete arguidos interpuseram recurso desta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa e até à presente data nenhum desses recursos foi decidido.

Como é sabido, e porque os ditos recursos não suspenderam o início da diligência, quando a mesma acabava de se iniciar, foi deduzido o incidente de recusa do Juiz de Instrução. O qual deu sem efeito, consequentemente, as datas designadas para as declarações. O indeferimento da recusa de Juiz originaria ainda novos recursos.

Ora, ao requerer a tomada de declarações para memória futura das testemunhas referidas, há mais de cinco meses, e mais de meio ano antes do termo do prazo do inquérito, o Ministério Público fê-lo em tempo útil e ponderou a conciliação entre as necessidades das prisões preventivas decretadas e o respeito do prazo para se deduzir despacho final de encerramento do inquérito. No entanto, tempo necessário à dedução do despacho final num processo com esta dimensão;

A necessidade de aí se ter em conta o que resultasse das declarações para memória futura;

A eventualidade das diligências em questão se revelarem inúteis, caso os recursos interpostos da decisão de 29 de Agosto viessem a dar razão aos recorrentes;

Sobretudo, a necessidade de acautelar os interesses das testemunhas enquanto pessoas frágeis, o respeito pelo seu sofrimento e pela sua dignidade, tudo isso levou o Ministério Público a constatar que as condições para a realização das declarações deixaram de estar reunidas e por isso optou pelo encerramento do inquérito.

À jornalista, antes de escrever o lead e ao director do jornal, se o chegou a ver, exigia-se o mínimo de correcção numa notícia como esta...

Facilmente compreenderiam que as críticas do PGR não são a quem conduziu o processo mas a quem o entravou, ou seja, a quem impediu, de facto, a realização das declarações para memória futura. Quem as impediu, não foi quem dirigiu o processo!

Dir-se-á que o direito processual de garantia que assegurou a inviabilização da diligência é legítimo. Pois será...mas também é legítima a apreciação de quem o usou e o modo como o fez.

A meu ver, os motivos que estão à vista de todos: os mesmos que Orwell, no final da sua fábula O Triunfo dos porcos , sintetizava numa frase...

Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros

Na Constituição Portuguesa, no artº 13º nº1 escreve-se assim...

Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.

O que o PGR denunciou ontem, foi exactamente o enunciado de Orwell,... e para quem saiba ler a resposta exacta está no comunicado da PGR, de Dezembro de 2003.

Pelos vistos, o Público continua na senda a cepa torta da manipulação.

Publicado por josé 10:18:00  

3 Comments:

  1. Cronista Oficioso da 3R said...
    Há quem continue a trabalhar em todas as frentes, atenção muita atenção ao desenvolvimento da situação no Tribunal da Relação de Lisboa... e às danças de cadeiras
    Cronista Oficioso da 3R said...
    Pois isso sim merecia ser noticiado já agora dando a conhecer as regras e as práticas estabelecidas em casos passados...
    zazie said...
    E estas últimas palavras do Pinto Nogueira tinham dado um lead muito mais apelativo e ainda assim bem mais honesto do que o que foi feito. Ou será que se acredita que aquilo foi mera ignorância da jornalista?

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