«Eu seria o último a prejudicar a coligação»
Adelino Salvado


Souto Moura

Eduardo Dâmaso, Público de 24 de Outubro de 2004

A entrevista que o procurador-geral da República (PGR) deu ontem ao "Expresso" merece que regressemos ao tema. Por duas simples razões: uma notícia interessante, a de que o PGR não foi informado previamente da detenção de Carlos Cruz, e a confissão de que seria a última pessoa interessada em prejudicar o PS já que foi este partido a nomeá-lo.

A primeira tem a curiosidade de se ficar a saber que Souto Moura não foi informado pelo procurador João Guerra da detenção de Cruz quando uns dias antes tinha ido à RTP garantir que nada havia contra o apresentador de televisão. Souto Moura não tinha que ser informado antes da detenção mas, depois de tudo o que se passou, seria o mínimo da parte do magistrado que dirigiu o inquérito.

Este episódio, aliás, demonstra bem a natureza da liderança de Souto Moura no Ministério Público (MP), a milhas do pulso de ferro de Cunha Rodrigues, e como a sua afirmação externa é sistematicamente prejudicada por condicionantes internas. Como se viu, de resto, também no episódio das cassetes roubadas.

Se esse estilo de liderança é bom ou mau na afirmação institucional do Ministério Público, sejamos justos, só o tempo o dirá; mas um primeiro balanço muito impressivo não é nada favorável a Souto Moura. E não é, desde logo, pela forma como se tem pronunciado sobre aspectos concretos do processo Casa Pia mas, principalmente, pela inaceitável argumentação que deu ontem sobre o interesse que não teria em prejudicar o PS por ter sido este partido a nomeá-lo para o cargo. Ou seja, teoricamente Souto Moura estaria a dever um favor ao PS.

Este é um argumento lamentável. Primeiro, o PS só formalmente nomeou Souto Moura já que era o partido que estava no poder à época. A sua nomeação resultou de uma negociação com todos os partidos com representação parlamentar e foi a opção resultante da negativa do juiz conselheiro Garcia Marques, a primeira escolha tanto de PS como PSD. O nome de Souto Moura foi depois consensualizado entre PS e PSD, recolhendo ainda a aceitação do CDS-PP e, digamos assim, a não oposição do PCP e do Bloco de Esquerda.

Depois, o facto de um procurador ser formalmente nomeado por um partido nada significa que a ele fique vinculado, como obviamente Souto Moura sabe, já que a nomeação carece do aval do Presidente da República e historicamente é em Belém que o procurador-geral mais tem encontrado o reforço político da sua dimensão de contrapeso.

Em relação ao MP português, aliás, a sua vinculação histórica, tão bem explicada no livro "Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária", do magistrado do MP Paulo Dá Mesquita, não é a da representação do poder executivo na administração da justiça mas do Estado. Souto Moura sabe melhor que ninguém que o MP português se inspira na herança italiana e germânica de defesa de uma magistratura inamovível, independente e autónoma face ao poder político. Sabendo isto, Souto Moura não prestou um bom serviço à sua própria magistratura e deixou no ar a ideia que a cultura do favor e da cunha vai fazendo o seu caminho na justiça. O que não sendo dificil de acreditar, é impossível aceitar. A começar pela figura do procurador-geral, seja o cargo ocupado por Souto Moura ou por qualquer outro magistrado

Publicado por Carlos 11:34:00  

7 Comments:

  1. Anónimo said...
    Olhe Carlos,

    o Estado e suas elites tresandam a pedofilia e corrupção: (quase) todos são primos e primas, comadres, amantes, companheiros de abuso, etc. Não ataquemos os poucos que dão razão ao "quase" que anteriormente escrevi entre ( ).

    A actuação de Souto de Moura não "deixou no ar a ideia que a cultura do favor e da cunha vai fazendo o seu caminho na justiça". Pelo contrário!

    A mão de ferro de Cunha Rodrigues, ciente de tudo o que que tem vindo a público e do muito mais que o senhor jornalista E. Dâmaso já sabe(ia) e lhe segredaram já a si (sim, sim! esse peixe graúdo todo: do futebol internacional e do palácio de Belém, etc. etc.), porventura não se fazia apenas sentir sobre os seus subtalternos ou quando contavam os seus interesses? É que a sem-vergonhice reinante (que reinou e continua a reinar neste país de abusadores e anestesiados) também vem do legado de 14 anos de C Rodrigues...

    Acho piada atacarem com mais fome de sangue Souto de Moura do que aos criminosos... E daí não acho. Sei porquê! E não tem até graça nenhuma. É o criminoso sistema e os seus apoiantes!
    Bocas
    Anónimo said...
    «Todos os Homens (mesmo os) honestos (querem) matar(am) César.

    A alguns faltou (falta) arte, a outros coragem e a outros oportunidade mas a nenhum faltou (ao fim ao resto parece não faltar) a vontade.» Porque será?
    josé said...
    Fiquei um pouco admirado ao ler o editorial.

    Eduardo Dâmaso era um dos poucos que nos jornais escrevem que me merecia alguma confiança, pela desenvoltura na escrita e da denúncia aberta do imobilismo e ao mesmo tempo da anomia reinante.
    Cheguei até a fazer referência explícita a alguns desses editoriais.

    De há uns tempos a esta parte, mudou a agulha: as entrevistas em por vezes articipa como perguntador na Tv, são penosas, pela irrelevância das perguntas; o reverencialismo incómodo, enfim, uma atitude de que até eu, mero espectador, sinto vergonha. Um jornalista não é assim! Não devia ser assim. Este último editorial, a descortinar um Souto Moura um argueiro suspeito, só o devia alertar para o que se tornou óbvio: é mais um derrotado! O Dâmaso, claro.
    Do chefe de redacção, o JMF, já nem vale a pena falar...
    Cronista Oficioso da 3R said...
    Caros obreiros, parece-me que tem toda a pertinência este post, mas estava à espera que tratassem com mais desenvolvimento o tema e no fundo distinguissem duas linhas:
    - A corrente dos que querem vindicta em relação a Souto Moura, e que o odeiam pelo desempenho que, penso terá sido sempre norteado pela defesa da lei;
    - A posição real em que Souto Moura se encontra, porque aí terá sido colocado por forças obscuras, mas também porque aí se deixou encurralar, e se é suportável que o mesmo continue a cumprir um mandato a justificar o passado, de forma cada vez mais atrapalhada e com afirmações que atingem um único alvo: ele próprio e a sua instituição.

    Especialmente porque se certos criminosos querem o fim deste PGR, outros se calhar querem um PGR demasiado preso À tentativa de justificação de algo que fez, e sem estabilidade (nem força) para todos os desafios que se lhe deparam...
    Acresce que a afirmação feita na entrevista e que determina o editorial do Público é de facto inaceitável, por incompatível com o estatuto do PGR (se séria) ou de uma leviandade também pouco aceitável para um PGR (se sem o sentido sério que se lhe podia apontar), parecendo-me que é este o caso. E se relativamente às afirmações de Badajoz houve exploração e má fé jornalística, na sequência de uma estratégia concertada de há muito, mais grave é que Souto Moura se tenha «posto tão a jeito».
    josé said...
    (Quase) que subscrevo o último parágrafo.

    Porém, falta o seguinte: as afirmações produzidas por pessoas do calibre de um PGR têm que ser sopesadas para que não se interprete algo que não corresponde ao pensamento do autor.
    Qualquer pessoa minimamente inteligente percebe que não foi aquilo que o PGR quis dizer e percebe ainda que não podia ser aquilo, pois seria uma injustiça à já tão provada independência do PGR.
    Enfim, um dito infeliz, num contexto de alto risco dá azo a glosas de ocasião, para o queimar na praça pública, por aquilo que efectivamente os que o criticam pretendiam: a manipulação do processo a fim de evitar o desclabro do Ferro Rodrigues e a coligação com as forças à esquerda! É esse o problema dos barnabés todos que por aí pululam!
    Sabem que não têm mais chances de singrar colados ao PS, agora que este se deviou da rota de colisão para onde o Ferro o conduzia...
    O resto é hipocrisia!

    Quanto à interpretação das mensagens e á vergonha que constitui o editorial, transcrevo aqui uma passagem de um discurso de Cunha Rodrigues a propósito dos sigilos:
    De facto, o que pode dizer-se a este propósito é que, visando a interpretação, a transmissão do discurso e não a mera descodificação da mensagem, o exercício de compreensão não é alheio à mundividência do intérprete. A isenção e o rigor do posicionamento relativamente ao campo cultural, político, científico ou técnico de onde emana o discurso depende de uma tensão de consciência que previna o intérprete contra eventuais desvios provocados pela sobre-aplicação dos seus próprios quadros mentais.

    Por outro lado, a interpretação tem de estar atenta ao conteúdo, à finalidade e à retórica do discurso, o que compreende as próprias circunstâncias envolventes.

    " Em certo sentido, a interpretação é sempre um acto de engenharia da linguagem. Tanto mais que a existência de línguas oficiais conduz inexoravelmente ao empobrecimento do discurso, pela magreza vocabular e pelas distorções sintácticas e gramaticais, obrigando o intérprete a utilizar meios supletivos ou subsidiários. Com alguma razão, se diz tradutore-traditore ou, numa comparação picaresca, tão persuasiva quanto infundada, que nada existe mais parecido com uma tradução que uma mulher: as mais belas são geralmente infiéis; as fiéis não são normalmente belas."

    O gajo sabia-a toda...e nem por isso evitou que nos últimos meses do mandato fosse também crucificado na praça pública precisamente pelos mesmos que agora exigem o sacrifício ritual do SOuto Moura!
    Estes políticos de meia tigela, estão mesmo a precisar é de uma barrela!
    Anónimo said...
    A imagem de mais um "Colateral" que usa a
    "(...) inaceitável argumentação (...) sobre o interesse que não teria em prejudicar o PS por ter sido este partido a nomeá-lo para o cargo. Ou seja, teoricamente Souto Moura estaria a dever um favor ao PS."

    Inaceitável, Inqualificável e Imperdoável!

    Para que precisamos destes magistrados colaterais?
    josé said...
    Não precisamos, caro anónimo! Estamos de acordo, nessa parte.

    Por outro lado, qualquer anónimo bem ou mal intencionado deveria perceber, porque é evidente, que o josé que subscreve opiniões no blog não precisa de ser rotulado de magistrado ou advogado ou jornalista, enquanto escriba de blog. Não precisa porque nunca assumiu essa qualidade; nem podia, porque um escriba de blog apenas transporta consigo esse documento se assim bem entender. Como é o caso. Essa atitude tem vantagens e desvantagens. Entre as vantagens está essa: a de se subtrair a eventuais confusões derivadas de leituras enviesadas por preconceitos. Um médico que por aqui escreva não é um médico a escrever: é um escriba que por acaso pode ser médico; um jornalista que por aqui escreva, não é um jornalista a escrever: é um escriba que pode ser, por acaso, jornalista. Se a profissão lhes traz alguma dimensão aos escritos, isso não pode nem deve ser interpretado como capitis diminutio; antes, pode ser interpretado apenas como sinal idiossincrático e que de nenhum modo pode servir para limitar a liberdade de expressão. Simples e directo: quem escreve aqui, assume o que escreve pelo seu valor intrínseco, sem trazer anexado o rótulo decorrente dos deveres profissionais que se manifestam noutros campos e noutras circunstâncias e aí têm pleno cabimento.

    É fácil de entender, mas pelos vistos difícil de assimilar.

    Enquanto escriba de blog, um josé, mesmo que se dê a conhecer ( e dá sempre a cara através do e mail que aqui deixa), não precisa de se arvorar numa profissão qualquer, para emitir opiniões. Não precisa; não pretende; nem aceita essa colagem forçada de quem não sabe ler e se assume assim como fraco entendedor de coisas simples. Um josé não pode ser limitado no seu direito de exprimir opiniões políticas, enquanto tal. Para isso se fez o 25 de Abril.

    Se o assunto é jurídico, judiciário ou apenas fait-divers, um qualquer josé ou barnabé não estão impedidos de dar opiniões e elas valerão apenas pelo entendimento que veiculam, sem precisar de anexos rotuladores.

    Como magistrado, advogado ou jornalista, um qualquer josé ou Eduardo ou Barnabé, escrevem o que entenderem com outra responsabilidade: um magistrado chamado josé ou eduardo fazem-no num processo e daí não podem sair; um advogado idem; um Barnabé sujeta-se ao contraditório na praça da opinião política. Um jornalista Eduardo ou José fazem-no num jornal e aí a questão complica-se pois um jornal é um veículo de informação ao público.

    Se um jornalista, Eduardo ou José, entende que deve veicular, enquanto tal, uma opinião num editorial sobre o PGR ou um outro qualquer cidadão que exerce funções públicas, deve aceitar as críticas que qualquer outro cidadão, mesmo um josé que escreva num blog, lhe enderece. Assim como se fosse uma carta ao director para publicar no jornal. Se esse cidadão escreve num blog e por coincidência exercer profissão que o jornalista conheça que sentido tem, colar o cidadão escriba de blog à profissão que aquele exerce se este não pode- nem que o quisesse- fazê-lo, enquanto tal?!

    Um magistrado, advogado ou jornalista não perdem o direito de se exprimirem num blog ou noutro sítio qualquer, se o fizerem sem ser nessa qualidade. AS profissões não vem coladas ao corpo ou ao espírito de cada um como segunda natureza indissociável. Quando muito, algumas profissões têm um estatuto que limitam os seus profissionais em determinados termos. Já bastam essas limitações, para que ainda por cima, venham outras, espuriamente colocadas por quem quer que elas sirvam de barreira.
    E a verdade é que um jornalista exprime opiniões e escreve notícias em jornais; um advogado escreve requerimentos num processo ou participa em acordos extra-judiciais; um magistrado escreve num processo e aí acaba a sua qualidade profissional.
    É esse problema identitário que confunde muita gente e muitos se pelam por apanhar um magistrado fora do redil do processo, a fim de o acantonar a posições político-ideológicas e outras que lhe tolham os movimentos e cerceiem a liberdade de expressão de que se julgam exclusivos titulares.
    Se um juiz deve ser reservado enquanto tal, tal reserva apenas pode limitar-se ao âmbito do que manda o seu estatuto. E mais nada!
    O jornalista, se for de um jornal publicamente lido, como o são todos, tem o seu estatuto profissional ou tem de respeitar o seu livro de estilo.
    Fora disso, se tiver um blog, continuará a ser jornalista do jornal?! Poderá alguém assacar-lhe a qualidade de jornalista do jornal publicamente lido, para o encostar aos deveres do livro de estilo?

    Tenho assim como desqualificada; desajustada e lamentável, a crítica formulada.
    E desafio ainda o caro anónimo para se encher de coragem e me escrever para o mail, assumindo a identidade.

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